30 abril 2010

giorgio caproni / tarefa cumprida








Fabro quidam tignario.




O que se cumpriu,
Cumpriu-se. Podemos
Dar repouso às algemas.
Se o desejar (se houver alguém
À sua espera) cada um
Pode partir livre para onde
Com mais força o coração o chamar.
E eu que não tenho casa alguma
A não ser entre vós,
Para quem sou o próprio Deus,
O qual existe, diz-se,
Só no acto da súplica
- de desespero, esse acto, e negação –
Eu que não tenho onde ir, prefiro
Ficar mais um pouco, aquecer
Os meus dedos ao fogo derradeiro da mentira
E expulsar das minhas mãos o tremor,
Depois, reduzido
A cinzas o tição, desaparecer
«Aproveitando as trevas».








giorgio caproni
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro

trad. ernesto sampaio

assírio & alvim
2001







27 abril 2010

paul auster / desaparecimentos








7



Está só. E a partir do momento em que começa
a respirar,

está em nenhum lugar. Morte plural, nascida

no maxilar do singular,

e a palavra que levantaria uma parede
a partir da mais íntima pedra
da vida.

Porque ele deixa de ser
por cada coisa de que fala —

e em lugar de si mesmo,
ele diz eu, como se também ele começasse
a viver em todos os outros

que não são. Porque a cidade é monstruosa,
e a sua boca não prova
matéria alguma

que não devore a palavra
de um outro.

Assim, há-as muitas,
e todas estas muitas vidas
talhadas nas pedras
de uma parede,
e aquele que começasse a respirar
aprenderia que não há outro lugar para onde ir
senão este lugar.

Por isso, ele recomeça,

como se fosse respirar
a última vez.

Porque não há outra vez. E é o fim do tempo

que começa.








paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002








25 abril 2010

antónio josé forte / desobediência civil











se a preguiça encantadora dos homens
deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo
unir os dias e as noites do desejo
então saudemos as grandes afirmações:
«a poesia deve ser feita por todos» e
«a poesia é feita contra todos»

os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta
fiquem os amantes obscuros e o único os raros
todos os nus
porque a língua portuguesa não é a minha pátria
a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria


Vêde
sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido
uma ave a sua plumagem de cores trémulas
e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem
e no entanto multidões de gnomos
cada qual com o seu estandarte
esperam à entrada dos cemitérios
para saudar o fogo-fátuo


eu passo de bicicleta à velocidade do amor
atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça
para oferecer aos revoltados












antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003










21 abril 2010

rui miguel ribeiro / berlin (seestrasse 118)










Subimos até ao quarto que dá
para o pátio interior desta cidade
distante e estrangeira.

Partilhámos a meias a solidão
sob um nome que não pronunciamos
como os nossos, próprios.

Trocamos iniciais e algumas verdades
tão mentirosas como qualquer confissão.
Libertámo-nos do pudor como
o assassino que limpa a sua arma.


Trinta e cinco anos.
O mais eficaz dos calibres.








rui miguel ribeiro
telhados de vidro nr. 13
novembro de 2009
averno






19 abril 2010

miguel torga / comunicado





(Coimbra, 18 de Abril de 1961)




Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.







miguel torga
diário ix
diários 2º vol
dom quixote
1999







15 abril 2010

josé ángel cilleruelo / pintura







Como um ir dando cor às coisas,
Assim deveria ter acontecido, como pintar
Uma fotografia a preto e branco,
Retocando com um pincel muito fino,
Imperceptível, todos os objectos
Com inúmeras camadas de anilina,
Cada uma mais leve que a anterior.
Assim, é certo, deveria ter acontecido.
Mas senti-o como um despejar
Com baldes a cor sobre aquela tela
Citrina que era a minha vida de então.
E de agora, ia já escrever,
Mas não seria exacto, ainda que não esteja,
Comigo fica amanhecido o mundo.







josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





12 abril 2010

mário cesariny / pastelaria








Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
     precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é por ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria e, lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra.







mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991






09 abril 2010

joão almeida / em tempo de miséria









desço por um jardim transparente
entre lodo e hortelã

andam assistentes sociais pelo bosque
à procura de pobres
agitam contas e berlindes

acaba aqui a rédea solta, há que escolher as armas

troco à sombra do derradeiro cipreste
dois versos e um dedo
por uma noite de sono e um detonador








joão almeida
resumo
a poesia em 2009

assírio & alvim
2010






07 abril 2010

gil t. sousa / na asa negra






16/


na asa negra
do pássaro da noite
todos os meus rios
recitam o seu correr










gil t. sousa
falso lugar
2004







05 abril 2010

luís muñoz / somente






Somente alguns objectos da tua casa
dividem entre si o sal da tua memória.
O resto está à espera de alimento
ou de servir para alguma coisa.


