12 janeiro 2009

pedro s. martins / sem título







voei na dança de nuvens vermelhas
pejos testemunhas daqueles
que no mais simples exercício de lucidez
nunca conseguiram elevar os pés acima do sonho. e vi
copas de velas humanas amedrontadas pelo cinza das
almofadas indefinidas. fumos negros saídos das
vossas línguas infaustas
incapazes de serem filtrados pelos cardumes
de peixespecado que moram
na vossa saliva agreste

agora que o sol desbaratou as nuvens que me eram colmo
resta-me esperar que o gritar do fogo
me guie até casa
pois quando vir tudo pintado com o filho
do laranja vermelho incandescente
saberei certamente
que o meu legado é consumido a par com o mundo







pedro s. martins










08 janeiro 2009

carlos poças falcão / os restos







De noite há movimentos para nada procurar:
moeda sobre o tampo numa rotação local,
faces sem saída, cinzas nos cinzeiros.
Vêm habitantes para um esplendor funesto
e a alma fica líquida, dobrada nos sifões,
sob as galerias, por bares subterrâneos.
Há séculos nocturnos em que as moedas giram
assim entre conversas e qualidades mortas.
Nada se procura quando não existe encontro
- e as cidades brilham nas zonas terminais,
às luzes amarelas. É preciso haver um mito
para esmerilar os restos, as areias, os pós de ouro.







carlos poças falcão
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998







07 janeiro 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da mania aguda





Bom dia, Senhores, boa noite, Minhas Senhoras e Companhia do Gás. Senhor Presidente, estou às suas ordens, tenho um chapéu tricorne negro na minha bicicleta. Puseram o gato, o cão, a minha mãe e o meu pai, os meus filhos, a águia na sua carrocinha, puseram os espécimes pobres no furgão, cujos eixos giram, giram e giram. De uma ponta à outra, as agulhas caem como feridas à sabrada. O cemitério está na ponta da aldeia perto da câmara municipal. Aí está o que não é para reatar as cadeias da família em tempo de fome.

O cocorocó das elegantes anima as alíneas dos escrivães. Existe ali Lamartine que dormia num estandarte em cima da carreta de urna garupa de lebre a toda a velocidade, existia lá Bazaine que ia entregar Sedan a César. Tu, por exemplo, não estás lá: tu tens um regador, tens uma perna cortada, isso sorna duas pernas que eu salto no mês de Janeiro. Em Fevereiro colho as favas. Em 1930 vivo dos meus rendimentos.

Atingido por uma insolação no alto do céu, o Parisiense acaba por armar uma rede de patos. Não se grita por socorro, mas auréola, e a dignidade encontra-se nela bem. Tenho processos absolutamente seguros para colher o feno do fauno. Um massagista ofereceu-me uma amassadeira. É para as reler ao canto da lareira que trago comigo as obras dos Titãs e dos Tântalos. Não tenho necessidade de os mencionar no inventário das minhas invenções. A pintura faz-se notada. Respeito Monsieur Courbet, Monsieur Ingres fatiga-me. Foices eclipsam a meus olhos a couraça. Aqui, a propósito disto, avisei os gendarmes: não sacrificamos jogos de cartas à pequena preguiça; não é uma razão para estarmos enforcados em corvos com vinte metros de altura, para irmos gritar «Arre» às árvores mortas.

O casamento de Maria consumou-se no meio de um transbordamento de suspiro. Foi preciso separar o construtor da sua obra. Ele misturava demasiadas arquitecturas a esta carcaça de tijolos que ceifa as sanguessugas nas belas tardes de Verão. O ventre conserva-se inteiramente vivo na mão. Eu gosto de estar deitado sobre o ventre, com a condição de não ser sempre o meu., bem entendido. As mulheres são mãos pequeninas em Paris e mãos grandes no campo. Comem os pardais no Luxemburgo. Não compreendo o esperanto mas acho que a esperança desordenada começa por si mesma. Aposto urna bexiga contra uma lanterna de um gato-pingado em como não existe a eternidade. A eternidade é o éter e mais nada. Fiz os meus estudos em casa de uni advogado que me dizia: Nunca confesse. Na junta de saúde fui reformado pela visão.

