13 abril 2016

fernando pessoa / as frases simples de caeiro




Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade…

                «Porque eu sou do tamanho do que vejo
                E não do tamanho da minha altura.»

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

«Sou do tamanho do que vejo!» Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. «Sou do tamanho do que vejo!» Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. «Sou do tamanho do que vejo!» E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando. «Sou do tamanho do que vejo!» E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.

24-3-1930


fernando pessoa
ficção em prosa
confissões





12 abril 2016

luís miguel nava / o espelho



O céu inteiriçou-se a todo o comprimento
Do vidro ao levantar a persiana.


Levou as mãos ao rosto, atravessou a sala, ao canto
Da qual reinava o espelho, e aproximou-se
Dele como o não fazia há muitos anos.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




11 abril 2016

carlos poças falcão / dois leões puxam o carro



Dois leões puxam o carro. São de ouro.
Um homem trata da imortalidade. Avança
grandemente sob os raios de um sol
escuro do outro lado. Há vento em tudo isto.
Prepara-se o mármore, ou a negra diorite,ou
entre as mãos a argila toma a forma
dessa face. Rugem os leões iluminados.
Quem irá deter esse guerreiro? Avança
pelo centro dos milénios, o arco retesado
o rosto devastado pelo tempo.


carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012



10 abril 2016

rui costa / bar do acaso



Escrevo, decerto, por qualquer
razão inútil que não vais nunca entender.
Surgem as frases, vês, desconhecidos
que no bar do acaso encontro e são
as tuas mãos a escrever por mim.

Minto-lhes, digo que só te amo
a ti, eles riem e pedem-me pra ficar,
que sim, que a noite ainda é uma pequena
musa no breve altar venal do coração.
Fico. Dou à boca o jeito do cigarro

e é em fumo que transformo o corredor
de imagens, metáforas, pequenos desvios de
ritmo mais pobre ou queda sempre a pique
em sentido nenhum. Às vezes, sabes, é mais
difícil descobrir que o amor, como o cigarro,
quando se acende é que começa
a iluminar o fim.


rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005




09 abril 2016

nuno júdice / botânica sentimental



No meio de algumas folhas, uma
outra folha: esta, seca, arrancada
de um ramo por mãos que
já não existem. De que recordação
terá sido o pretexto? Oferta de quem
a quem, quando a primavera se
prestava a esses jogos? Hoje,
porém, não é mais do que isso: a folha
que cai de um livro e que,
por um escrúpulo de limpeza,
alguém deita para o lixo.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997



