09 março 2014

herberto helder / elegia múltipla


I

Como se poderia desfazer em mim a tua nobre cabeça, essa
torre deslumbrada pelo mudo calor dos dias, pelo
brilhante gelo nocturno? É pela cabeça
que os mortos maravilhosamente pesam
no  nosso coração. Essas flores intangíveis para as quais
temos medo de sorrir, as armas
lavradas, as liras que estremecem e pendem
sobre os rios agitados das coisas. Só o amor as abre
e vê sua confusa e grave geografia, as fontes
livres de onde os pensamentos crescem
como a folhagem iluminada das antigas idades
do ouro.

Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo,
procuro colocar-me num ponto irradiante
da terra, olhar de frente
com toda a inspiração do meu passado, e estar
à altura dos mortos, na zona
esplêndida e vasta
da sua nobreza - receber essa espécie de força
indestrutível
que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias,
de que as rosas bebem  o jeito aéreo e a boca
a delicadeza misteriosa.

Existem árvores cercando os animais sonhadores, o grande
arco das eras com os fogos rápidos
presos como campânulas, e a fixa vontade
do homem ardendo e gelando
no tempo. À beira dos rios canta-se ou deixa-se
que as mãos se gastem, deslumbradas
do seu poder, da sua grande miséria
como um sonho. Um nome, contudo, existe
suspenso sobre as estações do ano. Essa cabeça
dos mortos - a tua cabeça aérea como o verde
das pedras ou o movimento
das corolas frias,
essa cabeça sumptuosa, rodeada de estreitas
víboras -
sobe do nosso, do meu coração, até que a minha
mesma cabeça
nada mais seja que a possessiva, doce cabeça
dos mortos.



herberto helder
elegia múltipla, poema I
poesia toda
assírio & alvim
1996



08 março 2014

ezra pound / saudação




Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.



ezra pound



07 março 2014

juan luís panero / palavras e presságios



Voltar a uns versos de Kavafis, de Eliot,
como quem regressa a uma casa que foi nossa há anos.
Repetir as sílabas, iluminar os símbolos
como fechadas salas, janelas cheias de pó
que escondem um jardim perdido, árvores da morte.
Melancolia do regresso e medo do vazio,
madeira que range, esvoaçar de sombras
e, de repente, num quarto, perdida
como um velho copo ou um espelho embaciado,
encontrares a chave da tua vida.
Palavras que te avisaram: «Um monótono dia
segue-se a outro igualmente monótono»,
ou te advertiram: «Nascer, foder, morrer.
Isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo».
Palavras que a velhice e a noite me oferecem,
presságios que não entendi, anunciadas derrotas.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d'água
2003



06 março 2014

josé gomes ferreira / devia morrer-se de outra maneira



"Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: «Fulano de tal
comunica a V. Ex.ª que vai transformar-se em nuvem
hoje às 9 horas. Traje de passeio».
E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos
todos assistir à despedida.
Apertos de mão quentes. Ternura de calafrio.
«Adeus! Adeus!»
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos...
em seguida, os lábios... depois, os cabelos...) a carne,
em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) - nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis..."

  

josé gomes ferreira



05 março 2014

manuel antónio pina / o nome do cão




O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
 
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
 
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
 

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
 
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
 
Então sonhava
o sonho sólido que existia.
E não compreendia.
 
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
 
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
 
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
 
E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."


manuel antónio pina
primeiros poemas
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



04 março 2014

samuel beckett / sou esta areia que se esvai



sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo


caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha

1948



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



03 março 2014

josé tolentino mendonça / murmúrios do mar



"Paga-me um café e conto-te
a minha vida"

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
e uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu , não, nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
Que derruba primeiro no nosso corpo
Tudo o que seremos depois

"pago-te um café se me contares
o teu amor"


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



02 março 2014

henri michaux / o pássaro que se apaga




É durante o dia que ele aparece, no dia mais branco.
Pássaro.

