13 fevereiro 2017

josé gomes ferreira / a morte para nós, a turbamulta


XIII

A morte para nós, a turbamulta,
nada descerra
nem oculta…

É apenas este ritmo entre nós e a Terra.


josé gomes ferreira
café 1945-1946-1947-1948
poesia III
portugália
1971




12 fevereiro 2017

jorge de sena / aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males


Se acaso um dia o raio que te parta
(enfim obedecendo às fervorosas preces
dos teus muitos amigos e inimigos),
baixa de repente gigantesco
e fulminante sobre ti, e mesmo se repete:
e não te quebra todo, e como desasado,
ou quem morto regressa à sobrevida,
tu sobrevives, resistes e persistes,
em estar vivo (ainda que à espera sempre
de novo raio que te parta em cacos) -
- tem cuidado, cuidado! Arma-te bem
não tanto contra o raio mas principalmente
contra tudo e todos. Sobretudo estes,
ou sejam todos quantos pavoneam
o consolo inocente de pensar que a morte
não os tocou nem tocará jamais.

Porque não há ninguém por mais que te ame,
Ou por mais que seja teu amigo (e,
Com o tempo, os amigos, mais que as criaturas
Fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se),
Que te perdoe que tu não tenhas estourado,
No momento em que se soube que estouravas.
É uma "partida"(ou um "regresso" sem piada nenhuma)
Absolutamente e aterradoramente inaceitável,
Humanamente e vitalmente imperdoável.
Pelo que, sobrevivente, pagarás como se diz,
Com língua de palmo. Se és um pobretano,
Solitário, abandonado, entregue aos teus fantasmas,
Que são um palpitar, um estertor, uma opressão no peito,
Uma tontura, um como que silêncio negro,
Podes estar certo e seguro que nem amigo nem amante,
Está livre de ocupações permentes para te acudiar.
Uma que outra vez apenas, para alívio,
dos borborigmas morais dos seus estômagos,
Irão visitar-te carinhosos. Outros
tentarão acudir-te, ajudar-te, como podem,
E quando em desespero tu reclamas.

Não contes com mais nada senão morte,
Se tens família, amando-te sem dúvida,
Inteiramente dedicada a ti que seja ou é,
Não penses que não és constante imagem
Sem desculpa alguma de andar pela casa,
Um pouco vacilante, às vezes suplicando,
Uma pílula, alguma companhia, ou mesmo atrevendo-te,
A fazer referências tidas de mau gosto
À espada que para onde vás segue suspensa
Sobre a tua cabeça. Porque ninguém, ninguém
Até contraditoriamente porque te amam,
Suportam que não sejas quem tu eras,
Mas só a morte adiada, o que é diverso,
Do horror de um cancro que não se sabe
Quando matará mas é criatura de respeito,
Crescendo em ti como se estiveras grávida.
Assim, meu caro, com coração desfeito
Sem metáfora alguma, és apenas uma
Indecorosa e miserável chatice.

Portanto, irmãos humanos, se estourais,
Estourai, por uma vez aliviando
Quem vos quer ou não quer por uma vez.


jorge de sena
40 anos de servidão
moraes
1979



11 fevereiro 2017

herberto helder / o poema



     VI

     Fecundo mês da oferta onde a invenção ilumina
     a harpa e a loucura desperta a pura espada
     em pleno sangue. Ó vasto,
     amargo e límpido mês interior onde a graça
     se toca do fogo e o corpo se torna o cândido
     e longo varão de música. Escada de seiva
     entre arbustos de estrelas
     e cubos de sal perpetuamente ardendo.
     — Por ti, mês feliz de confusão e génio,
     eu levanto minha húmida boca
     até ao ar e ao vinho, levanto
     minha obscura pedra por vias de tormento
     e instinto até
     ao barro vermelho do céu, ao espasmo
     violento e sagrado das palavras.

     Mês por onde subo fundamente agitado
     em meu coração de argila, em minhas veias
     de pequena infância espantada e grata.
     E subindo me incendeio e consumo.
     Mês das mãos purificadas.
     Delicado mês para uma corola
     de nuvem, um vivo transporte
     entre coxas e mamas.
     Em lama e areia se descobre
     o pensamento, se perde a memória, se possui
     uma estreita palavra virgem
     e extrema.

