14 fevereiro 2015

manuel de freitas / 8 410500 001100



Estou a ver o estilo: a folha de canabis
ao peito, os óculos de Foucault
não-li e uma devoção macrobiótica
tão estúpida quanto inquebrantável.
Esta gente custa - e o que é pior:
cheira mal. Assoa-se à manga
da camisola, cheio de ideologia
nos sovacos. E vem fazer compras
como se estivesse outra vez no Lux,
entre amigos abstémios que só
não legalizam a vida porque
ainda há limites para o mau gosto.

  

manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001





13 fevereiro 2015

samuel beckett / worstward ho


2/
Primeiro o corpo. Não. Primeiro o lugar. Não. Primeiro ambos. Ora um deles. Ora o outro. Até fartar de um deles e tentar o outro. Até fartar também deste e fartar outra vez de um deles. Assim em diante. Dalgum modo em diante, até fartar de ambos. Vomitar e partir. Para onde nem um nem outro. Até fartar desse lugar. Vomitar e voltar. Outra vez o corpo. onde nenhum. Outra vez o lugar. Onde nenhum. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Melhor outra vez. Ou melhor pior. Falhar pior outra vez. Ainda pior outra vez. Até fartar de vez. Vomitar de vez. Partir de vez. Onde nem um nem outro de vez. De vez e tudo.



samuel beckett
últimos trabalhos de samuel beckett
tradução de miguel esteves cardoso
o independente / assírio & alvim
1996




12 fevereiro 2015

irene lisboa / amor



Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta.
Poderosa e plácida.

Amor, tão chão de Amor,
Que sensível és…
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!

Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.

Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida…
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?

  

irene lisboa
1892-1958




11 fevereiro 2015

fernando luís / num café de bolonha



1
Saíu de um nome sem eco
e está sentado à minha mesa.
Com o sorriso pronto
a contornar o tédio a
quietude da minha existência.
O olhar tão nublado
como pisada erva e carvão
desenhava a fútil harmonia
entre alma e desejo,
vontade e o remoinho dela
cá fora.
Ali estava sem ocasião
para o destino. Por outras
palavras,
nunca quis olhar a agitada
superfície do lago
nem perder o seu rosto.



fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




10 fevereiro 2015

caio resende / retrato para lúcia


A tarde mastiga o para-sol da minha alma
e lembro-me de você, Lúcia –
sombra esguia estirada no limbo
orvalhando o balir da juventude
É quando desço
do mirante
dessa gélida vertigem –
onda inalada no sangue
de antigos girassóis –
e martelos segredam cores ou a febre
, o mar na resina dos dentes
encontra o silêncio na renda
Há nesse instante
um tumulto de braços
soerguendo a manhã
eu a vejo
desse espelho a esculpir omoplatas
nas paredes do tempo
Qual pedra derradeira
serrania e correnteza
tua pele feito estaca na urze
inda hoje
suaviza o bronze dos trovões
Sua Vulva, Lúcia
e seu Ânus
são duas prímulas
cortadas ao meio
pelos corredores ausentes dos meus olhos
E há nas ruínas deste esforço
te conhecer novamente
da costura exata da noite
deste desenho ornado de fúria
em que o fôlego se faz
e onde duas esfinges submersas
se derramam da vitrine do caos


caio resende






09 fevereiro 2015

antónio franco alexandre / a questão urbana


  1

  estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
  prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
  movimentam no espaço, e aos bandos
  os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
  é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
  translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
  que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
  dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.


  2

  movem nos muros, a vagina mineral das mães
  adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
  e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
  algum visível afastamento das madeiras, algum
  pensamento violentado, por isso as coisas permanecem sentadas
  e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.


  3

  arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
  entendem, decifram sob o grés as patadas da terra,
  espalham na violência um musgo que prenuncia a
  transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
  bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
  algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
  e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
  se perde pé muito de repente e se afundam as asas
  como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.


  4

  separam, mas esse
  é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
  as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
  nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
  contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
  como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
  onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia
                                                                        [desejámos.


  5

  outras, as que brilham, as que espalham um lenço verde
  ao pescoço dos cães, e largas redes no ar empalidecido
  invisíveis capturam, as que vêm
  de dentro de um muro, e sobre um muro movem
  ombros de grés, então é noite, apetece uma nuvem,
  uma pedra sem cor que nos oculte o peito, o sangue
  transborda, e os apitos soam com a fúria dos grandes animais.


