14 janeiro 2017

frank o´ hara / cambridge



Ainda chove e o fruto amarelo-verde do algodão
no peitoril parece tonto dando no inverno troncos
com apenas três folhas pardacentas. A chapa de aquecimento funciona,
é o único calor na terra, e café instantâneo. Eu
visto as minhas calças de veludo quentes, uma camisola grossa castanha
e envolvo-me no meu velho roupão castanho. Como Pasternak
em Marburg (dizem que a Itália e a França são mais frias,
mas estou certo que a Alemanha é tão fria como isto) e,
faltando-me a inspiração do Mestre, posso morrer gelado
antes de conseguir sair para a chuva branca. Poderia ter deixado
a janela fechada durante a noite? Mas é de onde a saúde
vem! A sua respiração desde os Urais, incendiando-me
como um cigarro esquecido. Arde! isto não é negligível,
sendo poético, não sendo frágil, pois que é patrocinado pelo
maior poeta Russo vivo com um custo incalculável.
Do outro lado da rua há uma casa em construção,
abandonada à chuva. Secretamente, irei trabalhar nela.


frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995



13 janeiro 2017

bertolt brecht / citação


Assim falou o poeta Kin:
Como escrever obras imortais, se não sou célebre?
Como responder, se ninguém me interroga?
Por que perder tempo com versos que o tempo perde?
Escrevo as minhas propostas em forma duradoura
Com medo que muito tempo corra sem que elas se cumpram.
Para atingir o que é grande há que passar por grandes
                                                                    transformações.
E as pequenas transformações são inimigas das grandes
                                                                        transformações.
Tenho inimigos. Logo devo ser célebre.



bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976



12 janeiro 2017

yorgos seferis / andrómeda



XX
No meu peito a ferida abre de novo
quando as estrelas baixam e ficam parentes do meu
          corpo
quando cai o silêncio debaixo dos pés dos homens.

Estas pedras que soçobram dentro do tempo até
          onde vão arrastar-me?
O mar o mar quem poderá esgotá-lo?
Vejo as mãos acenarem todas as madrugadas ao abutre e
          ao falcão
atada ao rochedo que pela dor se tornou meu,
vejo as árvores que respiram a serenidade negra
          dos mortos
e de seguida os sorrisos, que não avançam, das estátuas.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





11 janeiro 2017

al berto / mar



Nunca conseguiu viver longe do mar.

A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias,
de tempestades, de nomes de barcos e de peixes;
de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.

Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos
a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa,
alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.

Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si:
como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos
para suportar a melancólica travessia do mundo.

Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos,
o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre
por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.


Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar
que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não,
o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha,
era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos
e à lassidão embriagante do sol e do vinho.

Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro
no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco:
"onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar"
e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento
coração das leoas em pedra.

Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe
as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher,
 acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente
o que ela lhe disse ao separarem-se:

- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.

E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país.
Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos,
a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul,
com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido,
em lugar incerto, a meio da sua vida.

Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo,
e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde,
por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo
e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens
e da pobreza do mundo.

Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou.
Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse,
e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.


Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando
o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.

Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens,
tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia
e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo,
que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.


al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000





10 janeiro 2017

carlos de oliveira / livre






Não há machado que corte
a raiz ao pensamento
não há morte para o vento
não há morte

Se ao morrer o coração
morresse a luz que lhe é querida
sem razão seria a vida
sem razão

Nada apaga a luz que vive
num amor num pensamento
porque é livre como o vento
porque é livre


manuel freire / carlos oliveira

1969




09 janeiro 2017

antónio franco alexandre / fosses tu deus



Fosses tu deus, seria eu santo
alimentado a areia e gafanhotos,
sem cessar meditando o único nome
que o horizonte deserto não contém.
Sonho que acordo dentro do meu sonho
para o saber mais certo e mais real;
como o místico leio nas entranhas
da ausência a tua sombra desenhada.
E no entanto és gente, sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes,
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
Cada instante o que perco e não vem mais.



antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



08 janeiro 2017

teixeira de pascoaes / canção da névoa




Tristezas leva-as o vento;
Vão no vento; andam no ar...
Anda a espuma à tona de água
E à flor da noite o luar...

