15 outubro 2011

jerzy ficowski / não consegui salvar…





Não consegui salvar
uma única vida

Não sabia como parar
uma única bala

e vagueio pelos cemitérios
que não estão lá
procuro palavras
que não estão lá
corro

para ajudar onde ninguém chamou
para socorrer depois de tudo ter passado
quero estar à hora exacta
mesmo que seja demasiado tarde






jerzy ficowski
a palavra interdita
trad. maria de lourdes guimarães
campo das letras
2001


manifesto para os protestos de 15 de outubro







No dia 15 de Outubro pessoas de todo o mundo tomarão as ruas e as praças. Da América à Ásia, de África à Europa, as pessoas estão a erguer-se para lutar pelos seus direitos e pedir uma autêntica democracia. Agora chegou o momento de nos unirmos num protesto não violento à escala global.

Os poderes estabelecidos actuam em benefício de uns poucos, ignorando a vontade da grande maioria e sem se importarem com o custo humano ou ecológico que tenhamos que pagar. Há que pôr fim a esta situação intolerável.

Unidos em uma só voz, faremos saber aos políticos e às elites financeiras que eles servem, que agora somos nós, o povo, que decidirá o nosso futuro. Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros que não nos representam.

No dia 15 de Outubro encontramo-nos nas ruas para pôr em marcha a mudança global que queremos. Vamos manifestar-nos pacificamente e vamos organizar-nos até atingirmos o nosso objectivo.

Chegou a hora de nos unirmos. Chegou a hora de nos ouvirem.



14 outubro 2011

13 outubro 2011

joyce mansour / o meu riso vai alto





O meu riso vai alto,
Mais alto que os chapéus dos cardeais
Mais alto que a esperança
Os meus seios riem quando o sol brilha,
Apesar dos meus fatos apesar do meu noivo.
Feia que sou, sou feliz.
Deus e os vampiros
Amam-me.





joyce mansour
trad. mário cesariny
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




12 outubro 2011

pablo garcia casado / dover, nh




arrancaste-me o coração mas tenho frescas as artérias
as frases preparadas para pedir-te que voltes
os papéis em regra
                                      passo o dia
entre facturas grossistas caixas registadoras
mas sou um homem novo deixei isso e tenho dinheiro
dinheiro para ti para a miúda dinheiro para uns meses

tenho de falar contigo de te dizer coisas coisas que nunca te disse







pablo garcia casado
el mapa de américa
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004




11 outubro 2011

gil t. sousa / tudo muda





39

tudo muda
quando um verso rebenta
nos lábios
certos



gil t. sousa
falso lugar
2004




10 outubro 2011

douglas coupland / a vida depois de deus




A seguir fiquei mesmo cheio de solidão e tão farto das coisas más da minha vida e do mundo que disse para comigo: «meu deus, faz de mim um pássaro… é tudo o que sempre desejei… um pássaro branco e ágil livre de vergonha, de maldade e de medo da solidão, e dá-me outros pássaros brancos com quem voar, dá-me um céu tão grande e tão vasto que, se eu nunca quiser descer para a terra, não tenha que o fazer.»

Mas deus, em vez disso, deu-me estas palavras, e eu digo-as aqui.






douglas coupland
a vida depois de deus
trad. telma costa
teorema
1994




07 outubro 2011

goethe / viagem a itália





Trento, 10 de Setembro, à noite [1786]


“Um rapaz novo, a quem perguntei pelos lugares mais importantes da cidade, mostrou-me uma casa a que se chama a Casa do Diabo (Palazzo Galasso, construído por ordem do banqueiro de Augsburgo George Fugger em 1602 (hoje Palazzo Zambelli), e sobre o qual circulava a lenda de que teria sido construído pelo diabo numa só noite), que o grande destruidor de sempre terá construído numa só noite com pedras que num ápice para aqui trouxe. O bom do homem, porém, não foi capaz de descobrir a única coisa verdadeiramente digna de atenção nesta casa, e que é o facto de se tratar da única construção de bom gosto que me foi dado ver em Trento, certamente construída em tempos passados por um italiano de alto nível.
À tardinha, pelas cinco horas, segui viagem; repetiu-se o espectáculo de ontem à tarde e as cigarras, que começam logo a cantar mal o Sol se põe. Durante uma boa milha o caminho segue entre muros por cima dos quais se vêem latadas com uvas; outros muros, não tão altos, foram alteados com pedras, espinhos e outras coisas, para evitar que os transeuntes colham uvas. Muitos proprietários pulverizam as fieiras da frente com cal, o que torna as uvas intragáveis, mas não afecta o vinho, porque a fermentação absorve tudo.”



goethe
viagem a itália
trad. joão barrento
relógio d`água
2001








05 outubro 2011

marin sorescu / suicídio





Havia em mim uma vintena de gerações,
Assim pelo menos,
E nessa manhã, vá-se lá saber porquê,
Uma janela deixada aberta talvez,
Alguém se atirou para o vazio.