08 abril 2016

ruy belo / a fonte da arte



Homenageio a tua primavera em flor
alma precocemente iluminada
que pões a salvação no mais profundo risco
o silêncio dos olhos sobranceiros
na predestinação da profecia
suavidade um dia em minha morte
com o olhar imerso na tristeza
Povoavam pássaros a noite
tudo era pensamento para mim
e as palavras só vinham depois
Ó meu país longínquo donde venho
nessa nuvem de vida sobre a minha morte
Na manhã combalida do domingo
na primavera dolorosa dos teus passos ruy
ao tempo de uma má reputação
o metro tem a voz de um cordeiro triste
É isso apenas isso e o demais são
a morte e a nascença dos contrários a
fórmula da ternura e do sossego
abismo de ameaças nos seus olhos
regiões insondáveis e inacessíveis
pequeníssimas flores da memória
relâmpago dourado do olhar
os cheiros acres das redondas cavidades
a tua boca de ouro de onde voam as palavras
animadas figuras do meu sonho
os peixes negros e dourados das recordações
olhos brilhantes de animais desconhecidos
coisas que por pensá-las eu as sinto
Os dias diminuem é outono
alguém alguma coisa me virá desse distante bosque
O que dirão de mim o castanheiro
os rostos múltiplos trazidos pela tarde num momento
a verde zebra que nos campos vibra ou
papoila rubra que no céu me sobra?
Mas amo muito mais amo o bem e o mal
os campos no outono moribundo
no meio do inverno a casa acolhedora
estranha companheira dos meus dias
demónio de demência e desespero
ao longo do caminho no outono
O receio da morte é a fonte da arte
Eu amo a embriaguez vasta dos espaços
a canção inquieta do amor as
alturas coloridas do outono
Não se pode dizer muito melhor
na monstruosa veemência dos sentidos
e sinto-me perdido de tristeza
entre esses longos nomes das mulheres casadas
Houveram morte às minhas mãos as cartas
os aviões nos distribuem por países
saem de um centro partem nas mais várias direcções
farejam na distância os seus destinos
retalham-nos o espaço em sulcos divisórios
Por onde corre agora a fonte das suaves raparigas?
Ficou na casa o meu lugar vazio
levo a desgraça como um braço ao peito
e árvores ao vento neste dia
e sombra ao sol deste meu dia
Queimam as folhas no parque del oeste
o tecto é baixo o sol está quase a pôr-se
tenho nas minhas mãos três notas do país amado
Esta manhã falavam-me de málaga
e de súbito no meio desta névoa
abriu-se o céu de há anos no verão
Éramos tão jovens nesse tempo
que não sabíamos sequer que nos amávamos assim
e discutimos junto ao porto e regressámos separados
ao hostal onde estávamos aboletados
E tu de olhos no chão reflectias o vulto entre as águas
e não havia os filhos éramos os dois apenas
mas enfim foi há pouco posto que inda hoje brilha
a moeda nesse ano posta em circulação
e que acabo de ter nas minhas mãos no bar
Não me farto de contemplar
o braço esquerdo e a perna direita
que cortados de mim não me pertencem mais
Tu foste sempre reino sobre ti
e o meu desejo é seguir do alto o tejo
Que depressa se esfuma uma cidade no ar
não são sequer as nuvens nem o vasto espaço
basta um golpe de asa que roçando limpe
o pára-brisas próximo horizonte
Pensar é estar alguma coisa a mais
pensar é o que sobra da respiração
pensar é o que não nos leva às coisas
pensando se antecipa a própria morte
O receio da morte é a fonte da arte



ruy belo
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987




07 abril 2016

inês lourenço / curativos



Sim, senhora enfermeira,
porei a compressa depois de lavar
com betadine-espuma e sem esquecer
a pomada de óxido de zinco. Mas o que vou
lembrar doravante é a sua informação de que o ânus
é menos sujo do que a boca, apesar dos poetas
há tantos séculos cantarem e exaltação das bocas
onde nascem versos e beijos, para
chegarmos a essas histórias de bactétrias
que nos condenam a esta mortal assepsia.



inês lourenço
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015


06 abril 2016

dario fo / os gregos não eram antigos (excerto)




Há livros que li e reli vezes sem conta, textos de escrita sublime e essenciais para quem deseja aproximar-se da verdade dos factos. Infelizmente, não me agradam apenas a mim, mas também aos amigos que frequentam a minha casa e o estúdio. Desaparecem... e sou obrigado a comprá-los de novo. Tenho de aprender com um meu antigo professor, que impedia os furtos prendendo os livros com correntes às estantes da biblioteca. Um dos volumes sujeitos a desaparecimento é um ensaio sobre a Grécia Antiga de Moses I. Finley.

Tranquilizem-se: não vos vou lê-lo, queria apenas indicar-vo-lo. Se por acaso puderem dar-lhe uma vista de olhos, descobrirão uma história completamente inédita sobre os helenos: fortes tensões sociais, intrigas arcaicas dos políticos, clientelismo do tipo italiano, corrupção, criminalidade dos dirigentes da primeira democracia humana. E estamos completamente antes de Cristo!

Temos de reconhecer que muitos dos nossos governantes são de uma honestidade discutível, sim, mas cultos: imitam sempre «os clássicos».

Mas como é que nos textos de outros historiadores da Antiguidade nunca se encontram, a não ser casualmente, estes testemunhos de extorsões e roubos? É apenas urna questão de diferença das fontes a que recorrem. Em poucas palavras, todos os historiadores da Antiguidade repetiram Heródoto, Tucídides, Plutarco, Políbio…

Não se assustem: não estou a exibir erudição — aprendi isto nas palavras cruzadas.

Pelo contrário, o nosso Finley afastou logo os historiadores clássicos, declarando claramente que os textos não passavam de patranhas sem fundamento, ao serviço da partidocracia, e que as únicas testemunhas dignas de crédito e honestas daquela época eram os cómicos, os dramaturgos satíricos gregos, isto é, Aristófanes, Arquiloco, Colofone... Para já não falar de Luciano de Samotrácia.

