05 novembro 2012

al berto / filhos de rimbaud




I

Todos os pássaros sossegaram.
As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos,
recolheram a casa. Levanto a cabeça e deixo a voz deambular
por dentro deste silêncio de água e de estrelas.

A noite está próxima.

Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.

Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon,
com suas traições... ouço hélices de barcos,
motores... quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.

A verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade,
com um sussurro cortante nos lábios.
E atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes
que ligam uma treva a outra treva.

Caminho como sempre caminhei, dentro de mim
─ rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.

O absinto... esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros.
E vi a vida como um barco à deriva. Vi esse barco tentar regressar
ao porto - mas os portos são olhos enormes
que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.

A noite está próxima.

Vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.

Sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas
cidades queimadas, desertas... e o vento... o vento cintila
onde cresce o lobo que me ronda o sono.

Estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.
De nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras,
de nada me serviria saber a geometria exacta dos
cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.

Fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando águas.
O regresso nunca foi possível. - O verdadeiro fugitivo não regressa,
não sabe regressar, reduz os continentes a distâncias mentais.
Aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando
o tormentoso destino dos homens.

Pressinto uma sombra, a envolver-me. Ouço músicas...
espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
E acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado,
e renego a alegria.

Não semearei o meu desgosto, por onde passar.
Nem as minhas traições.



al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997 




04 novembro 2012

egito gonçalves / o vagabundo decepado (3)





Vagabundeio!
Passo sob o cartaz de um fantoche a cavalo,
passo entre desafios sem fraternidade,
entre mulheres áridas, entre bosques de chamas.
Passo nutrindo-me de palavras como água,
humildemente, sem discursos, desprezando
os pedestais que olho como uma estátua ferida.

A grande roda move-se de manhã à noite,
os números vão saindo, um zero, um sete...

Esta é a terra onde nasci e onde te escrevo.
Aqui jogo às escondidas com a angústia,
aqui fui alistado nos exércitos, naufraguei,
achei na  cinza os meus melhores diamantes,
encontrei a boca e os olhos do amor...
Aqui conservo as rosas que me deste.





egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971



03 novembro 2012

maria gabriela llansol / estou de pé sobre a fronte apelativa...


  

4

Estou de pé sobre a fronte apelativa de uma imagem de mulher.
E por onde ela me atrai, principia a circular meu desejo; afinal,
Converso com ela; mais exactamente, ela fala comigo, pois eu
Raramente abro os lábios. Apenas por olhar me identifico.
Que inventar para lhe pôr na testa? Nada de parecido com um beijo.
Com um desafio. Sinto
A força dos cavalos à deriva. Vejo que meu corpo se senta, se deita,
Pousa a cabeça no chão, pelo lado da cara. Choro em torrentes nesse
Corpo total. Muitas são
As lágrimas que merece a alegria de conhecer.



maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




02 novembro 2012

alberto augusto miranda / morrer à tua porta





O que eu desejava, realmente, era ir, esta noite, morrer à tua porta.
Mas mora lá tanta gente que tu podias pensar que eu não tinha morrido à tua porta.
Se ao menos o teu quarto tivesse uma varanda.
Ou se praticasse a técnica da transferência e vivesse as imagens da substituição...
ou se sinceramente amasse a minha analista.
Não sublimo os desejos por incapacidade.
E recalco mais este.
Não posso, como desejava realmente, ir morrer à tua porta.
Fico a gemer.
Se, ao menos, tu morresses!




alberto augusto miranda
linha de linho
vila real
1983




01 novembro 2012

harold pinter / a mesa





Janto demoradamente
Todo este tempo

Aos meus pés ouço-os
Cair na gordura

Em queijo e ovos
Em ossos de fim de semana

O ruído da luz
Deixou o meu nariz.

Tatuado por tudo o que
Não podia ver

Murmuro na
Minha orelha mais surda

O meu nome apagado
Já esteve aqui

Ou então um bluff total
Conservou-o cuidadosamente.

A isto encadeado
Apaixonado por isto

Avanço de gatas
Sem dizer palavra

E cheio de homenagens
Açambarco os restos

Sem fôlego,
Por baixo desta enorme mesa.


