09 abril 2017

álvaro de campos / diluente



A vizinha do número quatorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida.
Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um peão de cair.
Posso morrer como o orvalho seca.
Por uma arte natural de natureza solar,
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração...
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas...
Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana?
Apoteose ás avessas...
Dêem-me Agua de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!

29-8-1929



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993



08 abril 2017

eugénio de andrade / juventude



Sim, eu conheço, eu amo ainda
esse rumor abrindo, luz molhada,
rosa branca! Não, não é solidão,
nem frio, nem boca aprisionada.
Não é pedra nem espessura.
É juventude. Juventude ou claridade.
É um azul puríssimo, propagado,
isento de peso e crueldade.


eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971




07 abril 2017

s. kierkegaard / clamar e gritar



É, de facto, precisa uma grande ingenuidade para acreditar que, no mundo, servirá de alguma coisa clamar e gritar – como se, com isso, o destino de uma pessoa mudasse. Aceite-se o destino tal como é oferecido e evitem-se todas as prolixidades. Quando eu, na minha juventude, ia a um restaurante, também dizia ao empregado: um bom naco, um muito bom naco, do lombo, não demasiado gordo. Se calhar o empregado mal ouvia o meu apelo, menos ainda lhe prestava atenção, menos ainda a minha voz conseguia chegar até à cozinha, mover quem trinchava – e, mesmo que tudo isto acontecesse, talvez não houvesse nenhum bom naco em todo o assado. Agora já não clamo mais.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011 




06 abril 2017

marguerite duras / textos secretos




Ela mexe-se, os olhos entreabrem-se. Pergunta: Quantas noites estão ainda pagas? Dizes: Três.
                Ela pergunta: Nunca amou uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Nunca desejou uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Nem uma só vez, por um instante? Dizes que não, nunca.
                Ela diz: Nunca? Nunca? Repetes: Nunca.
                Ela sorri, e diz: É curioso um morto.
                E recomeça: E olhar para uma mulher, nunca olhou para uma mulher? Dizes que não, nunca.
                Ela pergunta: Olha para onde? Tu dizes: Para tudo o resto.
                Ela espreguiça-se, cala-se. Sorri e volta a adormecer.
                Voltas ao quarto. Ela não se mexeu na mancha branca dos lençóis. Olhas para aquela que nunca tinhas abordado, nunca, nem através das suas semelhantes nem através dela própria.
                Olhas para a forma suspeitada desde há séculos. Desistes.



marguerite duras
textos secretos
a doença da morte
trad. tereza coelho
quetzal
1999




05 abril 2017

mário dionísio / canto de bar



Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

Aqui o canto de bar
onde vêm parar os que serão suicidas,
gente de todas as nações falando todas as línguas,
emigrados de todos os países.
Aqui o canto de bar
onde ancorou o jogador arruinado
e as mulheres que perderam o número dos amantes
e os moços que sonharam vidas que não puderam ter.
Onde os cantores esquecidos cantam valsas lentas e antigas
que trazem a recordação de lares despedaçados.
Onde vieram parar os maltrapilhos perdidos para sempre
e onde as valsas cantadas por vozes arrastadas,
que lembram multidões de coisas,
já não trazem a mínima saudade.
Aqui onde se sabe indiferentemente
que o homem saído há pouco
estendeu a corda e se enforcou na escada.
Aqui onde se joga tudo sem interesse
porque já não há nada para jogar.
É o canto soturno
onde não entra sol nem lua.
Janelas fechadas, só fumo e luz vermelha.
Homens de todas as raças de olhos desiludidos,
mulheres de todas as raças de cabelos desgrenhados.
Aqui o canto de bar
onde veio parar o lixo de todas as nações.
(Todos que estavam a mais nas cidades e nos lares…)

Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!


mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938)
imprensa nacional-casa da moeda
2016



04 abril 2017

zbigniew herbert / da mitologia



Primeiro era um deus da noite e da tempestade, ídolo negro e sem olhos, diante do qual saltavam nus e lambuzados de sangue. Mais tarde, nos tempos da república, eram imensos os deuses, com mulheres, filhos, camas desconjuntadas e raios que explodiam inofensivos. Por fim só os neuróticos supersticiosos carregavam no bolso pequenas estátuas de sal, representando o deus da ironia. À época não havia maior deus.