Vindes dum peito que sofre?
De uma folha a estiolar?
Donde vindes, donde vindes,
Tristezas que andais no ar?

Eflúvios, emanações,
Saídas da terra e do mar,
Sois nevoeiros de lágrimas
Que o vento espalha, no ar...

Suspiros brandos e leves
De avezinhas a expirar;
Ermas sombras de canções
Que ficaram por cantar!

Brancas tristezas subindo
Das fontes, que vão secar!
E das sombras que, à noitinha,
Ouve a gente murmurar.

Saudades, melancolias,
Que o Poeta vai aspirar...
Melancolias e mágoas,
Que são almas a voar.

E o Poeta solitário
Fica a cismar, a cismar...
Todo embebido em tristezas,
Levadas na onda do ar...

E o Poeta se transfigura,
É a voz do mundo a falar!
E aquela voz também vai
No vento que anda no ar...


teixeira de pascoaes
as sombras




07 janeiro 2017

antónio ramos rosa / estou vivo e escrevo sol


ao Ruy Belo


Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no ato de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde


antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001


06 janeiro 2017

paul éluard / estações



I
O centro do mundo está em toda a parte e em nós

Uma rua ofereceu-se ao sol
Onde se situava ela e qual a sua importância
Na luz suplicante
Do inverno nascido de um amor menor

Do inverno uma criança coisa de nada
Com o seu séquito de andrajos
Com o seu cortejo de pavores
E de pés frios caminhando sobre túmulos

No deserto tépido da rua.


II
O centro do mundo está em nós e em toda a parte

E de súbito a terra bem-vinda
Foi uma rosácea de sorte
Visível com espelhos louros
Em que tudo cantava com a rosa na mão

À folha verde e ao metal branco
Pegajoso de embriaguez e de calor
Ouro sim ouro para brotar do chão
Debaixo da imensa mole humana

Aos pés da vida opressiva e boa


paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar  1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002



05 janeiro 2017

luís miguel nava / na pele




O mar, venho ver-lhe a pele a rebentar
ao longo das falésias, o que sempre
me traz a exaltação desses rapazes que circulam
por Lisboa no verão.
O mar está-lhes na pele. Partilho
com eles os quartos das pensões, sentindo as ondas
a avançar entre os lençóis. Perco-me à vista
da pedra onde o mar vem largar a pele.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
como alguém disse
publicações dom quixote
2002




04 janeiro 2017

paul auster / desenterrar



I
De par com as tuas cinzas, aqueles
ainda mal acabados de escrever, suprimindo
a ode, as atiçadas raízes, a estraneidade
do olhar – com mãos embrutecidas, arrastaram-te
para a cidade, apertaram-te
neste laço de gíria, e nada
te ofertaram. A tua tinta aprendeu
a violência das paredes. Banida,
mas sempre rumo à fraternal
quietude do coração, revolves os seixos
da velada terra, e compões o teu lugar
por entre os lobos. Cada sílaba
é um trabalho de sabotagem.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



03 janeiro 2017

manuel de freitas / duas vezes nada



É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.

Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002



02 janeiro 2017

arsenii tarkovskii / rios palpitantes por dentro do cristal



Rios palpitantes por dentro do cristal,
A montanha assomando na bruma, mar enfurecido,
E tu com a bola de cristal nas mãos,
Sentada num trono enquanto dormes,
-  Deus do céu! -, tu pertences-me.
Acordas para transfigurar
As palavras de todos os dias,
E o teu discorrer transbordante
De poder revela na palavra «tu»
O seu novo sentido: significa «rei».
Simples objectos transfigurados,
Tudo – a bacia, o jarro -, tudo
Uma vez de sentinela entre nós
Se forma límpido, laminar e firme.



arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987