Bate as asas, voa.
Bate as asas, apaga-se.

Bate as asas, ressurge.

Pousa. E depois desaparece. Com um bater de asas
apagou-se no espaço branco.

É assim que se comporta o meu pássaro familiar,
o pássaro que vem povoar o céu
do meu pequeno pátio. Povoar?
Bem se vê de que maneira...

Mas permaneço quieto, a contemplá-lo,
fascinado pela sua aparição,
fascinado pela sua desaparição.



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999



01 março 2014

pier paolo pasolini / as belas bandeiras


Os sonhos da manhã: quando
o sol já reina
com uma plenitude
que ninguém sente melhor que o vendedor ambulante
que há muitas horas anda pelas ruas
com barba de doente
sobre as rugas da pobre juventude:
quando o sol reina
em reinos de frutos e legumes já quentes, sobre cortinas
puídas, multidões
com roupas a cheirar obscuramente a miséria
— e já centenas de eléctricos foram e voltaram
pelos carris das avenidas que rodeiam a cidade,
com o seu perfume inexprimível,

os sonhos das dez da manhã,
para quem dormita, sozinho,
como um peregrino no seu catre,
um cadáver sem nome,
— surgem em luminosas letras gregas,
e, na sacralidade simples de duas ou três sílabas,
cheias, justamente, da brancura triunfante do sol —
são presságio de uma realidade
profundamente amadurecida e agora já madura, como o sol,
para ser saboreada, ou meter medo.

O que me diz o sonho da manhã?
«o mar, com ondas lentas, grandiosas, de grãos azuis,
assanha-se, agitando-se com fúria uterina,
irredutível
e como que feliz — porque também é felicidade
confirmar o mais atroz acto do destino —
rói a tua ilha, agora reduzida
a poucos metros de terra. ..»

Socorro, a solidão aproxima-se!

Não importa saber que a desejei, como um rei.

No sono, em mim, um menino mudo assusta-se,
pede piedade, apressa-se a correr para os abrigos,
com uma agitação
que «a virtude faz esquecer», pobre criatura.
Aterra-o a ideia
de estar só
como um cadáver nas profundezas da terra.

Adeus, dignidade, no sonho, embora matutino!
Quem tem de chorar chora,
quem tem de se agarrar às abas da casaca de alguém,
agarra-se, e vai puxando, puxando,
para que os rostos cor de lama se voltem,
e o olhem nos olhos assustados
e fiquem a par da sua tragédia,
e vejam bem o que há de medonho no seu estado!

Sobre tudo isso, a brancura do sol,
como um fantasma que a história
faz pesar nas pálpebras
com o peso dos mármores barrocos ou românicos...

Fui eu que quis a minha solidão.
Por um processo monstruoso
que talvez só um sonho sonhado no seio
de outro sonho poderia revelar...

Entretanto, estou só.
Perdido no passado.
(Porque o homem tem na vida uma só época.)

De repente, os meus amigos poetas,
que partilham comigo a feia brancura
destes Anos Sessenta,
homens e mulheres, pouco mais velhos
ou mais jovens — estão ali, ao sol.

Não soube ter a graça necessária
para os manter por perto — à sombra de uma vida
cujo curso se mantém por demais ligado
à inércia radical da minha a1ma.

Depois, a velhice fez
da minha mãe e de mim
duas máscaras
que, porém, nada perderam
da ternura matinal
— e a antiga cerimónia
repete-se
com uma autenticidade
que só um sonho sonhado no seio de outro sonho
me permitirá talvez chamar pelo seu nome.

O mundo inteiro é o meu corpo insepulto.
Atol que se esboroa
sob as pancadas repetidas dos grãos azuis do mar.

Que hei—de fazer senão voltar a ser digno, ao acordar?
Talvez tenha chegado
a hora do exílio: a hora em que um antigo daria realidade
à realidade,
e a solidão amadurecida à sua volta
teria a forma da solidão.