Por favor, não se impressionem... Estes sei-os de memória. São os autores de quem li as histórias e as comédias desde o tempo em que frequentava Pinóquio e Sussi e Biribissi.

Para dar razão a Finley, basta ler algumas das tiradas satíricas daqueles autores.

Vejamos Aristófanes, em As aves: «Os nossos mercadores são de uma avidez abjecta: para além de nunca pagarem impostos, para lucrarem mais, matariam melgas para darem um capote às moscas.» Não está mal, pois não?

E Arquiloco: «É certo: Epilone, o Arconte (isto é, o ministro das obras públicas de então), é um ladrão: vendeu a empreitada de restauro das velhas cloacas a um empreendedor incapaz e criminoso, de modo que hoje, quando chove, as cloacas rebentam e Atenas é inundada por esgotos fétidos. Ontem caiu um dilúvio — o rio fedorento transbordante invadiu o assento da assembleia e o gabinete onde Epilone opera e causa danos.

O responsável pelas cloacas permaneceu na ratoeira. Encontraram-no atolado até ao pescoço em excrementos. É mesmo verdade que por vezes o deus emprega a parte mais baixa de si para atingir os malvados.»

E outra vez Aristófanes: «Catino andou na guerra e apresenta-se em todas as ocasiões com o elmo emplumado dos combatentes. Dizem que, quando vai a casa da amante exibir o falo, se despe todo mas deixa o elmo na cabeça! Aquele Catino: que cabeça dura!» É Aristófanes, hein!

Pois Finley garante-nos que estes testemunhos, definidos pelos académicos como «boutades de ébrios», são documentos históricos mais importantes e fidedignos que todas as patranhas produzidas pelos vários Heródotos e Plutarcos, sobre as quais a censura não intervinha. Eu disse censura? Existiria já, porventura, esta santa instituição no tempo dos dórios e dos jónios? É verdade que afirmam ter nascido com o Homem, ou mal foi instituída a lei de Deus. Um historiador tentou demonstrar que ainda antes do nascimento do teatro existia já a organização censória, e que foram exactamente eles, os censores, a inventar o teatro, para depois terem a possibilidade de agirem e de se mostrarem úteis ao poder.

O facto é que denúncias e processos eram o pão nosso de cada dia, em Atenas. Todos os autores satíricos acabavam inevitavelmente por ser levados a tribunal, instituído para defender a moral vigente. Assim, Aristófanes conheceu a prisão e arriscou-se mesmo a ser condenado à pena de morte por ter satirizado veementemente Catino, caído em batalha e oferecendo o seu peito ao inimigo. Foi pena a seta mortal tê-lo atingido nas costas! O poeta salvou-se graças à intervenção de alguns intelectuais de bom senso e espírito, coisa muito rara mesmo no tempo dos magníficos Gregos.

Também Aristófanes se viu metido em grandes sarilhos quando, apresentando As mulheres no parlamento, se permitiu descrever Atenas reduzida a uma cidade privada de homens válidos e dignos. Estamos no século IV antes de Cristo e o exército protegido por Atena, deusa da vitória, fora destruído pelos siracusanos, aliados de Esparta, durante a campanha de Sicília (Magna Grécia). Diz-se que onze mil homens, todos na flor da idade, não regressaram à pátria. Mesmo neste caso, os historiadores da época não falaram de guerra, pilhagem e saque, mas de defesa da civilização e da democracia, uma vez que a expedição visava, justamente, impor a democracia àquele povo bárbaro e dominado por tiranos.

Frequentemente, nas comédias de Aristófanes era o próprio autor em pessoa que, colocando um máscara grotesca chamada Bufão, apresentava a situação da farsa representada. O Bufão entrava em cena no intervalo entre actos, insultando o público, dizendo piadas e proferindo perfidamente, como um verdadeiro Bufão, trivialidades maliciosas.