Ora uns ora outros de ti exigem
o veneno que irrompe nas viagens.








luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004







01 abril 2010

carlos saraiva pinto / as coisas complexas








as coisas complexas
são inimigas de Deus

torna-me pois simples
como os bois e os cavalos
que no abandono da névoa
das montanhas são almas
que cumprem
dolorosas promessas a santuários
que estão para além do mundo.









carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001







30 março 2010

dionne brand / noutro lugar, não aqui










Noutro lugar, não aqui, uma mulher poderia trocar
algo entre o belo e lugar nenhum, de regresso ali
e aqui, poderia fazer progressos na sua
agitada vida, mas eu tentei imaginar um mar que não
sangrasse, um olhar de rapariga cheio como um verso, uma mulher
a envelhecer e sem chorar nunca ao som de um rádio a sibilar
o homicídio de um rapaz negro. Tentei que a minha garganta
gorjeasse como a de uma ave. Escutei o duro
bisbilhotar de raça que habita esta estrada. Mesmo nisto
tentei murmurar lama e plumas e sentar-me tranquilamente
nesta folhagem de ossos e chuva. Mastiguei algumas
folhas votivas aqui, o seu sabor já a desencantar
as minhas mães. Tentei escrever isto calmamente
mesmo quando as linhas ardem até ao fim. Acabei por aprender
algo simples. Cada frase imaginada ou
sonhada salta como uma pulsação com história e toma
partido. O que eu digo em qualquer língua é dito com perfeito
conhecimento da pele, em embriaguez e pranto,
dito como uma mulher sem fósforos e mecha, não em
palavras e em palavras e em palavras decoradas,
contadas em segredo e sem ser em segredo, e escuta, não
se extingue nem desaparece e é abundante e impiedoso e ama.







dionne brand
pullll lllllll
poesia contemporânea do canadá
trad. john havelda, isabel patim & manuel portela
antígona
2010








29 março 2010

david teles pereira / bem-vindo ao ano zero







Deram-me a riqueza,
mas não me disseram o que fazer com ela.


Iegueni Ievtuchenko








Com a minha idade, o meu pai já era um homem honrado,
o meu avô trabalhava na marinha mercante,
disparava ocasionalmente um ou dois foguetes
em direcção a terra seca, em homenagem ao amor de uma mulher
que conheceu antes da minha avó e que me teria dado
olhos azuis e muito menos problemas.

Aos dezoito anos os meus pais participaram na Revolução.
O meu avô também. Tinha quarenta e cinco.
Depois os meus pais casaram, desculparam-se com o ciclo da vida,
o país parecia estar no bom caminho, a casa ainda não.
Quis ser actor o meu avô, depois de ter passado
cinco dias e quatro noites a traduzir uma peça de Brecht
num quarto da pensão Rosa com vista para o rio Sado.

Então nasceu o meu irmão com os olhos que – toda a gente
confirmava – eram iguaizinhos aos da minha mãe.
Depois nasci eu e depois a minha irmã, com olhos de Varsóvia,
não tão honrados quanto belos.
Eu ainda nasci em Portugal, a minha irmã já não, nasceu na CEE,
que entretanto tinha ensinado a minha mãe e o meu pai a serem
ainda mais perfeccionistas nisso de serem honrados.
O meu avô continuava a traduzir Brecht e desconfiava
da PAC e de tudo aquilo que pudesse ser formulado
apenas em três letras.
Para ele, no mínimo, eram necessárias quatro.

Foderam-me a vida, o meu pai e a minha mãe,
e o pior é que o fizeram para que eu pudesse chegar
aos vinte e três anos e dizer que já sou um homem honrado,
tal como o meu pai tem sido, ao contrário do meu avô,
que prefere Brecht à linear organização comercial
do novíssimo amor português.

E pior ainda é que tenho vinte e três anos
e corro o risco de já ser um homem honrado.









david teles pereira
resumo
a poesia em 2009

assírio & alvim
2010