13 março 2014

antónio gedeão / poema da auto-estrada



Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chegou aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.



antónio gedeão




12 março 2014

luís amaro / a teixeira de pascoaes


I
Toda a noite transforma.
A verdade das coisas está perto
E o silêncio fala
Com as sombras da nossa alma, iguais
Às sombras dum jardim lunar
Com árvores e flores
Que reflectem nossa paisagem íntima.

Imagem do silêncio,
Ó fonte do meu sonho, recolhida
E imersa na penumbra…

Longe, uma tristeza irmã abre-me os braços
Onde tudo me diz
O sentido da vida!


luís amaro
árvores
inverno de 1951-52




11 março 2014

luís miguel nava / céu árido



Devemos, ao falar, ter o maior cuidado com as palavras que empregamos, pois, sendo algumas delas particularmente vulneráveis às raízes, arriscamo-nos a ver apoderar-se-nos da fala uma vegetação que talvez chegue mesmo a destruir-nos. A fala quer-se árida, de uma aridez idêntica à roupa que nos cobre o corpo ou à do céu, de que me esforço, sempre que dele falo, por deixar à mostra um dos agrafos mais profundos.

  

luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002


10 março 2014

carlos drummond de andrade / memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão

   

carlos drummond de andrade



09 março 2014

herberto helder / elegia múltipla


I

Como se poderia desfazer em mim a tua nobre cabeça, essa
torre deslumbrada pelo mudo calor dos dias, pelo
brilhante gelo nocturno? É pela cabeça
que os mortos maravilhosamente pesam
no  nosso coração. Essas flores intangíveis para as quais
temos medo de sorrir, as armas
lavradas, as liras que estremecem e pendem
sobre os rios agitados das coisas. Só o amor as abre
e vê sua confusa e grave geografia, as fontes
livres de onde os pensamentos crescem
como a folhagem iluminada das antigas idades
do ouro.

Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo,
procuro colocar-me num ponto irradiante
da terra, olhar de frente
com toda a inspiração do meu passado, e estar
à altura dos mortos, na zona
esplêndida e vasta
da sua nobreza - receber essa espécie de força
indestrutível
que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias,
de que as rosas bebem  o jeito aéreo e a boca
a delicadeza misteriosa.

Existem árvores cercando os animais sonhadores, o grande
arco das eras com os fogos rápidos
presos como campânulas, e a fixa vontade
do homem ardendo e gelando
no tempo. À beira dos rios canta-se ou deixa-se
que as mãos se gastem, deslumbradas
do seu poder, da sua grande miséria
como um sonho. Um nome, contudo, existe
suspenso sobre as estações do ano. Essa cabeça
dos mortos - a tua cabeça aérea como o verde
das pedras ou o movimento
das corolas frias,
essa cabeça sumptuosa, rodeada de estreitas
víboras -
sobe do nosso, do meu coração, até que a minha
mesma cabeça
nada mais seja que a possessiva, doce cabeça
dos mortos.



herberto helder
elegia múltipla, poema I
poesia toda
assírio & alvim
1996



08 março 2014

ezra pound / saudação




Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.



ezra pound



07 março 2014

juan luís panero / palavras e presságios



Voltar a uns versos de Kavafis, de Eliot,
como quem regressa a uma casa que foi nossa há anos.
Repetir as sílabas, iluminar os símbolos
como fechadas salas, janelas cheias de pó
que escondem um jardim perdido, árvores da morte.
Melancolia do regresso e medo do vazio,
madeira que range, esvoaçar de sombras
e, de repente, num quarto, perdida
como um velho copo ou um espelho embaciado,
encontrares a chave da tua vida.
Palavras que te avisaram: «Um monótono dia
segue-se a outro igualmente monótono»,
ou te advertiram: «Nascer, foder, morrer.
Isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo».
Palavras que a velhice e a noite me oferecem,
presságios que não entendi, anunciadas derrotas.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d'água
2003



06 março 2014

josé gomes ferreira / devia morrer-se de outra maneira



"Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: «Fulano de tal
comunica a V. Ex.ª que vai transformar-se em nuvem
hoje às 9 horas. Traje de passeio».
E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos
todos assistir à despedida.
Apertos de mão quentes. Ternura de calafrio.
«Adeus! Adeus!»
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos...
em seguida, os lábios... depois, os cabelos...) a carne,
em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) - nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis..."

