11 março 2013

fiama hasse pais brandão / o miradouro


  

Temi o verão, o tempo. Aproximava-se.
Vi-o transparecer do que é parado,
de bermas e de vistas.
As pedras de Marvão estavam ligadas,
no miradouro, às pedras
de paisagem. Em tudo era a passagem
da temperatura, o verão
que começava - eu vi - entre muralhas, as aves,
as gralhas de alentejo transmudavam-se
tão quentes, como poderiam ser os fogos
da vila mais vorazes?
esses fogos nas lajes, a mesma combustão
das pedras, a denegrida pele dessas lareiras
em redor.

O temor - era o poente - então reverberava
sobre as partes do horizonte, o monte só
da vila, logo a extensão das terras
baixas, brenhas, os tumultos
de um miradouro alto despenhado
sobre sopés, profusos
traços de uma estação de tempo
que me deteve,
tépida, no miradouro, assim como
temendo a posição de ver
temia a vez
da solidão.




fiama hasse pais brandão
líricas portuguesas
edições 70
1983



10 março 2013

ruy belo / cerimonial



Eu vou colhendo com unção os dias
conforme tu os confias
à minha mão:
leves vestes que enfio
quando me despe o coração




ruy belo
tempo
todos os poemas I
assírio & alvim
2004



09 março 2013

luis alberto de cuenca / mal de ausência




Desde que partiste, não sabes como devagar
passa o tempo em Madrid. Vi um filme
que terminou apenas há um século.
Não sabes que lento corre o mundo sem ti, noiva distante.

Os amigos pedem-me que volte a ser o mesmo
que o coração apodrece de tanta melancolia,
que a tua ausência não vale tanta ansiedade inútil,
que pareço um exemplo de subliteratura.

Levaste, porém, a minha paz na tua bolsa,
os fios do telefone, a rua em que vivo.
Mandaste a minha casa tropas ecologistas
saquear-me a alma contaminada e triste.

E, para cúmulo, continuo a sonhar com gigantes
e contigo, despida, beijando-lhes as mãos.
Com deuses a cavalo que destroem a Europa
e cativa te guardam até que eu esteja morto.



luis alberto de cuenca
tradução de manuel rodrígues



08 março 2013

david mourão-ferreira / soneto do cativo



Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!




david mourão ferreira
os quatro cantos do tempo
guimarães editores
1963



07 março 2013

josé miguel silva / memórias escolhidas




Se houvesse um campeonato regional
de solidão, eu teria conquistado,
nesse biénio, a medalha de bronze.
Se não acreditam, perguntem aos meus versos.

Enfrentava com graça, nesse tempo,
as temperaturas mais baixas, desde que
 tivesse à mão as páginas de um livro
a cujo discurso arrancava palavras

para aquecer os dedos. Lia toda a noite
com os olhos acesos e quanto mais lia
menos percebia o que havia de querer.
Quem tinha razão era a minha alma: ler muito alto

dá conta da vida, deixamos de saber
apertar os cordões ou o que fazer com as mãos
quando vemos os minutos a cerrar fileiras
e ninguém para cobrir a nossa retirada.




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003


06 março 2013

jorge roque / mais do que refutar



Segui o discorrer da rebuscada lógica, complexas teorias da conspiração que no seu enredo teciam guerras, tácticas, dissimulações, inimigos, em suma, alvos a abater, se ao alcance do tiro estivessem ou arma existisse que a eles se pudesse apontar. No fim, mais do que refutar, ocorreu-me apenas dizer: o mais difícil é perceber que a falta de crença nos outros atinge-nos sobretudo a nós. Somos nós que nos perdemos dos outros. Somos nós que sofremos a dor de nos faltarem. Nada disse, no entanto. No lugar onde escutavas, não o poderias ouvir.


