14 março 2016

manuel gusmão / no coração da rosa a noite


1
No coração da rosa a noite
abre as alas
do brilho

a noite
alarga na rosa
o seu sim
diurno



manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
caminho
1990



13 março 2016

gil t. sousa / os pianos órfãos



um bando de pianos órfãos
atravessava a neve

e deixava um rasto de ouro
no silêncio negro da tarde

velávamos os raros fios de sol
que nos teciam a melancolia

e partíamos ricos
dando-nos ao assalto das horas

livres e amantes


gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014



12 março 2016

irene lisboa / não




Sentada e brincando com a areia…

Há tanto tempo, tantos meses que não vejo areia

Deixando correr a areia das mãos distraidamente…

É a areia que me dá a imagem, a plástica expres-
são dos meus pensamentos.
Enchem-me a cova da mão, aquecem-na e logo
começam correndo, perdendo-se…
vem gente, passantes, vagos interessados  e incre-
pam-me:
Que fizeste dos teus pensamentos?
Não os vêem, grãos de areia disseminados.

Mas este pó sem consistência, imponderável, dos
pensamentos, por força se há-de fixar e brilhar?
Não.
O pó, a poeira no ar se respira, o próprio bafo
as espalha.



irene lisboa
um dia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991



11 março 2016

carlos de oliveira / posto de gasolina



Poiso a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a crina dum cavalo. Vêm mortos de sede. Julgo que se perderam no deserto e o seu destino é apenas terem pressa. Neste emprego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimento do mundo a acelerar-se pouco a pouco. Quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?



carlos de oliveira
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987



10 março 2016

sophia de mello breyner andresen / se todo o ser ao vento abandonamos



Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus, em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma beberá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.



sophia de mello breyner andresen
sião
organização de al berto, paulo da costa domingos
e rui baião
frenesi
1987




09 março 2016

tomaz kim / deve e haver



Que rosto procuramos no papel pautado
       Enquanto o aparo range na tarde sem-fim
E as moscas zumbem e a modorra cai,

Que corpo procuramos no escuro da noite
Envolvendo o silêncio do quarto alugado
E na repulsa de um leito solitário,

Que voz procuramos ouvir dia após noite
Nas ruas e casas e becos e praças e jardins
Não sabemos
Senão depois de os termos ignorado.


tomaz kim
cadernos de poesia
1952



08 março 2016

paul éluard / juventude gera juventude



Fui tal qual uma criança
E tal qual um homem
Conjuguei com paixão
O verbo ser e a minha juventude
Com vontade de ser homem

Queremo-nos mal quando se é jovem
Um homenzinho
Teria querido fazer de mim uma criança grande
Mais forte e mais justa do que um homem
E mais lúcida do que uma simples criança

Juventude força fraterna
O sangue repete a primavera
A aurora é de todas as idades
Numa qualquer delas se abre a porta
Resplandecente da coragem

Como um diálogo de amantes apaixonados
O coração só tem uma boca para falar.


paul éluard
últimos poemas de amor
corpo memorável 1948
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002



07 março 2016

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


II

Entre os dois mundos, a trégua em que não existimos.
Escolhas, dedicações… já outro som não têm
senão o som deste jardim descolorido

e nobre, onde teimoso o embuste
que mitigava a vida se mantém na morte.
Nos medalhões dos sarcófagos, as leigas

inscrições nas pedras cinzentas, curtas e
imponentes, mostram apenas o que resta
dos destinos de gente profana.

Ardem ainda de insaciáveis paixões,
sem qualquer escândalo, os ossos
dos milionários de nações

mais poderosas; rondam ainda os restos
das ironias dos príncipes, dos pederastas,
cujos corpos estão nas urnas espalhadas,

reduzidos a cinzas e não ainda castos.
Aqui o silêncio da morte prova
o silêncio civil de homens que continuam

a ser homens, de um tédio que no tédio
do Parque, discretamente, muda: e a cidade
que, indiferente, o relega para o meio

de tugúrios e igrejas, ímpia na sua piedade,
despe-se nele de todo o seu esplendor. A terra
semeada de urtigas e outras ervas dá

estes magros ciprestes, esta morrinha negra
que salpica os muros em redor
de pálidos rabiscos de buxo, que o crepúsculo

adoça e depois apaga em acres
cheiros de alga… essa erva rara
e inodora, onde roxo mergulha

o ar, com um arrepio de menta,
ou de feno podre, e calma aí começa,
na melancolia do dia, a abafada

trepidação da noite. Rude
é o clima, dulcíssima é a história
deste chão, entre estes muros, onde ressuma

outro chão; desta morrinha que
lembra outra morrinha; e ouvem-se soar
 – familiares em latitudes e

Horizontes onde as florestas inglesas coroam
Lagos perdidos no céu, por entre prados
Verdes como bilhares fosforescentes ou

Esmeraldas: «And O ye Fountains…» – piedosas
invocações




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005



06 março 2016

fernando lemos / cepti-cidade


           Ao Augusto Figueiredo


Em 1953
     atravessar a avenida só
para do outro lado
ficar a falar de Deus como se o conhecêssemos…
Ouvir cantar pneus
e continuar a supor que são sempre para os outros
todos os Pschitt! ignorantes
Fumar um cigarro entre duas dificuldades
como se fossem dedos
Ir a Paris dizer:  – Que bem!...
e voltar por entre tambores cardíacos

para uma cave de cobras e lagartos

a verificar que surge sempre

um iô-iô antes de uma guerra…

  

fernando lemos
teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004



05 março 2016

josé de almada negreiros / momento de poesia



Se escrevo ou leio ou desenho ou pinto
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar p’ra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado
até que cansado me julgo satisfeito.
(Tão gémeos são
a fadiga  e a satisfação!)
Em troca, se vou por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito,
sinto-me tão chefe do que está fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos de uma aflição
                                                               que não a minha,
que, sinceramente, não sei qual é melhor:
se estar sozinho em casa a dar à manivela da vida,
se ir por ai e ser Rei de tudo o que não é meu.

lisboa, novembro de 1939


almada negreiros
cadernos de poesia 5
lisboa
1942



04 março 2016

david mourão-ferreira / presídio



Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!



david mourão-ferreira
obra poética
editorial presença
1996



03 março 2016

per aage brandt / se mudares a entoação duma frase



*
se mudares a entoação duma frase,
por pouco que seja, então é outro que
falará na frase, e se mudares a sua velocidade,
então é outro que falará, e se pegares
na frase com uma pinça como a um in-
secto ou a um preparado, ou se nela, nela repetires
qualquer coisa, então estarás a falar com ironia
e, assim, não poderás estar a falar a sério,
porque o que disseres ou é falso ou tão verdadeiro, que
nem sequer será possível prenunciá-lo

*

  
per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004



02 março 2016

antónio quadros ferro / ou a empatia



Há-de haver um fundo inesperado no extremo oposto onde
morrem os sonhos, sob os pés onde procuramos a própria
sombra, fundida talvez à luz que um dia ameaçou o regresso
das dores passadas, logo a seguir à infância, muito antes da
poesia.


antónio quadros ferro
ou a empatia
artes e letras atelier
2015