  

josé gomes ferreira



05 março 2014

manuel antónio pina / o nome do cão




O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
 
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
 
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
 

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
 
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
 
Então sonhava
o sonho sólido que existia.
E não compreendia.
 
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
 
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
 
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
 
E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."


manuel antónio pina
primeiros poemas
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



04 março 2014

samuel beckett / sou esta areia que se esvai



sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo


caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha

1948



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



03 março 2014

josé tolentino mendonça / murmúrios do mar



"Paga-me um café e conto-te
a minha vida"

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
e uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu , não, nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
Que derruba primeiro no nosso corpo
Tudo o que seremos depois

"pago-te um café se me contares
o teu amor"


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



02 março 2014

henri michaux / o pássaro que se apaga




É durante o dia que ele aparece, no dia mais branco.
Pássaro.

Bate as asas, voa.
Bate as asas, apaga-se.

Bate as asas, ressurge.

Pousa. E depois desaparece. Com um bater de asas
apagou-se no espaço branco.

É assim que se comporta o meu pássaro familiar,
o pássaro que vem povoar o céu
do meu pequeno pátio. Povoar?
Bem se vê de que maneira...

Mas permaneço quieto, a contemplá-lo,
fascinado pela sua aparição,
fascinado pela sua desaparição.



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999



01 março 2014

pier paolo pasolini / as belas bandeiras


Os sonhos da manhã: quando
o sol já reina
com uma plenitude
que ninguém sente melhor que o vendedor ambulante
que há muitas horas anda pelas ruas
com barba de doente
sobre as rugas da pobre juventude:
quando o sol reina
em reinos de frutos e legumes já quentes, sobre cortinas
puídas, multidões
com roupas a cheirar obscuramente a miséria
— e já centenas de eléctricos foram e voltaram
pelos carris das avenidas que rodeiam a cidade,
com o seu perfume inexprimível,

os sonhos das dez da manhã,
para quem dormita, sozinho,
como um peregrino no seu catre,
um cadáver sem nome,
— surgem em luminosas letras gregas,
e, na sacralidade simples de duas ou três sílabas,
cheias, justamente, da brancura triunfante do sol —
são presságio de uma realidade
profundamente amadurecida e agora já madura, como o sol,
para ser saboreada, ou meter medo.

O que me diz o sonho da manhã?
«o mar, com ondas lentas, grandiosas, de grãos azuis,
assanha-se, agitando-se com fúria uterina,
irredutível
e como que feliz — porque também é felicidade
confirmar o mais atroz acto do destino —
rói a tua ilha, agora reduzida
a poucos metros de terra. ..»

Socorro, a solidão aproxima-se!

Não importa saber que a desejei, como um rei.

No sono, em mim, um menino mudo assusta-se,
pede piedade, apressa-se a correr para os abrigos,
com uma agitação
que «a virtude faz esquecer», pobre criatura.
Aterra-o a ideia
de estar só
como um cadáver nas profundezas da terra.

Adeus, dignidade, no sonho, embora matutino!
Quem tem de chorar chora,
quem tem de se agarrar às abas da casaca de alguém,
agarra-se, e vai puxando, puxando,
para que os rostos cor de lama se voltem,
e o olhem nos olhos assustados
e fiquem a par da sua tragédia,
e vejam bem o que há de medonho no seu estado!

Sobre tudo isso, a brancura do sol,
como um fantasma que a história
faz pesar nas pálpebras
com o peso dos mármores barrocos ou românicos...

