07 fevereiro 2018

amadeu baptista / os selos da lituânia




14

valha a verdade, estive sempre só
na adolescência. por isso, a escrita
serviu no desamparo para tomar
consciência de que há sempre uma voz
que recupera connosco dos inúmeros
desagravos que a vida vai fazendo
para além do limite suportável,
sendo que em tudo existe violência.
à música devo muito e ao cinema.
ao mar provavelmente devo tudo.
mas foi na escrita que sempre me revi
quando os grandes dissabores principiaram
a marcar-me na face sinais incontornáveis
de solidão e medo. ao meu redor
tudo me pedia que ficasse atento
a tudo quanto via. há um mistério
inquestionável que preservo e flui
para a memória e da memória chega.
é como um cadáver deitado à nossa frente
que não se pode explicar mas que podemos
ver por dentro, adivinhando
as manchas que lhe vão na alma
e tudo o que já foi e já sonhou
e teve como seu e está perdido, implacavelmente.
desse cadáver não sabemos nada,
quem é,
de onde veio,
para onde irá
em corpo ou espírito noutro tempo.
contudo, nos seus lábios ressequidos,
na boca cerrada e no olhar parado,
nos ombros sinuosos e nas despojadas mãos
está inscrito o fascínio do que é,
além do mais, notícia e expectativa
que no caos turbilhonante é um clamor.
tudo é deslumbramento, tudo deve
passar-se para os outros como se
o que é perseguido assinalasse
o decisivo momento da nossa epifania
e do nosso testemunho sobre a terra,
com a esperança e angústia de quem sabe
que nenhuma palavra é redentora
e um verso ou uma frase não nos salva
do que quer que seja. a escrita
é um incêndio ausente
e nessa ausência
só é possível ressuscitar dos mortos.



amadeu baptista
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017





06 fevereiro 2018

jorge aguiar oliveira / lançou-se aos vidros do rio




lançou-se aos vidros do rio
vestido de branco fermento.

Encontraram cadernos
na margem da vida com alguns
amores-perfeitos espalmados e

um verso escrito, como se fora nascer
de novo

andei procurando
o meu príncipe de Darque


jorge aguiar oliveira
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987





05 fevereiro 2018

inês lourenço / natureza morta




Risco na velha agenda, com
um traço ténue, o teu nome
e morada. É um risco
que nada anula e semelha
uma antiga lápide
que o tempo rasurou.



inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015








04 fevereiro 2018

bernardo soares / e hoje, pensando no que tem sido a minha vida,




E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho vivo, transportado num cesto de encurvar o braço, entre duas estações suburbanas. A imagem é estúpida, porém a vida que defini é mais estúpida ainda do que ela. Esses cestos costumam ter duas tampas, como meias ovais, que se levantam um pouco em um ou outro dos extremos curvos se o bicho estrebucha. Mas o braço de quem transporta, apoiado um pouco ao longo dos dobramentos centrais, não deixa coisa tão débil erguer frustemente mais do que as extremidades inúteis, como asas de borboleta que enfraquece.

Esqueci-me que falava de mim com a descrição do cesto. Vejo-o nitidamente, e ao braço gordo e branco queimado da criada que o transporta. Não consigo ver a criada para além do braço e a sua penugem. Não consigo sentir-me bem senão — de repente — uma grande frescura de (…) daqueles varais brancos e nastros de (...) com que se tecem os cestos e onde estrebucho, bicho, entre duas paragens que sinto. Entre elas repouso no que parece ser um banco e falam lá fora do meu cesto. Durmo porque sossego, até que me ergam de novo na paragem.

5-4-1930


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






03 fevereiro 2018

joaquim manuel magalhães / afastou-se alguns passos




Afastou-se alguns passos.
Olhou, tão vago, objectos
pousados em mesas, serras,
um balde, anilinas,
as sacas do estrume.

No funesto relvado nu
um fogo inútil colhe
seivas prestes a correr.

Mudo-me em ti. Corto
a paz doente da memória.
Fresas, escopros, devaneios.

Não escutas. O esmeril
lanceia cada olhar.
As mãos caem no abismo.



joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985





02 fevereiro 2018

eugénio de andrade / o anjo de pedra





Tinha os olhos abertos, mas não via.
O corpo todo era saudade
de alguém que o modelara e não sabia
que o tocara de maio e claridade.

