04 setembro 2015

manuel gusmão / uma pedra na infância



Põe uma pedra
uma pedra sobre a infância

Para que de vez se cale essa respiração
contida suspensa no escuro

Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre
essa infância essa fala ininterrupta essa

falagem que falha e promete e inventa
os sonhos e as promessas o riso sem porquê

Para que de vez se interrompa a esperança esse
mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:

Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa
que é a infância, as vozes da noite do poço.

Apaga a infância isso que falta sempre à chamada
e para sempre trocou já os desejos e os medos.

Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio
as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.

Para que se cale de vez essa respiração que se ri
na cara da morte, nos olhos do enviado de deus

recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre
a infância e ouve a era a folhagem que cobrem

o céu em ruínas.

Também então havia uma pedra no canto do quarto
Alio onde a noite começava, era uma pedra e depois
crescia, petrificava-se no seu coração de pedra
dividia-se e eram várias crescendo; ocupando
todo o espaço do sono, do sonho do mundo.
Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos
que de pedra ficavam e o grito era uma pedra
que na garganta subia contra a outra pedra.
O próprio ar golpeado era e dividia a voz
pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.

Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma
outra infância de que possas recordar-te.
Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:
nada acontece. Não há

nenhuma voz na voz dos condenados.



manuel gusmão
leyapoemas, jl
2009




03 setembro 2015

fernando pinto do amaral / zeitgeist



Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.

Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.

Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.

Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
plo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pla madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acedia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.


fernando pinto do amaral
leyapoemas, jl
2009



02 setembro 2015

vitorino nemésio / o canário de oiro


Se deixo entrar este canário de oiro
Que me espreita e debica
(Eu que sou ossos a gaiola,
Débil passarinho loiro!
Eu, professor como um menino de escola!)...
Pois sim... Canta. Fica!

E então, para que tudo em mim se honre e execute
(Voz, penas e dejectos
Do canário),
Dou-lhe, seus passeadores, os meus afectos,
As minhas veias duras para grades:
Dentro delas, contrário,
Ele se embeleze e lute.

Ah, que o canário é o meu sangue talvez!

Mas então isto que é?! Que violino engoli?
Que frauta rude aveludou a minha noite?
Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?
Tão exacto, meu Deus, só vibrado por ti!

Musical, todo fogo, em mim me vou e expando,
Cada lágrima cai de mim como harmonia:
De quatro em quatro, vão a minha dor jogando
Essas lágrimas vãs no tapete do dia.

Que sérias são estas coisinhas de soar,
Poetas que vos is,
Soldados velhos,
Escolhendo na morte uma farda e um lugar!
Somos aqueles imbecis
Desenvolvidos nos espelhos,
Ai, nos espelhos paralelos
Da sala onde um de nós é sozinho a cantar!
Estamos fumados, amarelos,
De tanto ler e delirar.

Inúteis fôssemos, poetas;
Quero dizer: como as cascas cor de laranja ou alvas de ovo,
Que não são laranja nem ovo:
Ainda se havia de ver
Se as podridões quietas
Não são o sal e o renovo.

Que águia trouxe do céu meu diapasão de ferro?
Que milhafre criou minha carne em seu bico?
A mão qual foi que me rasgou no erro,
Mulher, o coração que te dedico?

Quem era aquele de quem tirei o sangue forte,
Esta pequena música corrente?
A veia mamou-a a morte,
Que engorda à custa da gente!

Quem era aquela mulher de branco
Que tinha os seios fortificados
E o ventre puro de onde arranco
E os altos olhos separados?
A de fogo e de fel, reclusa e encordoada?
A que nunca toquei porque estava selada?

E o anjo bravo, só lume, o outro sujeito,
Em que chama tocou sua asa desabrida?
Que maçarico foi que lhe platinou o peito
E o deixou em ferida?

Perguntaria,
Se esfinges mais houvesse,
Em que sal se tornou a que se deu por Maria
E me prometeu o que eu quisesse?

Ah! Aves de parabólica plumagem!
Anjos de matéria nenhuma e de toda a arrogância,
Mulheres e homens de que sou a última viagem
Começada no mar que me salgou a infância!

Ah, ovo que deixei, bicado e quente,
Vazio de mim, no mar,
E que ainda hoje deve boiar, ardente
Ilha!
E que ainda hoje deve lá estar!

Ah, Sete Espadas, minhas primas!
Estrelas nítidas e diversas!
Piões, pombas, baraças, e até as Sras. Simas
Todas quatro alteando as suas toucas perversas!

Onde? quando? já? outra vez? ou ainda não?

O tempo gasta a minha voz como se fosse o seu pão.

É ele, é ele o que tem tudo escondido,
Ele o que A desviou e A violou no vento,
Ele o que fez de mim o menino perdido
E me deu a navalha com que me fiz violento!

Ele leva para o alto as cordeiras e come-as,
Ele esconde no vale os lobos reduzidos,
Ele pede-nos as coisas emprestadas e some-as,
Ele gasta-nos a voz, os olhos e os ouvidos.

Tempo, ladrão, dá-me conta do fardo:
As saudades práli! As promessas práli!
O que te vale é o escuro: Eu ainda ardo;
Minhas estopas são embebidas por ti.

Ai, a cordeira preta, a do velo maior,
Um palmo de gemido, onde a terias posto?
Tinha os galhinhos entre a lã: é melhor
Desenriçá-Ios do meu desgosto.

