15 outubro 2016

herberto helder / tríptico



     III

     Todas as coisas são mesa para os pensamentos
     onde faço minha vida de paz
     num peso íntimo de alegria como um existir de mão
     fechada puramente sobre o ombro.
     — Junto a coisas magnânimas de água
     e espíritos,
     a casas e achas de manso consumindo-se,
     ervas e barcos altos — meus pensamentos criam-se
     com um outrora lento, um sabor
     de terra velha e pão diurno.


     E em cada minuto a criatura
     feliz do amor, a nua criatura
     da minha história de desejo,
     inteiramente se abre em mim como um tempo,
     uma pedra simples,
     ou um nascer de bichos num lugar de maio.


     Ela explica tudo, e o vir para mim —
     como se levantam paredes brancas
     ou se dão testas nos dedos espantados das crianças
     — é a vida ser redonda
     com seus ritmos sobressaltados e antigos.


     Tudo é trigo que se coma e ela
     é o trigo das coisas,
     o último sentido do que acontece pelos dias dentro.
     Espero cada momento seu
     como se espera o rebentar das amoras
     e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
     — E o resto é uma altura oculta,
     um leite e uma vontade de cantar.




herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996





14 outubro 2016

olga orozco / a véspera do pródigo



     Eu, o que vigia abrigado na inocência,
sou o eu não partiu quando meu último sopro apagou a vela.
Mas, quem decifrou lentamente os fabulosos signos?
Oh, distante!
Quem buscava nas nuvens o espelho onde dorme a imagem de
                secretos países?
Quem ouvia outras vozes a queixar-se o vento contra o cristal batido?
Quem inscreveu com fogo o seu nome nos troncos para que fosse
                anúncio ardente nas praias?
Oh, mensageiros!
Outro é o que partiu.
Mas por seu rosto passo às vezes como se ainda se visse no balão
                inquieto da infância que o tempo balança:
e às vezes chega a mim, atrás das frondes errantes, o fulgor de sua
                mísera realeza.
Não me julgueis agora.
Esperai-o comigo.
Sua morte há-de alcançar-me tanto como sua vida.


olga orozco
trad. josé bento
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




13 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho



IV
Um sonho perturba-me com uma
persistência espantosa.
Chama-me de volta
à aldeia do meu avô.
Àquela casa, onde eu nasci
há 40 anos,
em cima da mesa de jantar.
Mas, quando quero entrar nessa casa,
aparece qualquer coisa a impedir-me
tenho este sonho com frequência.
Mas quando vejo as paredes
de madeira e a escuridão da entrada,
sei, mesmo a sonhar,
que não passa de um sonho.
E a minha imensa alegria perde-se
na sombra do esperado despertar.
Às vezes, porém, deixo de sonhar
com a casa e os pinheiros
em torno dessa casa da minha infância.
E tenho saudades.
E espero impaciente
o regresso deste sonho,
onde voltarei a ver-me criança
e a sentir-me feliz de novo,
porque tudo está ainda pela frente
e tudo será ainda possível…


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975




12 outubro 2016

joão rebocho / a vida adulta



a vida adulta
escapando entre as gotas
da chuva
e do talento
até ficar velho
depois
mais velho as
portas não fecham
poemas jornais amarelos a tua foto
a cafeteira esquecida
incandescente
os teus amigos mortos
com saudades de ti
o poema igual

indecisa
a casa na esquina
entre arder e não arder
morte ou ruína
que faz aqui um homem vitorioso?
em silêncio
adeus memória


joão rebocho
ruas lavadas
edição do autor
2016




11 outubro 2016

pablo neruda / walking around



Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
abatido, impenetrável, como um cisne de feltro
vogando numa água de origem e de cinza.

O cheiro das barbearias faz-me gritar em lágrimas.
Eu só quero um descanso de pedras ou de lã,
eu só quero não ver as lojas e os jardins,
mercadorias, óculos, ascensores.

Acontece que me canso destes pés, destas unhas,
e do cabelo e da sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

E no entanto seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deviam ter chorado de vergonha e de espanto,
com fúria, com esquecimento,
passo, atravesso escritórios e centros ortopédicos
e pátios onde há roupa a secar num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.



pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




10 outubro 2016

samuel beckett / há nela o acto calmo



há nela o acto calmo
os poros sábios o sexo bom rapaz
a espera nunca lenta de mais os ais demasiado
                                                                       [longos
a ausência
ao serviço da presença
alguns farrapos de azul na cabeça pontos
                  [finalmente mortos do coração
toda a graça tardia da chuva que cessa
ao cair de uma noite
de Agosto

há nela vazio
ele puro
de amor


samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



09 outubro 2016

álvaro de campos / não! só quero a liberdade!




Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.
Onde quero dormir? No quintal...
Nada de paredes — ser o grande entendimento —
Eu e o universo,
E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos
Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos,
O grande abismo infinito para cima
A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara,
Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo.
Não quero! Dêem-me a liberdade!
Quero ser igual a mim mesmo.
Não me capem com ideais!
Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!
Não me façam elogiável ou inteligível!
Não me matem em vida!
Quero saber atirar com essa bola alta à lua
E ouvi-la cair no quintal do lado!
Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
" Amanhã vou buscá-la ao quintal"
Buscá-la ao quintal
Ao quintal
ao lado...