Parava o seu gesto onde pára tudo:
no mistério das coisas por saber;
e ficara surdo e cego e mudo
para que tudo fosse grave no seu ser


eugénio de andrade
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






01 fevereiro 2018

al berto / salsugem




I
Aqui te faço os relatos simples
dessas embarcações perdidas no eco do tempo
cujos nomes e proveito de mercadorias
ainda hoje transitam de solidão em solidão.



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








31 janeiro 2018

rui diniz / esboço





Sentados nas esplanadas da margem ouvíamos
o grito das civilizações. Havia semanas de silêncio
nas cidades litorais. Eu beberia entretanto cerveja
após cerveja e lia the Sun also rises. Que
mais escrevera este homem no seu solar
em Davim? Ninguém gostou de um poema que
que escrevi sobre o suave génio das gerações. E então
decidi partir para Bruxelas.

De todos os destinos o de Alice Toklas fora
o mais doloroso. Ela escrevera pacientemente
a biografia de todos os monges loucos e
por fim, enlouquecida pelos seus feitos, destruíra
os manuscritos enquanto dizia poemas de chaucer.

O seu olhar cintilava roxas estações, negros
campos de peste, livros e livros lidos pelas
insónias adiante.

E nós permanecemos sentados durante anos e
e anos nas esplanadas vazias, escrevendo loucamente
a incapacidade do tempo, a fúria dos dias e
das noites, a incansável desolação de cada palavra.

Repetimos o amor no interior das casas.
Recebemos um fulgor fácil das horas marítimas,
poemas vieram facilmente escritos aqui e ali.

Também da vida dissemos a alucinação exacta, os
motivos febris da inspiração, o ópio, o espaço
das flores de álcool, o olhar coincidindo
com a humilhação, os lábios distorcendo a mágoa
e a pouco e pouco já apenas o medo, o puro
medo de de repente em nós a voz se deteriorar.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






30 janeiro 2018

vasco graça moura / recitativos




II
vou dizer ao camões que sobre os rios não
passarei mais a noite.

a escrita polui-se: refaz seu exercício
e ao fim é exercida em labirinto.

e os erros e o poder que se escondiam
no coração humano (as jogadas mais íntimas os trabalhos
preparatórios)
a corromper a claridade sobre
os rios.


vasco da graça moura
recitativos
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






29 janeiro 2018

pedro tamen / fazer horas





Adelina: a bruma que era ontem
voa – não é já. Foi-se tão prestes
como o João das Índias. E foi lá
que um pero se ficou – tão são,
tão nosso irmão.

Adelina: que é do candeeiro
que tu dizias fosco? A luz que deu
dá ora gosto. Por isso aqui te digo
que após a morte é um minuto grande
e outro umbigo.

E está-se, Adelina. Se como burro
dói, é vero, mas está-se.
Até que passe.



pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982








28 janeiro 2018

bernardo soares / carta para não mandar




Dispenso-a de comparecer na minha ideia de si.

A sua vida (...)

Isso não é o meu amor; é apenas a sua vida.

Amo-a como ao poente ou ao luar, com o desejo de que o momento fique, mas sem que seja meu nele mais que a sensação de tê-lo.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982









27 janeiro 2018

sebastião alba / o navegador




Plena, a cidade
Navega o dia. Ao lado,
o mar em que verte…
Passa lentamente,
sob as sombras
de alguns meridianos.
Só um vidro faísca:
Há séculos emite
sinais indecifráveis.


sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981






26 janeiro 2018

fernando pinto do amaral / quinze rosas mais tarde



                            Sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.

                                                                             Paul Celan


Murcharam por engano as rosas onde agora
vive outra vez o teu amor por mim:
respiro o que restou do teu aroma
ainda tão recente e, no entanto,
a dissipar-se, como o do teu corpo,
colado à minha pele, contaminando-a
com um rastro de alegria em cada poro
aberto a uma certeza que não é,
nunca foi deste mundo, que se eleva
no gelo de fevereiro, pelas frinchas
de portas e janelas, toda a noite.

Queria saber amar-te como aos vinte anos
se ama a escuridão iluminada
dos corpos e das almas, essa névoa
soberana e feliz, mas só me ocorre
pedir solenemente a um deus infantil
que apague num só gesto as nossas vidas
ao longo desses tempos irreais
em que as lágrimas tinham outra fé
na dor irracional que abria ao meio
os nossos corações, ameaçando
deixá-los para sempre à mercê de si próprios.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997