10 abril 2018

sophia de mello breyner andresen / pátria




Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra   rio   vento   casa
Pranto   dia   canto   alento
Espaço   raiz   e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo


sophia de mello breyner andresen
livro sexto
1962






09 abril 2018

carlos de oliveira / árvore



I
As raízes da árvore
rebentam
nesta página
inesperadamente,
por um motivo
obscuro
ou sem nenhum motivo,
invadem o poema
e estalam
monstruosas
buscando qualquer coisa
que está
em estratos
fundos,

II
talvez poços,
secretas
fontes primitivas,
depósitos, recessos
onde haja
um pouco de água
que as raízes
procuram
de página
em página
com a sua obsessão,
múltiplos filamentos
trespassando o papel,

III
seguindo o fio
da tinta
que desenha
as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes
grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor:

como podem
crescer
de tal modo

IV
no poema,
se a árvore
foi dispersa
em pranchas de soalho,
em móveis e baús
que fecham
para sempre
coisas
tão esquecidas,
como podem
romper
de súbito impetuosas
na aridez
do livro

V
e perseguir-me
assim,
se a areia
donde vêm
já vitrificada
pelo tempo
oculta
a árvore que morreu:

procuram
instalar-se
no interior da linguagem
ou substituí-la
por uma
infiltração

VI
quase
mortalizante:
mas
de repente
como apareceram
as raízes sossegam
[que terão
encontrado?]
e retiram
com o mesmo fluxo
do mar que se retraie deixa
atrás de si
silêncio:

VII
é então que vejo
no halo mais antigo
a árvore desolada,
os ramos em que poisam
as aves
doutros livros,
e pressinto
as raízes
através da sílica
onde a família dorme
com os ossos dispostos
nessa arquitectura
duvidosa
de símbolos

VIII
que chegaram
aqui
de mão em mão
para caberem todos
na constelação
exígua
que fulgura
ao canto do quarto:
o baú ponteado
como o céu
por tachas amarelas,
por estrelas
pregadas na madeira
da árvore.


carlos de oliveira
micropaisagem
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998






08 abril 2018

camilo pessanha / ó cores virtuais que jazeis subterrâneas




Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
– Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias – ,
No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.

Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.


camilo pessanha
clepsidra
1920





07 abril 2018

ruy belo / morte ao meio-dia




No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer


ruy belo
boca bilingue 1966
tempo duvidoso
todos os poemas I
assírio & alvim
2004




06 abril 2018

irene lisboa / outro dia




Escrever assim…
escrever sem arte,
sem cuidado,
sem estilo,
sem nobreza,
nem lindeza…
sem maior concentração,
sem grandes pensamentos,
sem belas comparações,
não será escrever!
Mas assim me apetece,
que o entendam ou não,
que o admitam ou não,
escrever…
estender
o delgado, esfiado,
inoperante
pensamento.
Este pensar
não é actuar mentalmente,
sequer,
é descansar…

Estive deitada,
e agora estou sentada.
Deitada via as nuvens,
brancas do sol,
brilhantes,
enoveladas.
Tanta brancura
à frente dos meus olhos!
Afogava-me nela.
De que me lembrava?
Nem eu já sei.
As ideias do dia,
picadas sem dor,
a que sorria,
como apareciam, desapareciam…
Realmente,
só na hora,
no pleno instante
de nos assaltarem,
frescas e imprevistas,
têm o seu sabor.

Deitada,
com a luz nos olhos,
sonhava… sei que sonhava…
na única coisa em que se sonha,
na única coisa em que se pensa,
naquela que é a trama,
o fundo ora baço,
ora vivo,
persistente e teimoso,
das nossas preocupações…

Antes ensaiei vestidos,
mas todos usados…
vestidos do verão,
leves,
remoçantes,
que dá gosto ensaiar.
É uma experiência que se faz…
Vemo-nos ao espelho
e ele que nos diz?
Tudo o que desejamos
e também receamos…
Que me diz o espelho?
Fala-me dos olhos,
fala-me do corpo,
engana-me…
Mas também me diz,
tantas vezes!:
nada esperes,
és tola.