Vieram então os bárbaros. Também eles tinham em alta estima o pequeno deus da ironia. Esmagavam-no sob os calcanhares, adicionando-o depois aos seus manjares.


zbigniew herbert 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de rui knopfli
assírio & alvim
2001



03 abril 2017

rui knopfli / a casa dos mortos



Sub-reptícia, uma certa gravidade
se apodera de nós: um travo
residual morde as comissuras
do sorriso. No olhar com que olhamos
se demora outro olhar. No aceno
da mão pesa uma lentura inusitada.
Percebemo-lo na aresta de indefinido
mal-estar, na amargura que dura
enquanto dura o tempo de uma
lembrança furtiva. No ar, talvez
que respiramos de tudo o que foi
e fomos e reverbera em nós
ardências e crepitações. Como um soluço
represo e interminável, eles persistem
desgarradamente presos à curvatura
dolorida dos nossos gestos. Eles
doem em nós uma presença muda
e grave. E emprestam a tudo
o que fazemos uma harmonia melancólica.
Com a maré baixa do seu terno desespero,
moram em nós que somos os vivos.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982





02 abril 2017

bernardo soares / as coisas sonhadas só têm o lado de cá...



As coisas sonhadas só têm o lado de cá... Não se lhes pode ver o outro lado... Não se pode andar à roda delas... O mal das coisas da vida é que as podemos ir olhando por todos os lados... As coisas de sonho só têm o lado que vemos... Ter amores só puros como as nossas almas...
s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






01 abril 2017

al berto / um dia a manhã limpa perturba



[4]

Um dia a manhã limpa perturba
o brilho molhado da boca -alastra
cicatrizando a fonte maligna do sangue

a fala ergue-se clara -sem dor
o tronco da árvore reverdece e
o mistério do voo dos pássaros sobe
á raiz viva do corpo -húmus

seiva fogo fundem lentamente -poeira
de lume vibrando
árvore volátil nascida no fundo da água
intensa - de novo
a respiração



al berto
o último coração do sonho
editora quasi
2000






31 março 2017

federico garcia lorca / aldeia

 
Sobre o monte nu
um calvário.
Água clara
e olivais centenários.
Pelas vielas
homens embuçados
e nas torres
cataventos girando.
Eternamente
girando.
Oh, aldeia perdida,
na Andaluzia do pranto!
 
 
 
federico garcia lorca
antologia da poesia espanhola contemporânea
trad. de josé bento
assírio & alvim
1985




30 março 2017

jorge luís borges / a trama



No segundo pátio
a torneira periódica goteja,
fatal como a morte de César.
Ambas são peças da trama que abarca
o círculo sem princípio nem fim,
a âncora do fenício,
o primeiro lobo e o primeiro cordeiro,
a data da minha morte
e o teorema perdido de Fermat.
Essa trama de ferro
pensaram-na os estóicos como um fogo
que morre e que renasce como a Fénix.
É a grande árvore das causas
e dos ramificados efeitos;
nas suas folhas estão Roma e Caldeia
e o que vêem os rostos de Jano.
O universo é um dos seus nomes.
Nunca ninguém o viu
e nenhum homem pode ver outra coisa.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



29 março 2017

nuno vidal / coda



Quando falas duma estrela
falas da ruiva, da polícia,
de ti? Falas da falta.
Uma cova de leite.
Pode ser um brilho que prende
o casaco, um talismã de procela.
Aquilo fica connosco até
de madrugada, quando reparamos
obriga-nos a não dormir
e por vezes tossimos um pouco.

Mas ninguém sabe da cera
iluminada por trás, pensa
cada fervor de solitário.
Depois vem a ver uma fotografia
de novecentos e sessenta e sete
e lá está bem melhor. Com
semelhante sediela se ata
o gosto para versos para ninguém.
Há uma rapariga que vê.
Liga com a sua infância
e vai tornar a filosofia inútil.


nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




28 março 2017

gil de carvalho / amazonas



Em Manaus, por esta altura nadavas
Respirando longe do jacaré,
Na posse dos segredos da beleza
O fumo dos camiões era uma seca
Homenagem, quase intacta, à floresta.
E o sabiá, forasteiro,
Sabia tanto, que era
O princípio, o meu
Olhar seguia-te, voava alto,
Eras nova, esguia, carne do rio:
Piranhas sangravam o boi
Mas quem é que via?
Em Manaus nadavas por essa altura
E eu também, nas águas sem fumo
De uma calçada fria. Carreto
Do exílio que desfaz o teu cabelo
Vermelho – sem medo da agonia.


gil de carvalho
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990