Mas eu — como no meu sonho —
continuo a embalar-me em ilusões, dolorosas,
de verme paralisado por forças que não entende:
«não! não! é só um sonho!
a realidade
está lá fora, ao sol triunfante,
nas avenidas e nos cafés vazios,
na afonia suprema das dez horas da manhã,
nu m dia como os outros, com a sua cruz!»

O meu amigo com queixo de papa, o meu
amigo de olhos de avelã. ..
os meus queridos amigos do Norte
escolhidos por afinidades electivas doces como a vida ,
─ estão ali, ao sol.

A Elsa, com a sua loura dor,
— corcel ferido, caído,
sangrando — também lá está.

E a minha mãe está junto de mim...
mas para além de qualquer limite temporal:
somos dois sobreviventes num só.
Os seus suspiros, aqui, na cozinha,
o seu desassossego a cada sombra de notícia degradante,
cada suspeita de reinvestida
do ódio dessa horda de goliardos que riem
por baixo deste quarto onde agonizo
— são apenas o que na minha solidão é natural.

Como uma rainha atirada para a fogueira com o seu rei,
ou sepultada com ele
um túmulo que se vai como um batel
rumo aos milénios — a fé dos Anos Cinquenta
está aqui, comigo, já levemente para lá dos limites do tempo,
deixar-se também esboroar
pela paciência raivosa dos grãos azuis do mar.

E...
os meus amores de sensualidade pura,
repetidos nos vales sagrados da luxúria,
sádica, masoquista, as calças
com o inchaço morno
que marca o destino de um homem
─  são actos que cumpro a sós
no meio de um mar incrivelmente revolto.

Lentamente, os milhares de gestos sagrados,
a mão sobre o inchaço morno,
os beijos, sempre em bocas diferentes,
cada vez mais virgens,
cada vez mais próximas do encanto da espécie,
da norma que faz dos filhos ternos pais,
lentamente
foram-se transformando em monumentos de pedra
que aos milhares povoam a minha solidão.

Esperam
que uma nova vaga de racionalidade,
ou um sonho sonhado no fundo de outro sonho, fale deles.
Assim acordo,
mais uma vez:
e visto-me, sento-me à mesa de trabalho.
A luz do sol é já mais madura,
os vendedores ambulantes estão mais longe,
é mais acre, nos mercados do mundo, a tepidez das verduras,
ao longo das avenidas de inexprimível perfume,
na orla dos mares, nos sopés dos vulcões.
O mundo todo trabalha, na sua época futura.

Ah, belas bandeiras dos Anos Quarenta!
Pretexto para o bobo chorar.





pier paolo pasolini
una disperata vitalitá
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005




28 fevereiro 2014

italo calvino / as cidades invisíveis

silvia como, via flickr
As cidades e os mortos. 4


O que torna Árgia diferente das outras cidades é que em vez de ar tem terra. As ruas estã completamente cobertas de terra, as salas cheias de argila até ao tecto, sobre as escadas assenta outra escada em negativo, por cima dos telhados das casas pairam camadas de terreno rochoso como céus com nuvens. Se os habitantes poderão andar pela cidade alargando os cunículos dos vermes e as fendas em que se insinuam as raízes, não o sabemos: a humidade quebra os corpos e deixa-lhes poucas forças; convém que fiquem quietos e deitados, de tão escura que é.
De Árgia, cá de cima, não se vê nada; há quem diga: «É lá em baixo» e só nos resta acreditar; os lugares são desertos. De noite, encostando o ouvido ao chão, às vezes ouve-se bater uma porta.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999


27 fevereiro 2014

yorgos seferis / o anjo



I
O anjo
há três anos atentos o esperávamos
olhando muito perto
os pinheiros a rebentação e as estrelas.
Unindo o gume do arado ou a quilha do barco
procurávamos encontrar de novo a primeira semente
para que recomeçasse o drama antiquíssimo.