Fui eu que quis a minha solidão.
Por um processo monstruoso
que talvez só um sonho sonhado no seio
de outro sonho poderia revelar...

Entretanto, estou só.
Perdido no passado.
(Porque o homem tem na vida uma só época.)

De repente, os meus amigos poetas,
que partilham comigo a feia brancura
destes Anos Sessenta,
homens e mulheres, pouco mais velhos
ou mais jovens — estão ali, ao sol.

Não soube ter a graça necessária
para os manter por perto — à sombra de uma vida
cujo curso se mantém por demais ligado
à inércia radical da minha a1ma.

Depois, a velhice fez
da minha mãe e de mim
duas máscaras
que, porém, nada perderam
da ternura matinal
— e a antiga cerimónia
repete-se
com uma autenticidade
que só um sonho sonhado no seio de outro sonho
me permitirá talvez chamar pelo seu nome.

O mundo inteiro é o meu corpo insepulto.
Atol que se esboroa
sob as pancadas repetidas dos grãos azuis do mar.

Que hei—de fazer senão voltar a ser digno, ao acordar?
Talvez tenha chegado
a hora do exílio: a hora em que um antigo daria realidade
à realidade,
e a solidão amadurecida à sua volta
teria a forma da solidão.

Mas eu — como no meu sonho —
continuo a embalar-me em ilusões, dolorosas,
de verme paralisado por forças que não entende:
«não! não! é só um sonho!
a realidade
está lá fora, ao sol triunfante,
nas avenidas e nos cafés vazios,
na afonia suprema das dez horas da manhã,
nu m dia como os outros, com a sua cruz!»

O meu amigo com queixo de papa, o meu
amigo de olhos de avelã. ..
os meus queridos amigos do Norte
escolhidos por afinidades electivas doces como a vida ,
─ estão ali, ao sol.

A Elsa, com a sua loura dor,
— corcel ferido, caído,
sangrando — também lá está.

E a minha mãe está junto de mim...
mas para além de qualquer limite temporal:
somos dois sobreviventes num só.
Os seus suspiros, aqui, na cozinha,
o seu desassossego a cada sombra de notícia degradante,
cada suspeita de reinvestida
do ódio dessa horda de goliardos que riem
por baixo deste quarto onde agonizo
— são apenas o que na minha solidão é natural.

Como uma rainha atirada para a fogueira com o seu rei,
ou sepultada com ele
um túmulo que se vai como um batel
rumo aos milénios — a fé dos Anos Cinquenta
está aqui, comigo, já levemente para lá dos limites do tempo,
deixar-se também esboroar
pela paciência raivosa dos grãos azuis do mar.

E...
os meus amores de sensualidade pura,
repetidos nos vales sagrados da luxúria,
sádica, masoquista, as calças
com o inchaço morno
que marca o destino de um homem
─  são actos que cumpro a sós
no meio de um mar incrivelmente revolto.

Lentamente, os milhares de gestos sagrados,
a mão sobre o inchaço morno,
os beijos, sempre em bocas diferentes,
cada vez mais virgens,
cada vez mais próximas do encanto da espécie,
da norma que faz dos filhos ternos pais,
lentamente
foram-se transformando em monumentos de pedra
que aos milhares povoam a minha solidão.

Esperam
que uma nova vaga de racionalidade,
ou um sonho sonhado no fundo de outro sonho, fale deles.
Assim acordo,
mais uma vez:
e visto-me, sento-me à mesa de trabalho.
A luz do sol é já mais madura,
os vendedores ambulantes estão mais longe,
é mais acre, nos mercados do mundo, a tepidez das verduras,
ao longo das avenidas de inexprimível perfume,
na orla dos mares, nos sopés dos vulcões.
O mundo todo trabalha, na sua época futura.

Ah, belas bandeiras dos Anos Quarenta!
Pretexto para o bobo chorar.





pier paolo pasolini
una disperata vitalitá
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005