Tempo, molde de todos os lugares,
Pegada de quem desaparece,
Esquema de bocejos e de esgares,
Frio de tudo o que arrefece.

Tempo que levas meu Pai morto,
Com catorze cavalos, todos de músculo solar,
E, para o ano, quinze! e crescendo! e ele absorto!
E os cavalos cada vez mais empinados! Morto…
Com que jarrete ou asa o hei-de eu alcançar?
     

vitorino nemésio
o bicho harmonioso
1938



01 setembro 2015

jorge luís borges / o mar



Antes que o sonho (ou o terror) tecera
mitologias e cosmogonias,
antes que o tempo se cunhasse em dias,
o mar, sempre o mar, já estava e era.
Quem é o mar? quem é o violento
e antigo ser que destrói os pilares
da terra, e é só um e muitos mares,
e abismo e resplendor e azar e vento?
Quem o olha vê-o pela vez primeira,
sempre. Com o assombro tal que as coisas
elementares deixam, as formosas
tardes, a lua, o fogo da fogueira.
Quem é o mar, quem sou? Sei-o no dia
que virá logo após minha agonia.


jorge luís borges
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001


31 agosto 2015

condessa de dia / numa azáfama constante



Os negócios não os deixam descansar
De noite fazem contas de dia galopam
A sua vida é uma azáfama constante
Desconhecem que sobre aa suas casas o céu é azul


condessa de dia
(final do séc. XII)
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de jorge sousa braga
assírio & alvim
2001



30 agosto 2015

fernando pessoa / autopsicografia



O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
  


fernando pessoa




29 agosto 2015

gil t. sousa / seguíamos a água



seguíamos a água
porque a secura nos cercava
como um animal
quase louco

do alto de pedras antigas
avistávamos cidades
para onde partíamos
a todas as horas

metrópoles
de ventos eufóricos
que nos sopravam
a humanidade inteira

na forma
do grito e do olhar
e no incêndio infinito
do sangue

e eram tão poderosas
as palavras que sabíamos
tão nobres os silêncios
por onde elas espelhavam

e tão grande
era tão grande o coração
que as ouvia,
que as guardava

num secreto
para sempre!



gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014




28 agosto 2015

sophia de mello breyner andresen / as fotografias



Era quase no inverno aquele dia
Tempo de grandes passeios
Confusamente recordados ─
A estrada atravessava a serra pelo meio
Em rugosos muros de pedra e musgo a mão deslizava ─
Tempo de retratos tirados
De olhos franzidos sob um sol de frente
Retratos que guardam para sempre
O perfume de pinhal das tardes
E o perfume de lenha e mosto das aldeias.



sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004



27 agosto 2015

amadeu baptista / carta de atenas



16

Há uma cidade sem mar em que procuro uma praia.
Os homens chegam. Não despertaram as casas
e já tomo nos braços o meu vazio. Eles dizem:
–  “ Procurámos a sombra de uma mulher.”

Durante toda a manhã as portas franqueadas
deixaram entrar toda a espécie de gente.
Na multidão um vagabundo chama o meu nome.
Não sei que responda. Passou demasiado tempo.

Os exércitos arrebataram o triunfo.
Amontoaram os cadáveres no silêncio.
Pela minha vigília o pesadelo alastra.
Há demasiado sangue nestes epitáfios.

Pouco tenho a dizer.
O eco subverte o clarão no horizonte
quando a pira está pronta para o sacrifício.
A inquietação é agora a minha alma.

Em nome da beleza a praia não existe.
A sombra procurada é só uma miragem.
O auriga avança no firmamento.
Pelo meu nome a cinza é um ser vivente.



amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999




26 agosto 2015

josé agostinho baptista / o centro do universo



É o fim a teus pés,
as caravanas partem através da bruma,
os filhos partem através de ti.
No interior dos salmos escutas o seu coração.

Assim te busca o tigre com seus dentes de sabre.
Cortante é o fio que te assalta, irrompendo pela carne.
Outro ritmo explicaria as investidas do sangue,
o desejo no florido alpendre dos amores.

Alumia-o se puderes, lua tão branca.

Porque ele não sabe em que reduto se oculta a garra
donde o terror emerge.



josé agostinho baptista
biografia
o centro do universo
assírio & alvim
2000



25 agosto 2015

glória gervitz / migrações (fragmentos)



                         Recomeço
Não é na obscuridade da fé
É na dúvida
 
Porque não chove?
Jamais regressarei
E o aqui vivido perder-se-á para sempre
 
Lá fora o ar enfraquece
                             O Verão começa a apodrecer
 
Não se pode falar do que realmente importa
Arranjava-se como quando era rapariga
                    As sobrancelhas desenhadas a lápis
                    A boca muito vermelha entre as rugas
 
Serei eu essa mulher?
Era ainda quase jovem com medo de não ser ninguém
E o desejo era monótono e negro com uma caixa
          de laca chinesa




glória gervitz
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de Talábriga




24 agosto 2015

mário cesariny / o riso útil


o riso útil da amorosa
retine de tal maneira
no pobre quarto côr-de-rosa

que as tuas mãos de senhor
já não sabem por que milagre
ainda é puro o amor



mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981



23 agosto 2015

alberto caeiro / ao entardecer



Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele!  Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...



alberto caeiro
o guardador de rebanhos