jorge roque
uma escada que sobe pelos degraus de ti
cão celeste #2
outubro 2012


05 março 2013

tatiana faia / ut sint




santo agostinho percebia
de cenas por isso
escreveu amo: uolo it sis
martin heidegger sabia
talvez de piropos por isso
disse amo: uolo ut sis

que outra coisa pode
ainda salvar esse teu amor
que não chegou a criar raízes
alguém o cortou quando
se precipitava para florescer
quando estava no princípio

do princípio é
uma mentira dizer
que aí era o logos no
princípio éramos nós
e nós apenas e nenhuma razão

veio ainda reger o caos

talvez que os amantes separados
se aceitem ut sint talvez
que nenhuma outra lei possa adiar
o caos a morte que não
a lei do amor disse-te
esse que quando teve
de ser também não quis
tornar-se o triste o dos blues

contra isso talvez exista
o que os uniu a metáfora
para os dois que carregam o mesmo
peso ainda que eternamente brigando
sobre a efígie desfeita da sincronia

havia ainda ele o de negro o que
podendo não conspirou com
a sorte que lhe era adversa

o que desejava totalmente sem
se precaver sem se guardar



tatiana faia
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012


04 março 2013

jean cocteau / o mentiroso




Gostaria de dizer a verdade.
Gosto da verdade. Mas ela não gosta de mim.
A verdade é esta: a verdade não gosta de mim.
Mal acabo de dizê-la, ela muda de rosto e volta-se contra mim.
Tenho o ar de mentir e todos me olham de revés.
E, no entanto, sou uma pessoa simples e não gosto da mentira. Juro.
A mentira traz sempre complicações assustadoras.
Prendem-se-nos os pés, tropeçamos, caímos e toda a gente se ri.
Quando me perguntam alguma coisa, quero responder o que penso.
Quero responder a verdade. Ardo no desejo de dizer a verdade.
Mas não sei o que se passa.
Sou tomado de angústia, de receio, de medo do ridículo, e minto. Minto.
Não há nada a fazer. Demasiado tarde para voltar atrás.
Depois de se começar a mentir, tem de se continuar.
E não é cómodo, juro. É tão fácil dizer a verdade. É um luxo de preguiçoso.
Tem-se a certeza de que não há, depois, enganos e aborrecimentos.
Os aborrecimentos são só no momento, depois tudo se arranja.
Enquanto que eu! O diabo intromete-se. A mentira não é uma vertente a pique.
São montanhas russas que nos transportam, nos deixam sem fôlego,
nos fazem parar o coração, nos põem um nó na garganta.

Se eu amo, digo que não amo e se não amo digo que amo.
Adivinha-se a continuação. Mais vale disparar um tiro de revólver
sobre si próprio e acabar com tudo. Não! É inútil eu tentar convencer-me,
pôr-me diante do espelho e repetir: não mentirás; não mentirás; não mentirás.
Eu minto. Minto. Minto. Minto por pequenas coisas e por coisas grandes.
E se me acontece dizer a verdade, uma vez por acaso...
Surpreendida, ela volta-se do avesso, enruga-se, encarquilha-se, faz troça,
torna-se mentira.
Os mais pequenos pormenores viram-se contra mim e provam que eu menti.
E... não é que eu seja cobarde... Sei sempre o que deveria responder
e imagino o que seria preciso fazer.
No momento, porém, fico paralisado e não consigo falar.
Chamam-me mentiroso e não respondo. Poderia responder: vocês mentem.
Mas não encontro a força necessária para isso.
Deixo-me insultar e rebento de raiva. E é esta raiva que se acumula,
que se amontoa em mim, que me enche de ódio.

Eu não sou mau. Sou até mesmo bom.
Mas basta que me chamem mentiroso para que o ódio me sufoque.
Embora admita que têm razão. Eu sei que têm razão,
que mereço o insulto. Mas é assim: eu não queria mentir
e não suporto que não compreendam que minto contra a minha vontade,
que é o diabo que me instiga. Hei-de mudar, é claro.
Penso que já mudei. Não voltarei a mentir.
Encontrarei um sistema para não mentir,
para não continuar a viver na assustadora desordem da mentira.
Dir-se-ia um quarto desarrumado, uma rede de arame farpado à noite,
corredores e corredores do sonho. Hei-de curar-me.
Hei-de libertar-me. E, de resto, posso dar já uma prova.
Aqui mesmo, em público, acuso-me dos meus crimes e exponho o meu vício.
Não, não. Tenho vergonha. Detesto as minhas mentiras
e iria até ao fim do mundo para não ser obrigado a fazer esta confissão.
E vocês, vocês dizem a verdade? Serão dignos de me ouvir?
Realmente, acuso-me e nem sequer verifiquei
se o tribunal estava em posição de me julgar, de me condenar, de me absolver.