11-8-1930



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993





08 outubro 2016

j. h. santos barros / lajes field, ilha terceira, açores



1.
I love to be here. Impossível
escrever português. Ó ky master, Master
of war. A espessura do asfalto, dos vidros.
Café com leite milk no wisky. Good-bye Susan
till after Vietnam. Angola. I love you.
O petróleo.

2.
Ó God, save Lajes Field. Acordei
o ar condicionado arejava-me por dentro.
O brilho das bolas de bilhar, a limpeza
extrema do clube de sargentos. Escrevo
voltado para o norte, onde fica o mar, o limite
da terra. Outrora o trigo. As vacas e as casas baixas,
brancas, além. O novo mundo há-de dar cabo
de tudo isto. Let me see. Folk. Ó subdesenvolvimento,
ó miséria, enjoy, enjoy, yourself.
A relva do campo de golfe relva bem tratada,
relva clara. Iluminada. Como chocolates,
let me try the slot. No. no. machine guns never.
I´ll give you peace and chewing-gum. Believe.
Rebentaram com o bairro da lata? Santa Rita,
serra de Santiago, ó when the saints.

3.
O que me dói nos olhos é a noite passada
em claro. Alguma coisa tentando safar
dos bidões do lixo. Da polícia tentando
também safar-me. Estou atento a Mrs. Glen
espero tudo do seu programa people to people.
Abençoada América que tantos favores nos
fazes. Meu tio Lopes passou 18 meses na prisão
Por ter roubado uma peça de paraquedas
Julgando tratar-se duma gabardina? Importante.
O self-service funciona. Refeições económicas. Coca-e-
– cola. I love to be here. Justice.
In God we trust.
O chão molhado. Cruzam-me a pele e os ossos
Motores potentíssimos. Devagar e a boots
saio da base. Fuck you, Joe!  



j. h. santos barros
os alicates do tempo
afrontamento
1979



07 outubro 2016

mário dionísio / jovem de riso ardente



LXII
Jovem de riso ardente
e voz irreverente
rubra provocação

Jovem-explosão
tratando a Revolução
tu cá-tu lá

daqui a vinte anos que dirás?

Como serás
e que haverá
então?



mário dionísio
poesia completa
terceira idade 1982
imprensa nacional-casa da moeda
2016




06 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho


III
Não acredito em pressentimentos
e augúrios.
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia.
Nem do veneno.
Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal.
Não há por que ter medo da morte aos 17
ou mesmo aos 70.
Realidade e luz existem,
mas morte e trevas, não.
Agora estamos todos na praia
e eu sou um dos que içam as redes
quando um cardume
de imortalidade nelas entra.
Vive na casa – e a casa continua de pé.
Vou aparecer em qualquer século.
Entrar e fazer uma casa para mim.
É por isso que os teus filhos
estão ao meu lado
e as tuas esposas,
todos sentados a uma mesa,
uma mesa para o avô e o neto.
O futuro é consumado aqui e agora,
e se eu erguer levemente
a minha mão diante de ti,
ficarás com cinco feixes de luz.
Com omoplatas como esteios de madeira
eu ergui todos os dias
que fizeram o passado.
Com uma cadeia de agrimensor,
eu medi o tempo
e viajei através dele como
se viajasse elos Urais.
Escolhi uma era que
estivesse à minha altura.
Rumámos para o sul,
Fizemos a poeira rodopiar na estepe.
Ervaçais cresciam viçosos;
um gafanhoto tocava,
esfregando as pernas, profetizava.
E contou-me, como um monge,
que eu pereceria.
Peguei no meu destino
e amarrei-o à minha sela;
e agora que cheguei ao futuro ficarei
erecto sobre os meus
estribos como um garoto.
Só preciso da imortalidade
para que o meu sangue continue
a fluir de era para era.
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
se a agulha veloz da vida
não me puxasse pelo
mundo como uma linha.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei  tarkovsky
1975



05 outubro 2016

antónio osório / é dado amar sempre mais




É dado amar sempre mais
um mesmo ser.

É dado confundir-se
com a quebração das ondas.

É dado manter
o rescaldo vibrante do fogo.


antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981






04 outubro 2016

josé agostinho baptista / despertar



Quis ser o teu senhor.
Quis subir as tuas árvores,
recomeçar tudo,
quebrar as cruéis molduras do tempo,
antes das chuvas.
Despenhei-me de insondáveis abismos,
ao centro,
onde as aves do meio-dia alisavam as penas.
Ardiam fogueiras distantes, do outro lado da
montanha.
Cinco velas ardiam sobre a mesa,
no salão dos teus passos furtivos.


josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006



03 outubro 2016

carla diacov / prólogo





tortuosa a questão de ser dita
dita a coisa que não ao vento pelas narinas
incompreensivos estofos da angústia e do desejo verborrágico
em ver narinas com gengivas
explico
há esse braço com dentes e dedos
enfiado numa boca por aí
era de datilografar em folhas e pétalas e era
de espalhar junto do vento agarrar
vestidinhos pelas anáguas
mas aí o mar
credos antes das pessoas
pessoas antes de serem orelhas que gritam diabo de mar
agora aqui
coisa abraçada em papel carinho e tinta
e tenho dito ainda o mar entre
um braço e outro uma orelha e outra e
isso tudo ainda das conversas
unificadas pela unha crescendo a dedinhos dados
ecos das línguas de fora do bucho mãe
e ninguém
muito menos você
vai poder dizer que eu não sou o comichão nas tuas
pregas vocais

irmã minha irmã

MarlaDiacov


carla diacov
ninguém vai poder dizer que eu não disse
douda correria
2016