1963




harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006




31 outubro 2012

antónio josé forte / dente por dente





               Outros antes de nós tentaram o mesmo esforço: dente por dente:
  não, nunca olhar de soslaio e manter a cabeça escarlate, o vómito nos
  pulsos por cada noite roubada; nem um minuto para a glória da pele.
  Despertar de lado: olho por olho: conservar a família em respeito, a
  esperança à distância de todas as fomes, o corno de cada dia nos
  intestinos.
  Aos dezoito anos, aos vinte e oito, a vida posta à prova da raiva e do
  amor,
  os olhos postos à prova do nojo. Entrar de costas no festival das letras,
  abrir passagens a golpes de fígado para a saída do escarro. Se não
  temos saúde bastante sejamos pelo menos doentes exemplares.
               Fora do meu reino toda a pobreza, toda a ascese que gane aos
  artelhos dos que rangem os dentes; no meu reino apenas palavras
  provisórias, ódio breve e escarlate. Nem um gesto de paciência: o sonho
  ao nível de todos os perigos. Pelo meu relógio são horas de matar, de
  chamar o amor para a mesa dos sanguinários.
               Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher a tempo a nossa
  morte e amá-la.




antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas
lisboa
1958



30 outubro 2012

vítor nogueira / casal


  

É preciso começar por algum lado.
No primeiro plano, à esquerda, preparado para entrar
no estádio adulto da vida, um casal de namorados.

Por enquanto, são apenas criaturas de cores vivas.
E assim é necessário dar-lhes tintas bem moídas.
Mas não é exactamente um bom presságio.
Começai por desenhar e colorir de morte-cor.
Chama-se morte-cor a primeira tinta que se dá
nas figuras, porque sempre morrem as cores.

Tal qual morrem devagar as primaveras
e as sebes do jardim e as viúvas
que passaram mesmo agora pelo casal de namorados
mas preferem pertencer a outra malha.




vítor nogueira
resumo a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



29 outubro 2012

jesus urceloy / (o poema)






    Não passe este prospecto sem o ter lido todo.
    Não passe uma porta se encontrar alguém que chora do outro lado.
    Observe bem antes que o acusem de homicídio,
    que uma sombra urgente o abrace com mágoa, o
    confunda com outro,
    lhe faça sinais e convide para a cama…


    Portanto, leia em pormenor o papel; depois vêm-nos
    reclamar e não estamos, compreenderá, para isso.


    Se lhe surgir qualquer dúvida,
    se lhe vier de repente um sorriso aos lábios ou pensar que lhe
                                                                                           mentem,
    rasgue o papel em mil pedaços, não se preocupe, há perdão
    para o furtivo,
    não constará no expediente, continue.


    Momentos há em que rasgados os papéis mais fácil é,
    mais bela é a leitura:
    reconhece-se antes a palavra seguinte,
    pronuncia-se com facilidade o verso e deixam de notar-se
    as lentas torções do decassílabo.


    Ao fundo, na expressão:
    não se esqueça de apagar o cigarro, abrir a alma,
    murmurar à sua sombra algum silêncio:
    apagar a luz, sentir entre os lençóis
    o livro a fechar-se, ouvir as boas noites.





jesus urceloy
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



28 outubro 2012

herberto helder / redivivo






             Redivivo.  E basta a luz do mundo movida ao toque no interruptor,
   ou de lado
   a lado negro, quando se é esquerdo,
   o amargo e o canhestro à custa
   de fôlego e lenta
   bebedeira: o esforço de estar vivo -
   e lunas e estelas: e as vozes magnificam pequenas
   coisas das casas, e teias dos elementos
   pelas janelas, teias
   portas adentro: da água compacta no corpo das paredes,
   do ar a circundar as zonas veementes dos utensílios
   - e a música mirabilíssima que ninguém escuta,
   o duro, duro nome da tua oficina de mão torta,


             boca cheia de areia estrita, áspera cabeça,
   tanto que só pensas:
   se isto é música, ou condição de música, se isto é para estar redivivo,
   então não percebo sequer o movimento, digamos,
   da laranja
   na fruteira, ou o movimento da luz na lâmpada,
   ou
   o movimento do sangue na garganta
   impura - e menos ainda percebo o movimento que já sinto
   no papel se se aproxima, por exemplo,
   pelo tremor da textura
   do caderno e da força da
   esferográfica dolorosa, a palavra Deus saída pronta,


