20 julho 2012

luiza neto jorge / a magnólia





A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor. 

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala. 

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
Perdido na tempestade, 

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim. 




luiza  neto jorge
o seu a seu tempo
poesia
assírio & alvim
1993



19 julho 2012

rui costa / poema inútil com montanha




Vejo a montanha à minha frente pousada
Sobre a água sempre verde, e penso na inutilidade
De tudo o que ela é, e na inutilidade de estar pensando nisto,
Quando um pensamento inútil me sugere
Que a montanha pode ser
Um pormenor pensado por ela
Na paisagem do meu próprio pensamento, para
Com isto me levar a pensar sobre pensamentos,
E não sobre montanhas, ficando ela, como antes,
Pousada na água sempre verde, sem ser
Pensada por ninguém.




rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005


18 julho 2012

valter hugo mãe / os olhos encaracolados de sonho



   

caminham sobre a
terra rápida, e quando
morrem são anjos em
eterna muda de penas, feitas
só pássaros sem bico, engolidas
por grande morte depois de
tão pequena vida, assistem
ao céu, pasmadas numa
lentidão eterna




valter hugo mãe
a cobrição das filhas
quasi
2001



17 julho 2012

albano martins / porque são numerosos





Não te esqueças de,
ao sair,
deixar a porta
aberta. Podes
perder a chave
e não entrar.
Ou podem roubar-ta,
o que é pior.
Porque são numerosos
os ladrões do azul.




albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999



16 julho 2012

eduardo garcía / quando a pele


  


Sou frágil nas tuas mãos, sou papel,
e quando o mar se lança e se retira
sinto o furor calado das constelações,
a fuga das feras no jardim em chamas,
o clamor das aves se amanhece.
Então somos mais que duas figuras
que o combate conduz ao esquecimento.
Somos o mar, a terra que perdura,
o seu pulsar animal, um estertor
ditoso que nos traz a estas paredes.
Os humildes objectos sorriem-nos.




eduardo garcía
poesia espanhola, anos 90
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



15 julho 2012

gil t. sousa / as nossas mãos


  

4

eram tão simples
as nossas mãos

ainda tão simples
e prontas

quando
nos procurávamos

como se tudo
nos faltasse



gil t. sousa
água forte
2005



14 julho 2012

alejandra pizarnik / a jaula




Lá fora há sol.
É apenas o sol
mas os homens olham-no
e depois cantam.

Eu não sei do sol,
eu sei da melodia do anjo
e o sermão quente
do último vento.
Sei gritar até de madrugada
quando a morte se põe nua
na minha sombra.

Choro debaixo do meu nome.
Abano lenços na noite
e barcos sedentos de realidade
bailam comigo.
Escondo cravos
Para escarnecer dos meus sonhos enfermos.

Lá fora há sol.
Visto-me de cinzas.



alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002



13 julho 2012

samuel beckett / pra lá






     pra lá
     muito longe
     para alguém
     tão pequeno
     belos narcisos
     partir então

     aí sem mais
     aí sem mais

     depois daí
     narcisos
     de novo
     partir então
     de novo
     muito longe
     de novo
     para alguém
     tão pequeno

     1976


   

samuel beckett
relâmpago” nr.13
trad. manuel portela
10/2003



12 julho 2012

katerina angheláki-rooke / regresso ao tempo sem amor





     O cão foi o primeiro sinal
     de que brilham vazios os espelhos cá dentro
     e de que havia um espaço infinito para ele
     no interior da minha história;
     podia entregar-me inteira a ele
     aos seus pulinhos à luz
     e outras actividades caninas.
     Antigamente era assim, como casinha de recém-casados,
     e a alma,
     no ar meio roído em que se abrigava,
     onde ainda não havia cheiros e choros,
     leve como escama a arrastava o futuro.

     Ontem à noite tornei a perder o barco
     e enquanto os filhinhos dos amigos quietos
     mergulhavam no seu sono azulado,
     enroupava-me uma serenidade semelhante à origem,
     talvez porque só o silêncio
     pode unir a mirra da vida
     com o furúnculo da morte;
     mudo o humano
     vê primeiro uma depois o outro
     a alastrarem na carne.
     E ninguém sabe se é progresso ou imobilidade
     este vazio que como lava espessa
     recobre as culturas do espírito,
     se as obras que se apresentam à memória
     vão a subir ou a descer,
     se é perda ou lucro a dedicação
     e se se roeram os dentes da máquina
     no momento em que íamos para novo voo.