Ai que podem os vestidos,
que podem os espelhos?
Tempo!
Tu é que tens a última palavra!
Corres,
e, sem dó, tudo inutilizas.
Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!
Destrói! Mata!
Que o pior mal,
de todo o pior,
é esperar,
sempre esperar.
  
Lisboa 1936



irene lisboa
um dia e outro dia….
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991






05 abril 2018

luiza neto jorge / a casa do mundo




Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.

Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirenéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.

Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.

Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente me lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.

Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.

É a casa do mundo:
desaparece em seguida.


luiza  neto jorge
o seu a seu tempo
poesia
assírio & alvim
1993







04 abril 2018

manuel antónio pina / tat tam asi




Nós os maus caminhamos em
círculos cada vez mais estreitos
até ao centro de tudo, o silêncio de tudo

(Nada é de mais, porque existe tudo)
Na nossa terrível vigília
cultivamos técnicas mortas,
o pleonasmo, a pura repetição

Aqueles que afirmam tudo
existem já na eternidade
conquistaram a imobilidade e o silêncio
com sábia indiferença são sidos por tudo



manuel antónio pina
aquele que quer morrer  (1978)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012






03 abril 2018

herberto helder / elegia múltipla




VII
Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus
vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,
amanhã morrerei.
Talvez eu comece a morrer na tua mão direita,
alterosa e quente na minha mão
sufocada. Agora mesmo na europa
começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida
percorrida por um álcool penetrante, é a imediata
atenção ao misterioso trabalho da piedade.

Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais
sombrios da carne, sobre um vasto segredo.
Será apenas isto, um ponto móvel
da eternidade, isto — a sufocação veloz e profunda
da vida inteira na minha garganta? E depois
o acender das luzes, bruxelas como uma câmara
de archotes e ao alto as ameias
enevoadas dos astros? Devo olhar com uma grande
memória aquilo que acaba na violência triste
do poema.

Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilónia
partem rios. Por detrás das cortinas,
despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho
vinte e nove bocas urdindo
a falsa doçura da confusão. Os países constroem
a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão
pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante
a loucura masculina
da minha vida. Pensa um pouco na beleza
ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível
das pessoas ou o seu respirar
que arde e brilha e se apaga à superfície
das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso
rapidíssimo
que jamais desaparece do silêncio, na candeia
que cobre com agulhas de ouro os escombros
dos lírios. E por cima de tudo estende
a tua pequena mão eterna. Cai
tu própria na treva quente da minha
cega mão masculina de vinte
e nove
anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda
inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta
cheia de sangue actual — amanhã morrerei.

Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas
velozes, pedras que pareciam
imortais. Eram casas que se levantavam
sobre o meu coração. Vi que tomavam
animais feridos, flores imaturas, objectos
breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam
alguma coisa eterna. Era gente
de vinte e nove anos que se despedia dolorosa
pormenorizada
violentamente de uma parte da sua carne, a parte
mais iluminada da sua
carne de vinte e nove anos. Amanhã
morrerei.


herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996







02 abril 2018

fernando pinto do amaral / anjos




«Hoje é um dia como os outros».
Nunca pude esta frase banal
e porém, talvez não igual às outras
– escrita deixada a meio, descoberta
devorada plo tempo que se evola
à medida que mais se aproxima - «tão perto»
mas agora «tão longe» de ti. Rafaella,
agora que também eu posso ter
isso a que toda a gente chama um nome
próprio: Ralf Rahab, ou melhor, Karl Engel.

Hoje não foi um dia como os outros:
já consigo sentir latejar
o sangue sob a pele,
desenhar o arco-íris, ceder
às tentações do Tempo, que bebe comigo
– ele mesmo, é verdade! –
até de madrugada. Rafaella,
segreda-me ao ouvido qualquer coisa,
não me deixes aqui, assim, perdido,
sujeito a leis que nunca foram minhas,
à tirania estúpida e universal
dos pequenos rectângulos  de papel
onde sorri tranquila a Clara Schumann.

Amanhã não será um dia como os outros:
irei salvar de novo uma criança
e depois, Rafaella, nos teus braços
voltarei a escutar, ainda mais pura,
a voz silenciosa da eternidade.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997