             arrebatada aos limbos, como se diz que se arrebata
   aos ferros, a poder de tenazes e martelos,
   um objecto, vá lá, supremo:
   uma chave, quer
   se queira quer se não queira, mas
   que não abre quase coisa alguma: que abre, a partir de como se está de ro-
                                                                                                                 dilhas,
   um espaço em cada nome, e nesse espaço se possa
   dançar, no abismo entre um quarto
   e outro quarto da terra, dançar dentro do ar como para
   o ar bater nas paredes, e as paredes
   estremecerem com a água esmagada contra si própria -


             e depois ninguém fala, e cada
   coisa actua
   sobre cada coisa, e tudo o que é visível abala
   o território invisível.
   Redivivo. E foi por essa mínima palavra que apareceu não
   se sabe o quê que arrancou
   à folha e à esferográfica canhota a poderosa superfície
   de Deus, e assim é
   que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,
   apenas.





herberto helder
ou o poema contínuo
súmula
assírio & alvim
2001




27 outubro 2012

kiki dimoulá / do sonho





O dia acordou.
Levantou-se na ponta dos pés
e viu o mundo
ainda deitado com os sonhos
e encantações da noite.

Subiu aos montes,
deslizou pelas colinas
e escorreu para a cidade
apressado.

Apagou os candeeiros das ruas
esganou
sombras escondidas nos pátios e nas esquinas,
e depois de repartir pelos humanos
angústias e problemas
encarregou-os de o levar até ao fim.

Depois deu pela minha ausência
(estava ainda no meio do sonho
a negociar uma felicidade),
abriu a minha janela fechada
e com todo o seu peso caiu sobre mim
interrompendo as negociações.




kiki dimoulá
inimigo rumor, nº 14
traduzido do grego por manuel resende
livros cotovia
2003



26 outubro 2012

manuel de freitas / jordi savall, 2010


  

O dia começou tarde, com um amigo a dizer-me
que este domingo lhe parecia «uma suave
preparação para a velhice» ─  que de suave,
ambos sabemos, pouco ou nada terá.

Horas depois, o concerto das nações
(Turquia, Espanha, Grécia, França,
Arménia) elaborou um minucioso
programa contra a melancolia ocidental.

Até as árvores da Gulbenkian se calaram,
indiferentes à morte e ao vento frio
que todalas aves do mundo aproveitaram
para uma rápida e subtil mudança de céu.

No Snob, entre canções baratas, era ainda
a voz de Instambul aquela que pediu
mais cervejas, menos morte, a conta.




manuel de freitas
jukebox 3
teatro de vila real
2012



25 outubro 2012

vasco gato / um dizer ainda puro


  

imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.


dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.


diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.




vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000



24 outubro 2012

juan miguel lópez / o gozo de estar triste





É tão triste acordar ao meio-dia
de um sábado que soa a vento e frio,
sentir que sobra uma porção de cama
(a cama se não estás é como um túmulo),
abrir os olhos ─  ou, melhor, que seja
a luz que vem abrir-mos ─  e saber
que tudo hoje será inútil, que
este dia nem um milagre o salva.

É triste levantar-se depois, sem jeito,
ir aos tropeções à casa de banho,
olhar-me, bocejar um par de vezes,
ver um homem sozinho no espelho,
um homem sozinho e que o sabe.

É triste que depois, contudo,
o meu corpo continue com o jogo,
e ponha a cafeteira, faça um sumo,
umas torradas e ponha tudo isso
numa mesa, que se sente, que coma
e beba e no mais negro do peito,
sem saber porquê, se lhe solte um pranto.

Torna-se então muito mais triste ainda
olhar pela janela, ver as nuvens
que passam, que ─  tal como a vida ─  passam
sem espaventos, mas que nos comovem,
apoiar-se, por fim, muito lentamente
às costas da cadeira e, isso mesmo,
deixar o olhar fixo e não ver nada.




juan miguel lópez
poesia espanhola, anos 90
organização e trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000