  6

  vêm, talvez, do acaso, como grandes nuvens de musgo
                                                                [amordaçado,
  ou animais encostados, ou a violência de uma gengiva
  onde o sangue bateu com patadas de cuspo. uma manhã
  se afastam no rancor, recobertas de grés permanecem sentadas,
  prenunciando, talvez, o ronco insuportável de uma boca.


  7

  o que movem no ar movem no sangue, um grés animal,
  a madeira das mães anoitecidas.
  amealham no peito os grãos translúcidos, prenunciando
  algum afastamento decisivo.
  o que afastam capturam. é um novo muro, então,
  à sombra das cidades, deitado sobre a boca.



  antónio franco alexandre
  os objectos principais
  centelha
  1979




07 fevereiro 2015

paul auster / noites brancas



Ninguém aqui,
e o corpo diz: o que se diz
não é para ser dito. Mas ninguém
é também um corpo, e o que diz o corpo
ninguém ouve
senão tu.

Noite e queda de neve. A repetição
de um homicídio
por entre as árvores. A caneta
move-se através da terra: já não sabe
o que vai acontecer, e desapareceu
a mão que a segura.

E no entanto, escreve.
escreve: no princípio,
por entre as árvores, um corpo veio
caminhando da noite. Escreve:
a brancura do corpo
é a cor da terra. É terra,
e a terra escreve: tudo
é a cor do silêncio.

Já não estou aqui. Nunca disse
o que dizes
que eu disse. E no entanto, o corpo é um lugar
onde nada morre. E todas as noites,
pelo silêncio das árvores, sabes
que a minha voz
vem caminhando para ti.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002




06 fevereiro 2015

ernesto sampaio / o menos possível



Respirar
o menos possível
nestas cidades
de uma tristeza
sem idade
abrindo o espaço
com os gestos lentos de um náufrago
a caminho
do fundo

A noite sobe-me
na voz
como um lugar
capaz de imaginar
sozinho
o seu cenário
onde o azul
dorme
numa cave
com os cães



ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




05 fevereiro 2015

carlos drummond de andrade / procura da poesia



Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
   
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.   
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
   
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação
Que se dissipou, não era poesia
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
   
Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

  

carlso drummond de andrade





04 fevereiro 2015

hermann hesse / o lobo das estepes



Eu, lobo das estepes, corro, corro,
a neve cobre o mundo,
da bétula levanta voo o corvo,
mas nunca aparece uma lebre, nunca aparece um cervo.
E como eu amo os cervos!
Se acaso encontrasse algum,
prendia-o com garras e dentes:
é a coisa mais bela em que penso.
Com os sensíveis seria também sensível,
devorava-os todos de extremo a extremo,
bebia-lhes até ao fundo o sangue púrpura e espesso,
e solitariamente uivava pela noite dentro.
Contentava-me com uma lebre.
É tão doce à noite o sabor da sua carne quente.
Porventura foi-me negado tudo quanto possa, um pouco,
alegrar a vida, um pouco apenas?
A minha companheira, há muito que a não tenho,
o pêlo da minha cauda começa a ficar cor de cinza,
e só quando há bastante luz é que vejo.
Agora corro e sonho com cervos,
ouço o vento soprar nas grandes noites de inverno,
e a minha alma dolorosa, entrego-a eu ao demónio.



hermann hesse
doze nós numa corda
herberto helder
assírio & alvim
1997




03 fevereiro 2015

ana paula inácio / ó césar


não sou uma mulher moderna
não me ligo à net
gosto de compras ao vivo
cujas listas faço em cadernos de argolas
que depois esqueço
e só me lembro de elixir para aclarar a voz,
tenho tantas embalagens
como Warhol de Tomato Soap
ou de detergente Brillo,
para que ao chegares a casa
te envolva, te abrace e te queira
mas nem só de voz vive o homem
dizes tu,
e então a minha saúda-te
como a daqueles que vão morrer


ana paula inácio
2010-2011
averno
2011




02 fevereiro 2015

eugénio de andrade / há dias em que julgamos



Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

  

eugénio de andrade





01 fevereiro 2015

mário sá-carneiro / cinco horas



Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto... A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e que fresca é!

Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais).

Sobre ela posso escrever
Os meus versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber...

Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.

Ou acendo cigarros,
- Pois há um ano que fumo -
Imaginário presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente...)

Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

E o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha ideia persiste
E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades
A minha recordação,
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades...

(Que história de Oiro tão bela
Na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou...).

Nos cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
- Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passe em corrida.

Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
P'ra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.

- Cafés da minha preguiça,
Sois hoje - que galardão! -
Todo o meu campo de acção
E toda a minha cobiça.



mário sá-carneiro