     Arde, mesa. Arde, instrumento de profunda
     música. Arde, vinho. Carne,
     ave, grande mar, grande estátua fria,
     grande sorriso desfeito na face da solidão.
     Mês de onde nascem os bichos ébrios e a voz
     das catedrais de resina e o flanco
     terrível e doce das montanhas
     e o amor irmão da morte e da alegria.
     Mês do poema, substância de Deus servida
     como ceia e primeira pedra no espaço
     da minha angústia,
     do meu encanto.
     Mês da aliança, tempo
     tremendo da inocência onde a lua desce
     suas raízes ferozes
     e a morte anuncia seus primeiros sinais
     de glória.

     — E eu dormia. O sangue atravessava a noite
     como cantando baixo.
     Tecedeiras deixavam mãos sobre a atenção, flores começavam
     no linho com o tremor comprido das veias.
     Mês, mês. Um beijo pensava-se em palavra, recolhia-se, renascia,
     vibrava na testa como o beijo da loucura.
     — Pela terra adiante aumentava o trigo insensato do canto,
     o perdão nascia das formas,
     e por todas as coisas corria o sopro alucinado
     e redentor
     de um primeiro minuto de entre as mãos e a obra.




     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996



10 fevereiro 2017

josé tolentino mendonça / os amigos




Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura


Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001




09 fevereiro 2017

pedro tamen / tu que fumas



Adiro ao grande segredo da pedra, ao
prumo inteiro da sua própria sombra.
Brando, revejo a solar rotunda dos teus ombros
e (repito) há pedra sobre pedra, inicialmente.
És tu, portanto. Tu que dizes. Tu
que sopras as coisas, tu que fumas.

A todos direi que já sabia, mas é sempre
a remodelar lembrança a dar-me sangue.
Só que nem sempre, é isto, de algo serve:
pois que veias, mais do que intenção?
e que largura imensa só nos olhos?
Fumo sem fogo, amor? Sinais?


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982




08 fevereiro 2017

nuno júdice / projecto




O objectivo é fugir. Atravessar as ruas
do tamanho de uma vida – para encontrar
do outro lado, o quê?, que mãos estendidas
até à parede em fogo do teu corpo? que
deus fugido dos pântanos de almas em
que ambos perdemos? Fugir, sim, até
onde não conseguimos mais do que estar
um com o outro, e os olhos se encontrem
– os meus com os teus olhos cuja cor
esqueci – e esse encontro, perfeito facto,
cresça de dentro do hemisfério que sobrou
de uma colheita estival (mas de rosas de
todo o ano, as mais efémeras).
  

nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




07 fevereiro 2017

silvia ugidos / traçado urbanístico


Tal como qualquer cidade
também nós escondemos
turvos itinerários, edifícios arruinados,
escuras vielas de rancor ou desejo,
arrabaldes de medo ou parques para o amor,
cantos em penumbra onde ocultar segredos,
praças que nunca visitamos
e aborrecidos museus onde expor lembranças
que não interessam a ninguém.
A nós
também nos habitam cidadãos terríveis:
funcionários do tédio,
mensageiros de moto levando para muito longe
o pequeno embrulho – primoroso e com laço –
dos remorsos.
Viajantes que passam por nós
com as suas malas a caminho de outros corpos
e sobretudo
transeuntes alheios a nossa própria vontade,
incivis e teimosos;
têm nomes ridículos
tal como os sentimentos amor, rancor ou medo
e especulam – como vulgares comerciantes –
com o preço
por metro quadrado do nosso coração.


silvia ugidos
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



06 fevereiro 2017

antónio franco alexandre / os animais que escrevem




Os animais que escrevem, é sempre interessante, fez notar
o sensível destino dos nossos chacinados
companheiros. removemos a terra
de norte a sul, à procura de maravilhosas tocas,
o mar entrava pelo quarto do segundo andar,
dormíamos dentro um do um, acordados
pela manhã tracejada de néon,
no céu e terra do soalho.

cabe-me agora a descrição cuidada
do mundo incomodado em que vivemos: secretários
sentados à secretária, ídolos
das nove às onze,
civilidades de médio centro urbano, parque incluído,
a leve bomba que cai na cabeça dos outros,
e o grande buraco nocturno do mar
a sorver loas.

é um país, não há que errar, talhado
para a aventura de queimar
papéis ou gente,
tão desigual aos outros.
os primeiros autocarros passam,
a manhã levanta devagar a cabeça,
os pássaros, não esqueçamos os pássaros,
pousam, de viagem.


antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



05 fevereiro 2017

fernando pessoa / análise



Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco‑os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter‑me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
        Do sonho e pouco da vida.