Em As aves, uma das mais famosas comédias satíricas, encontramos um monólogo no qual o actor entra em cena e, primeiro, começa a adular o público; depois, pouco a pouco, inverte a situação e cobre-o de impropérios, acusando-o de revelar-se ignorante, fútil e incapaz de compreender as alusões mais óbvias. Por fim, apercebe-se de que alguém ri e, então, lança comentários e chistes sobre aqueles que riem fora de tempo e a despropósito, fazendo pouco das pessoas que haviam ido ao teatro levando consigo os escravos mascarados de mulheres (habitualmente, os escravos estavam proibidos de entrarem nos teatros): fazem-se acompanhar dos escravos, afirma, para que estes lhes expliquem o significado das deixas satíricas. Mas eis o texto:

Bufão (entrando em cena como que furtivamente e olhando extasiado à sua volta): Ah, ah, ah, oh, meu Deus, que público extraordinário! Já passei por todos os teatros, do Pireu ao Helesponto, e poucas vezes me vi perante um público assim! Incrível! Sonho convosco até de noite... (Muda subitamente de tom) Vocês são um pesadelo! Que têm na cabeça? Será possível que não consigam compreender um jogo de palavras ou uma alusão alegórica? Meu Deus, as melhores deixas satíricas deslizaram sobre o vosso cérebro como toucinho sobre manteiga! Finjam, ao menos, que percebem: temos hoje estrangeiros na assistência — que bela figura fazemos à frente deles! Riam-se! (Vira-se para um lado e para o outro, como que à escuta) Não, assim não, ao acaso, mas na altura da deixa. Esperem: eu faço-vos um sinal! Assim, com um estalo de dedos.., e vocês: ah, ah, ah! (A correr, dirige-se para a direita até ao limite do proscénio) Mas, valha-me Deus, que está aquele a fazer, todo agarrado à mulher, com as mãos em todo o lado? Peço-te: vira-te também para aqui, de vez em quando! Podes deixar as mãos aí em baixo, mas olha para mim um segundo! E aquele que está há uma hora a limpar o nariz: vai lá dentro, vai até ao cérebro! Que esperas encontrar? Convence-te: não tens nada no crânio. Tira o dedo do nariz! Eh, um momento, tu, aí, que te riste. Sim, tu agora ris-te do outro, mas o que é que tens estado a fazer? Há uma hora que coças os tomates, o que é que tens? Todos os insectos chatos que estavam no Areópago acabaram por se instalar entre as tuas coxas!! Ah, ah, ah!!! Daqui a pouco serás transportado em voo até Júpiter! Um pouco de atenção, por favor! Não se consegue continuar com esta algazarra, não se consegue sequer representar... Se tivesse ido à Beócia, que é a Beócia, pátria dos beócios... teria ficado mais satisfeito, por certo! A melhor coisa seria lançar-vos punhados de amendoins, como se faz aos macacos.

Ah, ah, ah... pelo menos, ouviríamos aplausos no momento em que fossem arremessados em quantidade, para recolherdes às mãos-cheias! Oh, finalmente alguém se riu! Ah, ah, ah, não... não é um espectador: é um vendedor de amendoins! Ofendi-vos, porventura? Tendes razão: humilhei-vos; não, exagerei, não... Sim, admito: em Atenas também há pessoas inteligentes. Não é para vos gabar, juro: conheço-as, são pessoas argutas e de raciocínio finíssimo. (Pausa)

Mas elas não estão aqui esta noite, infelizmente, e sente-se a sua falta! (Ri a bandeiras despregadas e depois volta-se para uma pessoa das primeiras filas) Que vieste aqui fazer?... Ah, bem, porque... parece bem. «Vou ao teatro, logo, sou inteligente.» E quem te disse isso? À tua mulher, mais instruída, mais esperta, deixa-la em casa... As mulheres... não podem vir aqui, ah, ah, ah... É inútil virem ao teatro porque não atingem tão longe... e ficam bem contentes por ficarem sozinhas em casa — sozinhas é uma maneira de dizer. Quem te impede?... Se te sentes tão indignado, sai! Volta para casa!!! Sim, corre, mas, se te apressares, encontrarás um espectáculo extraordinário: a tua mulher nua com o criado, que se diverte, ele sim, de um modo inteligente, ah, ah, ah! (Aplausos)

Mas de onde veio a ideia de As aves?