Então subitamente todos eles
Se puseram a saltar
Uns atrás dos outros,
À bicha, como que fazendo a chamada
Sobre um trampolim,
Segundo o princípio da desintegração dos carneiros.

Em menos de uma hora e meia
Encontrei-me totalmente despido, sem nada,
E de vergonha atirei-me para o vazio também eu,
Devo ter morrido à altura do quarto andar,
Ao décimo, em todo o caso,
A coisa estava consumada.

Tudo isto,
É um mero passante,
Quem vo-lo conta,
Um de entre nós,
Melhor dizendo,
Que terá talvez caído menos mal.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




04 outubro 2011

gérad calandre / a uma lupa




Contigo vi os versos de Virgílio
As cores elementares dum torso de Piranesi
Posso simular que vejo como num sonho as árvores
e as casas que entre elas se dissimulam
Num manuscrito muito antigo

Quanto tempo mais isto me será dado

O recorte de um tê
o pedúnculo duma magnólia
o olho dum peixe de águas profundas
o cirandar dum relâmpago numa página de acaso

Abandonar-me-á uma noite a poesia

Vidro e metal e em minutos
a definitiva cegueira

Aproximo-te das letras e eis
Crescem como troncos Como troncos desaparecem
E já só resta a memória dum minuto febril.






 gérard calandre
 tradução de nicolau saião




03 outubro 2011

ivan laucik / a amargura do vento inunda





Andar,
pacificamente
entrar num dos olhos.

Como ler? Com os olhos?
Do alto das cúpulas chovem os frescos,
poeira colorida cai nos olhos.

Lugar rigoroso no ar onde parou o orador:
como quando dentro da estação silenciosa
chega o vagão-cisterna em chamas
e derrete os carris,
ilumina os campos alagados,
e a terra crepita,
sequiosa nesse inferno,
imóvel.

Pode ser que vós, envoltos em claridade,
pergunteis (espaços frios)
pelo fogo.
Por entre a chuva vistes chegar a onda
transparente.

Clareira dourada da floresta,
apenas arrepios,
vogais.





ivan laucik
mobilis in mobile
colecção poetas em mateus
trad. pedro mexia
quetzal
1999


01 outubro 2011

franco loi / sou filho de schönberg e do maestro mahler




Non vi innamorate non
credete al cuore



Sou filho de Schönberg e do maestro Mahler,
do diapasão sinfónico e diafónico,
sou o tetracorde do inferno e sou o pentacorde,
sou como a borboleta que procura
entre as ervas uma flor rara e belíssima para se apaixonar;
e sete, setenta vezes sete, infinito,
em terra, em céu, até onde pode chegar o pensamento,
é o campo de árvores e de gritos,
e timbres, perdidos sabores: como a chuva
que parece cair mas sobe,
e se alarga afundando as raízes, grave,
e, suspirando ao sol, faz caminhar
as nuvens e penetra talvez no divino
para além do universo onde
ao celeste da atmosfera parece gritar obscuramente
os esquecimentos e dissonâncias, longínqua piedade,
e alegria, indiferenças, dores, doces apelos das estrelas,
e, como diz o meu mestre, escorre
a doce matemática apaixonante
da melodia que dá a intensidade...
Meu Schönberg, meu Berg, gente que se arrisca,
que pela teia da música se aventura
procurando tacteá-la, desenleia, esquadrinha,
mistura às apalpadelas na ânsia de encontrar...
- encontrar o quê? a história de um dia alegre?
a hipocrisia de um velho que deixou de amar?
ou o pensativo planar de uma asa branca
sobre a amendoeira rescendendo a sonho?
ou o morrer de amor da juventude
que canta e passa, breve, como esquecimento?
ou a tristeza do homem que envelhece
e para quem todos os dias são para poupar?
encontrar aquelas belas canções dos que morreram?
a voz das sombras? o ressoar do sopro?
aquele som do ar e da respiração
a que chamamos espiritual, e que te parece arder?
talvez saber os nomes da consciência,
o sentido daqueles suspiros, deste brumoso caminhar
entre homens que parecem não ter cara
e máquinas com pressa de matar,
o sentido deste infeliz tormento
feito de indolência, de um dizer sem falar,
de um aipo de agonia que se embrulha no desconforto,
que sabe de roer mas não como acabar? -
... gente que chama experiência à fantasia
e que por entre os erros parece encontrar-se,
que, como rouxinol, na lua nova,
ao baloiçar de um sino quer cantar,
essa gente que ri e se diverte, se entrega à loucura
e, enganada ou não, brinca no que faz...
Amigos, mestres, marceneiros de harmónicas,
é a vida que o órgão quer fazer soar!
E a teoria é como uma caixinha
onde estão fechados os ossos que não cantam.






franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993