12-1911


fernando pessoa
obra poética e em prosa. vol. I
lello
1986




04 fevereiro 2017

al berto / nunca mais o lembraremos



Um dia, em frente ao mar, ele pensou:

Se me apagasse neste preciso instante, o mundo pouco se importaria com isso.
No entanto, deixaria de ser o mesmo: seria um mundo com todas as coisas
que conheci e toquei, mas sem mim. E eu, algures na morte, é pouco provável
que levasse comigo alguma coisa do mundo. Seria um homem morto, sem mundo, definitivamente só.

Depois, não lhe agradou saber que o mundo, apesar da sua morte,
conservaria por muito tempo os vestígios da sua passagem. Desejou, uma vez mais,
que tudo o que escrevera até àquele instante se apagasse também,
e que do seu nome não restasse uma sílaba.

Pensou em tudo isto sem amargura, porque havia nele dois mistérios insolúveis:
viver e escrever. E ambos estavam tão intimamente ligados que, provavelmente,
se conseguisse desvendar um deles, o outro sê-lo-ia também.

Mas acontece que tinha tentado fazer da sua vida uma obra tão intensa
quanto a obra escrita. Por vezes diluíam-se uma na outra, confundiam-se,
tão próximas ou afastadas estavam. E tanto na vida como na escrita,
um mesmo desejo o animava: caminhar em direcção
à sabedoria última do silêncio - a memória total do mundo.

O pior é que sempre que avançava alguns passos na direcção certa, desiludia-se.
A harmonia com o mundo e com o seu próprio corpo continuava inacessível;
e outras ignorâncias surgiam, outras trevas o cegavam.
O que parecia estar perto, repentinamente, ficava fora do alcance.

Apesar de tudo, com o avançar lento da idade pressentia, algures dentro de si,
um ser de lume - um anjo mudo que o iluminava, revelando- lhe aquilo
que devia ou não silenciar.

E quando esse ser o fazia sentir árvore ou pássaro, todo o talento da árvore
e o nocturno voo do pássaro escorriam em si. E se a sensação de mar lhe era transmitida,
ele sabia que era um mar muito mais remoto e vasto que aquele
que diante de si se movia. .
Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação -
e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas vivas
e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado,
tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração.

Talvez seja por tudo isto que um dia nunca mais o lembraremos, nunca mais.
Mas neste preciso instante ele acabou de acordar, abre os olhos, arde,
é jovem ainda, e diz-me a sorrir:

 – Aqui tens o inocente revólver para a eternidade.



al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000



03 fevereiro 2017

adnan özer / o conselho da minha avó




A minha avó dizia-me:
- não sopres as brasas
meu lindo menino não vão sujar-te os pulmões

decorreu-me a meninice como alento
expirado contra as brasas

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
e do jardim cor de ameixa seca
com os troncos das árvores ressequidos
e os seus vestígios de cal apagada

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
quis ver de novo à noite
a lua cheia, o bandoleiro do céu,
bebendo a água com lábios de prata
em sulcos de crisântemos

sempre me lembrei de ti
e dos gerânios entre os quais
compunha os meus primeiros versos
da rã com manchas verdes da minha poesia
e do estribilho dos ciganitos:
«rãzinha, rãzinha
com pernas de raminho»

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
e da fronte enrugada do avô
que morreu anos depois de
sussurrar-me ao ouvido o meu nome

e da sua vide adornada
com campânulas entre águas-marinhas

os anos passaram
evolou-se dos sacos o cheiro a melões de inverno
acabou o bem-estar
de Abraão sobre a nossa mesa

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti.


adnan özer
as asas de orvalho dos ventos
trad. jorge velhote
quetzal
1997



02 fevereiro 2017

amalia bautista / pensaram que era a paciente esposa



Pensaram que era a paciente esposa
e um herói. A que espera noite e dia
tecendo e destecendo. A que ignora
que nunca volta o mesmo que partiu.
E apenas sou uma maldita aranha.



amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013





01 fevereiro 2017

alexandre o'neill / o tempo sujo



Há dias que eu odeio
       como insultos a que não posso responder
sem o perigo duma cruel intimidade
coma mão que lança o pus
que trabalha ao serviço da infecção
São dias que nunca deviam ter saído
do mau-tempo fixo
que nos desafia da parede
dias que nos insultam que nos lançam
as pedras do medo os vidros da mentira
as pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
que se espelha no céu
dias do dia-a-dia
comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho
o sono centenário
mal vestido mal alimentado
para o trabalho
a martelada na cabeça
a pequena morte maliciosa
que na espiral das sirenes
se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
onde o sórdido dá as mãos ao sublime
onde vi o necessário onde aprendi
que só entre os homens e por eles
vale a pena sonhar


alexandre o’neill
tempo de fantasmas
cadernos de poesia
novembro de 1951