Vocês mentem com certeza! Vocês mentem todos.
Mentem constantemente e gostam de mentir
e de acreditar que não mentem. Vocês mentem a si próprios.
Isso é que é grave. Porque eu não minto a mim próprio.
Eu tenho a franqueza de confessar que minto, que sou um mentiroso.
Mas vocês, vocês são uns cobardes. Escutam-me e pensam: coitado!
E aproveitam-se da minha franqueza para dissimular as vossas mentiras.
Apanhei-os! Sabem, minhas senhoras e meus senhores,
por que é que lhes disse que mentia, que gostava da mentira?
Não era verdade. Era somente para os atrair a uma armadilha
e para chegar a uma conclusão, para compreender.
Eu não minto. Eu nunca minto. Detesto a mentira e a mentira detesta-me.
Menti apenas quando lhes disse que mentia.

Vejo agora os vossos rostos que se desfiguram.
Cada um gostaria de fugir do seu lugar e receia ser interpelado por mim.

A senhora disse ao seu marido que tinha ido ontem à modista.
O senhor disse à sua mulher que jantava com uns amigos.
É falso. Falso. Falso. Ousem desmentir-me.
Ousem chamar-me mentiroso. Ninguém diz nada?
Perfeito. Eu sabia com o que contava. E fácil acusar os outros.
Fácil deixá-los mal colocados. Vocês dizem-me que minto e, afinal,
são vocês que mentem. É admirável. Eu nunca minto. Ouvem? Nunca.
E se me acontece mentir, é para prestar um serviço...
para evitar fazer sofrer... para evitar um drama. Mentiras piedosas.
E claro que é forçoso mentir. Mentir um pouco... de tempos a tempos.
O quê? Que diz? Ah! julgava... não... porque...
acharia estranho que me censurassem este género de mentira.
Seria engraçado, vindo de vocês.
De vocês, que mentem, a mim, que nunca minto.

Vejam, por exemplo, no outro dia — não, vocês não acreditariam.
De resto, a mentira... a mentira... é uma coisa magnífica.
Digam lá, imaginar um mundo irreal e fazer acreditar nele — mentir!
É certo que a verdade tem o seu peso e consegue espantar-me. A verdade.
As duas equivalem-se. Talvez a mentira lhe ganhe...
embora eu nunca minta. O quê? Se já menti? Claro que sim.
Menti quando lhes disse que mentia.
Menti quando lhes disse que mentia ou quando lhes disse que não minto?
Mentiroso, eu? No fundo, já não sei. Sinto-me confuso.
Que tempo o nosso! Serei um mentiroso?
Pergunto--lhes. Sou antes uma mentira.
Uma mentira que diz sempre a verdade.




jean cocteau
o filho do ar
trad. gastão cruz
relógio d´água
1998



03 março 2013

sophia de mello breyner andresen / porque




Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

  


sophia de mello breyner andresen
mar novo
1958



01 março 2013

Jorge Palma / Grândola, Vila Morena

harold pinter / tudo isso




Tudo isso fiz
E, ao fazer, menti.
E tudo isso que escondi
Fingi estar morto.

Mas tudo isso que escondi
Foi sempre dito,
Mas, escondido, espiava
O bem de outrem.

E tudo isso levei
À certa para a cama
E, na cama, disse
Aquilo que fiz

A tudo isso que chorava
Por trás da minha cabeça
E, ao chorar, morria
E não morreu.

1970



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006