A comédia, para quem não se recorda, é sobre dois atenienses que decidem abandonar a cidade sob o pretexto, mais do que moderno, do asco das infâmias, dos jogos políticos baixos e dos processos orquestrados. Parece passar-se na Itália dos nossos dias, com os governantes actuais e Andreotti à cabeça de todos que, como se sabe, vivia já então e fazia parte do parlamento ateniense. A sua figura reconhece-se em algumas pinturas em vasos áticos, no acto de fuga, com um extraordinário golpe de rins, ao enésimo inquérito sobre jogos de poder altamente perigosos. Longa vida ao inqualificável génio do equilibrismo político, verdadeiro malabarista que consegue, sem nunca cair da poltrona, jogar com a moral, a religião, o compromisso, e não revela escrúpulos com a máfia e a justiça.

As personagens da comédia, dizíamos, enojadas com o andamento político-patifório, partem com o objectivo declarado de encontrarem uma cidade ideal. Decidem parar num mundo intermédio, entre a terra e o mundo dos deuses, que é o das aves, onde, pelo menos, vigora um sistema de vida baseado em certas honestidades que os homens não possuem. Aprendem a voar, munindo-se de asas amplas, lançando-se no vento e executando reviravoltas verdadeiramente acrobáticas. Graças às correntes ascendentes, sobem ao alto e chegam ao Olimpo, onde são recebidas pelos deuses. Naquele paraíso de felicidade suprema, descobrem, infelizes, que os deuses copiaram dos homens o pior que com eles podiam aprender: as fêmeas divinas traem e entram em combinações de uma sexualidade desbragada, impossível até de representar. No que toca aos deuses masculinos, a corrupção, a hipocrisia e os embustes são o pão nosso de cada dia. Aos nossos dois viajantes não resta outra solução que não lançarem-se no vazio e flutuarem entre as nuvens em busca do mundo das aves, sua última esperança. Inútil será dizer que mesmo na sociedade volátil encontram o contrário do que esperavam. Em palavras modernas, a prevaricação, a violência e as desigualdades mais brutais: um grande número de pardais, tordos e tentilhões sujeitos a maus tratos de toda a espécie pelas grandes aves de rapina, incluindo darem consigo transformados em banal refeição quotidiana dos alados nobres e poderosos.

Os actores cómicos apresentam-se caracterizados e mascarados de águia, falcão e abutre no momento em que se lançam sobre uma garça-real, um grou e um cisne. Agridem-nos, arrancando-lhes as penas com uma ferocidade indizível. Os dois visitantes humanos vêem-se rodeados de plumas e penas, como se aquelas aves de rapina estivessem a despedaçar almofadas. Tentam fazer cessar a orgia, mas, como resultado, são por seu turno confundidos com aves de alimentação e vêem-se obrigados a bater em retirada. Acalmada a confusão, regressam ao local do festim e, com veemência, acusam as três aves de rapina do massacre. A defesa das aves imita a linguagem dos políticos humanos. Antes do mais, contra-atacam, recordando aos dois convidados que aquelas aves são um símbolo, mesmo para a raça humana, de coragem e de glória. Os elmos dos heróis gregos exibem sempre uma águia ou um falcão: o seu deus máximo, Zeus, oferece os próprios ombros às aves de rapina, como poleiro, assim como Atena. «E não se esqueçam de que nós, os grandes emplumados, fomos criados pelos deuses exactamente para evitar o risco de povoamento excessivo do céu. Sem a nossa atitude agressiva, o universo seria sulcado por bandos de aves comuns, em tal número que obscureceriam o sol. De resto, é o que fazem também vocês, homens. O que são as guerras, senão um expediente irrepreensível para reduzir a excessiva propagação das raças de menor valor e evitar que estas se tornem hegemónicas, sufocando na multidão as raças eleitas e indicadas pelos deuses como aquelas às quais é dado governar e gozar os frutos deste mundo?»

Notaram certamente que nas comédias dos grandes sarcásticos gregos encontramos argumentos e situações que abordam a política e o poder, não para lhes tecer elogios, mas para denunciar as suas infâmias. Por conseguinte, a sátira nasce sempre da tragédia. Na base da comicidade grotesca há sempre uma situação dramática. Nas farsas gregas mais famosas tudo gira em torno de injustiças paradoxais, embustes criminosos, violências perpetradas sobre mulheres e crianças inocentes, massacres de populações, destruições de cidades e prevaricações de tiranos com o consequente desprezo pelos direitos civis e pela liberdade: a dor e o desespero são o seu motor essencial. Por outro lado, quando sobre o palco se encenam comédias que propõem como tema a mofa em si mesma, o chiste sobre defeitos físicos da personagem visada, alusões à sua insuficiência erótico-sexual, as traições das mulheres suportadas com alegria, como se fossem prendas... então, não se trata de sarcasmo, nem político nem moral, mas apenas de zombaria, que é uma coisa completamente diferente.