     É tão certa hoje a terra
     com os ramos secos, o pouco verde,
     os torrões de terra que bondosos
     se descansam na terra repartindo a emoção
     equitativamente entre o fim e a origem...
     Mas é fim esta beleza
     que sempre inacessível
     aflora os humanos torturados?
     É fim aquilo que desarticulado se prepara
     nas câmaras escuras do tempo
     e não deflagra em desesperos e pragas,
     mas bate em retirada diante das explosões que se aproximam?
     É fim ou outra origem
     na qual hoje à noite farão círculo
     as caudas dos bichos adormecidos
     em redor do meu sono,
     para que eu passe ligeira
     para a sombra inconsciente
     como se nunca tivesse gritado:
     "Meu amor, perco-me se me deixares agora!"
     como se nunca tivesse tido o corpo sem fim.




     katerina angheláki-rooke
     (grécia, n. 1939)
      (de "belo deserto o corpo")
      tradução de manuel resende




11 julho 2012

raymond carver / felicidade




     De manhã muito cedo está ainda escuro lá fora
     Estou à janela a beber café
     E com aquele ar matinal
     Que passa por pensativo

     Um rapaz e um amigo
     Caminham pela rua fora
     Para entregarem os jornais da manhã

     Usam bonés e camisolas
     E um deles traz uma mochila aos ombros
     Parecem tão felizes
     Embora não digam nada

     Penso que se pudessem teriam dado
     As mãos
     É de manhã cedo
     E caminham juntos

     Vêm aí lentamente
     O céu está a clarear
     Embora uma lua pálida esteja ainda suspensa sobre a água

     Que beleza. Por um minuto
     A morte e ambição, até o amor
     Estão arredados disto

     Felicidade. Ela chega
     Inesperadamente. E passa em frente
     Qualquer dia de manhã muito cedo fala acerca disso




    raymond carver
     (1938-1988)
     tradução de jorge de sousa braga



10 julho 2012

raúl perez / rebelião em diafavlet




     A cidade está numa polvorosa
     Os ratos invadiram-na
     mascarados de Dick Turpin
     Querem degolar o Rei

     A fuga dos sapatos nobres é tal
     que uma longa fila já chega
     a Glendwin
     Por todos os lados se vêem sapatos
     nobres a fugir

     As cinco princesas refugiaram-se
     na torre mais alta do castelo
     acima das nuvens
     levando com elas as máquinas
     de costura e outros pertences

     O Rei já decretou estado-de-sítio
     e ordenou que todos os ratos apanhados
     fossem cosidos uns aos outros

     Transformados em novelos

     e entregues aos tecelões
     para que estes confeccionem
     um novo manto real

     Sua alteza pretende comemorar
     com toda a pompa a derrota
     dos ratos

     Está tão certo da Vitória
     que até já se perfumou e penteou...
     em forma de estrela




     raúl perez
     jardim botânico de lisboa, 1964
      catálogo da exposição “as mãos são a paisagem”



09 julho 2012

abel feu / um lugar na minha alma


  


Agora que não nos vemos
e as nossas vidas correm pelos dias
cada vez mais longínquas,
sinto, às vezes, uma vontade enorme
de te ver uma tarde, tomar café
contigo, saber como vais…

Agora que não nos vemos
e nos perdemos aos dois,
não penses que esqueci as tuas coisas.
Guardo boas lembranças, e poemas
que te escrevi (lembras-te?); guardo
cartas e fotografias…
                                       E um lugar
na minha alma, onde, se quiseres,
sempre, sempre podes estar.






abel feu
poesia espanhola, anos 90
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



08 julho 2012

josé carlos soares / tremendo a boca a tudo





Tremendo a boca a tudo
se prestava. A peste
voava alto

e o secreto
adormecer dos argumentos
deixava já entrar
o verbo olhar.

No canto do jardim
as formigas desmanchavam
o besouro.




josé carlos soares
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012