Voltámos quebrados a nossas casas
com membros lassos, com a boca decrépita
pelo sabor da ferrugem e da ressalga.
Quando despertámos viajámos para norte, alheios
afundados dentro de névoas das asas imaculadas
          dos cisnes que nos feriam.
Nas noites de inverno enlouquecia-nos o vento forte do le-
          vante
Nos verões perdíamo-nos dentro da agonia do dia que não
          conseguia expirar.

Trouxemos connosco
estes relevos de uma arte humilde.



yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




26 fevereiro 2014

fernando echevarría / adeus



Quando eu, de tão longe, for azul,
pensai em mim.
De longe, ver-vos-ei
mais do que vi.

Como ilhas
que perdi
do coração. E sinto
doer fora de mim.

          Porque me leva um anjo.
como uma pomba
o tenho dentro.
E ele tem-me em onda.

Quando eu, além de azul…
Pensai que «o levou
um anjo inexorável
que tinha coração».



fernando echevarria
entre dois anjos
1956



25 fevereiro 2014

daniel filipe /a invenção do amor



Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
     janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
      relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
     nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
     quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome
     de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio  A descoberta  A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou  A TV anuncia
iminente a captura  A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
     fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique  Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da
     defesa passiva
Todos  Decrete-se a lei marcial com todas as suas conse-
     quências
O perigo justifica-o  Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas  Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inex-
     plicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem
     razão
Aplicado no entanto  Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psi-
     cólogos
Ainda bem que se revelou a tempo  Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros  É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das nor-
     mas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam ao
     temor do castigo
Que todos estejam a postos  Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais Iigeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa
Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância  Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
Esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais
     drásticas
Por decisão governamental estão suspensas as liberdades
     individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da
     correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher
     amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los  É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater

É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz  Alguém que os
     escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado
     de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância  Campos verdes floridos
Água simples correndo  A brisa nas montanhas
Foi condenado à morte é evidente  É preciso evitar um mal
     maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas  Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boites com
     orquestra privativa
Não estarão nunca aí  Procurem-nos nas ruas suburbanas onde
     nada acontece
A identificação é fácil Onde estiverem estará também pousado
sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí  Engatilhem as armas invadam a casa disparem
     à queima roupa
Um tiro no coração de cada um  Vê-los-ão possivelmente
dissolver-se no ar  Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos e da mulher

Mas ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr
     o pranto
Quer dizer que fostes contagiados  Que estais também perdidos
     para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte o
     tiro indispensável
Não há outra saída  A cidade o exige

Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer  Matai-o  Amigo irmão que seja
matai-o  Mesmo que tenha comido à vossa mesa crescido a
vosso lado
matai-o  Talvez que ao enquadrá-los na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até o fim da noite  Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontrarem numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua

No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios  Crê-se
que a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchettes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS
ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o modo inexplicado
 a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de auto-
     móveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra a afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência o universo do amor
E é preciso encontrá-los  E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertaram as suas
no silêncio presago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite

E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em círculos fechados
impor a violência a tirania o ódio

Entanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência

COMUNICADO GOVERAMENTAL À IMPRENSA.

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as
     saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de
     ferro

É na cidade que é preciso procura-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não se preocupem com os gastos a Assembleia votou um cré-
     dito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação
     Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora  Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do
     Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as
     desculpas do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto
     diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado

SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÜSICA DE DANÇA

Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a
     mulher
escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante
     recompensa
destinada a quem prestar informações que Ievem à captura
     do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta   É preciso resolvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual

Investigamos nos arquivos  Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção científica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão
deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço
Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as «Crónicas marcianas»
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva

O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem  Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da
     gerência
era bem paga tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa  Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu
Esperam por ela em casa duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos

Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde
     de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas
Já não podem escapar  Foi tudo calculado
com rigores matemáticos  Estabeleceu-se o cerco
A polícia e o exército estão a postos  Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo

(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
 une fenêtre eclairée)



daniel filipe
a invenção do amor e outros poemas
1961