Para finalizar, o jogo satírico ofende e indigna sempre o poder; a zombaria, diverte-o.

(…)


dario fo
o amor e o escárnio
trad. maria de fátima st. aubyn
gradiva
2008



05 abril 2016

mariana campos / marítima



íris cor de mar provoca dilúvio
a nado cruzo os seus olhos
o mar é doce
a dois o mar é pequeno
(antes que nos alcancem
beberemos as ondas maliciosas)
o amor estendido à orla
até o mar vem olhar


mariana campos
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013



04 abril 2016

jorge fallorca / este é o espaço destinado a todos



este é o espaço destinado a todos
os equívocos, com gente assomando
– estridentemente – às colunas
por onde se esvai a escrita.
porque a necessidade deixou de ser
travessa e assume-se como gazua


jorge fallorca
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987



03 abril 2016

fernando echevarría / se for nevar



Se for nevar, ficaremos
como quem espera a neve
– no intervalo sonolento
aonde somente cresce
estar esse alguém perdendo,
não o ver, o que o sustente.
Recolheu-se já o vento.
E encostou recolher-se
ao sono. Que, desde dentro,
puxou o sono por esse
pensar cada vez mais lento,
do intervalo aonde cresce.



fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998



02 abril 2016

ricardo marques / do segredo



O segredo de cada homem
é enquadrar-se no seu tempo.

É o seu degredo, também,
e pode ser a sua morte.

Mas quem disse que a vida
não é uma questão de vida ou morte?

É pela mesma razão que sempre
pomos a vida primeiro nesta expressão.

O segredo é essa tentativa:

o que queremos está sempre
entre dois tempos

e entre dois verbos: amar
ou perder. Sem medo.



ricardo marques
metamorphoses
relâmpago
revista de poesia 36/37
fundação luís miguel nava
2015




01 abril 2016

diego doncel / o outro revelado


                            (Depois da chuva)


Tempestade atrás de tempestade,
por altares de água,
sacrificado o sangue
de um verão feroz, aos céus
foge esta terra – à origem –
com  verdadeiro amor, delapidando-se.
Nada já se reconhece em si.
Ou só o nada.
Fundas jazem as coisas,
sem contornos,
ubíquas e outras no mais além
da inexistência que as funda.
E isto, diz-me, o espaço
da unidade, o fio consumido
pelo eterno?
Esta é a miragem?

Com a sua ferrugem, cumprido
Esse destino fatal
 – quebra sem limite, rasto? –
este corpo, já ido, perpétuo
está nestes lodos
onde a cega posse é o ral.
Ele próprio é lodo
cego sem encontrar sentido?
A luz da morte,
interior a ele, ilumina-o.
Nada é. Apenas existe
secreto sem ocultar-se.
Ao sentido as suas mudanças
acaso negam, atrás do véu
da sua própria unidade.
Mas ele é o sentido!
Morto, e vivo no mais alto
como deve estar toda a matéria,
a consciência procura uma entrada,
qualquer massa
onde beber o seu sangue,
em vão. Não é visível a sua fuga
e se em alguma dobra do tempo
se procura encontrá-lo
o seu instante é um rio que não flui,
que passa sem suceder-se, eternidade
sem fim.

A chuva uniu
os deuses da terra
com os deuses do céu,
e é a chuva quem funda
o ser sagrado.
Por que débil derrota chegar agora
a pronunciar-te, corpo, debaixo de que solidões,
ao fio de que luz ou despertar?

Nesta esfera infinita
que se revela a si mesma
o verdadeiro permanece
onde se existe apenas,
sem herança nem fim,
no absoluto do extinto.
Como lua na noite,
como fogo acontecido
o corpo na morte é luz
e por ele o ser se mostra.


                                                    El único umbral


diego doncel
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000