Possuo um pavilhão de caça. Uma porta de verdura fecha a herdade de uma ponta a outra. Eu recolho as apostas. O quinteiro tem um chapéu que eu usei, é uma oferta da quinteira. No fundo do chapéu há o meu retrato com os pés no ar (pois é o chapéu quem olha). As crianças que brincam à volta deles apanham bofetadas. Se se batesse o sangue como se bate o leite, iriam fazer-se observações. Bismarck dizia-me no outro dia: «Agarra o teu tempo, que eu apanhei bem a Alsácia.» Bebemos uma taça de champanhe no Champ-do-Mars. O florista que espezinha os canteiros espezinha as áleas. Para a caça que ele leva levantam patíbulos de forca.

Não tenho como finalidade senão o símbolo da oração que dirijo todas as tardes, à minha meca. A bárbara pede perdão. Tiro o meu prazer da barba à imperial onde o encontro. A feitiçaria é uma devassidão que desemboca na sala de lavores, a obra de caridade. Se me rio é por causa da alva nos joelhos, uma bela carapuça de piolhos em cima da cabeça. O filho de Louise mudou a espingarda de ombro. Ele não cumpre dos seus deveres militares senão
o estritamente necessário: o capacete. Fraternizar igualmente com sua irmã.

Escrevo desenho, tenho boca de lobo, tenho a minha mulher comigo na minha cama, mesmo quando estou de pé. Ela trabalha para mim a entregar-se a todos os prazeres. Dou-lhe o seio assim como aos filhos que afago no ângulo. Ao mais pequeno chamo São Tomás, o pequeno São Tomás, e à maior; Primavera. É muito bonito. Toda a gente me felicita. Fiz com que fizesse a primeira comunhão em cima do balcão com um biscoito. Isto é o meu sangue, explicava-lhes eu. Depois comemos bacalhau salgado debaixo das franjas do candeeiro. E meti-os num colégio. Há mais de dez anos que não tenho notícias deles. Quem sabe se a pequena não se casou e divorciou. Minha mãe casou-se com o Xá da Pérsia, alugaram uma loja em Passy, uma espécie de casa de passe com passagem de nível para os homens sós. O xá chega cedo ao castelo, minha mãe é furta-cores.

Trago comigo uma canção que as raparigas gostam de cantar, eu empresto-a. Em troca elas confiam-me o seu primeiro livro de valor que lhes foi entregue com uma coroa seca. Recuso assinar os beijos que elas me dão. Faço-lhes sinal para terem paciência. Já não tenho idade de ter horror pela tempestade. Na nossa cama, tocamos a quatro mãos uma ária de Luili que nunca li na cama, a Paiva penteia-se a tomar banho, romanza, e também a ária da Viúva às escuras. Eu arrasto os sobejos de reconhecimento para os sorrisos que brilham à minha volta. Não me detenho com precauções inúteis.Suporto o fardo que me deram porque é quente mas só me preocupo com as ninfas. Há uma que esconde uma fonte no sovaco. Os oleiros à noite ali vão procurar a cor fugitiva.

Um dia disse para mim: O que faz esta chave na minha algibeira? Fui então a Mans ver Clemenceau. Disse-lhe: «Sabe o que esta chave faz na minha algibeira?» Ele pôs-me um olho negro e eu tive de ficar de guarda à Câmara dos Deputados durante vinte e quatro horas. Roubei a fechadura, depois de me ter certificado que estava realmente à temperatura da Câmara. Com medo que o Presidente se escondesse com as consequências deste incidente, mandei dourar seis dentes e apanhei um balão para voltar a casa. No balão encontro Gambetta. Digo-lhe: «Sabe O que faz este balão no céu?» Ele atira-me pela borda fora mas o meu cerco estava feito havia muito tempo. Era o cerco de Paris. Assino a paz e vou buscar o papel mata-borrão aos Inválidos. Na esplanada encontro Madame Curie que volta das corridas. Digo-lhe «Não tem vergonha de correr assim na sua idade?» Ela empresta-mo o seu cavalo e eis que chegamos ao seu ranch, faubourg Saint-Germain. Ali fizemos experiências de germinação espontânea. Entendia-me bem com Pasteur mas a sua irmã fez quanto pôde para me tornar a vida impossível. Dormia com um olho aberto e outro fechado. Urna noite, a aia percebeu que, muito habilmente eu a via a despir-se. Gritou tanto que toda a gente apareceu e se lançou sobre mim para me forçar a partir.

… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Agora não me meto em mais nada, embora a guerra tenha acabado. Deito-me debaixo das pontes dos rios sem água cortados pela chuva, já não agradarei a ninguém, já não sou eu sequer quem está na minha mala de porco, não tenho fome, não tenho medo: cobarde de mais para ter medo, comilão de mais para comer. Fui eu quem tive de amputar a mulher do sexo do homem com o pretexto de cirurgia estética. Estou mais acabado que um folhetim. Ninguém se daria ao trabalho de me dar trabalhos. Estou magro como um cepo que só tem a sombra da sua única folha. Sou realmente um qualquer, arrasto-me sobre os fechos da minha janela, deviam abater-me com assobios deviam prestar-me o imenso serviço de se servirem do meu pé para pé de mesa.








andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972






06 janeiro 2009

alejandra pizarnik / conto de inverno







A luz do vento entre os pinheiros - compreendo
estes sinais de tristeza incandescente?



Um enforcado balança-se na árvore marcada com a cruz
lilás.

Até que conseguiu deslizar fora do meu sonho e
entrar no meu quarto pela janela, com a cumplicidade
do vento da meia-noite.








alejandra pizarnik
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro

tradução de josé bento
assírio & alvim
2001






04 janeiro 2009

maria victoria atencia / reencontro






Na noite infinita dos que não têm consolo,
Sob a tremenda luz do suicídio perdem-se
suas palavras talvez, enquanto o gelo range
pelo amor que um dia, por certo, contiveram,
e que agora os levanta – oh, sim: bem lentamente –
até à própria face da Suprema Beleza.








maria victoria atencia
antologia poética
el coleccionista
tradução josé bento
assírio & alvim
2000






30 dezembro 2008

conselhos de ano novo







Senhoras e senhores da classe de 99.
Usem protector solar.
Se apenas vos pudesse dar um conselho para o futuro,
diria: usem protector solar.

As suas vantagens a longo prazo
já foram provadas cientificamente,
ao passo que o resto dos meus conselhos
não têm outra base mais segura
do que a minha atribulada experiência.

Agora, vou dar-vos os meus conselhos para o futuro.

Gozem a força e a beleza da vossa juventude.
Mas deixem lá,
que só compreenderão a força e a beleza da vossa juventude
quando a tiverem perdido.

Daqui a 20 anos hão-de olhar para os vossos retratos
e ver que registaram coisas que vocês agora não conseguem entender:
as possibilidades que se vos abriam
e o aspecto fabuloso que tinham!

É que vocês não são tão gordos como imaginam.

Deixem de se preocupar com o futuro,
ou então preocupem-se
mas saibam que isso vale tanto a pena
como tentar resolver uma equação de álgebra
a mascar pastilha elástica.

Os verdadeiros problemas da vossa vida
serão coisas que nem sequer passaram
pelas vossas cabeças preocupadas.
Do tipo daquelas que surgem às 4 da tarde numa terça-feira qualquer.

Façam todos os dias uma coisa daquelas que mete medo.
Cantem.

Não se tornem levianos com o coração dos outros
nem aceitem que o sejam com o vosso.

Usem o fio dental.

Não sejam invejosos:
às vezes vamos à frente, outras vamos atrás.
A corrida é longa,
mas a verdade é que é uma corrida contra vós próprios.

Lembrem-se dos elogios que vos fizeram,
esqueçam os insultos.
(Se conseguirem, digam-me como é que fizeram.)

Guardem as vossas velhas cartas de amor,
queimem antes os extractos do banco.

Façam “stretch”.
Não tenham remorsos
se não souberem o que querem fazer da vida.
As pessoas mais extraordinárias que conheci,
não sabiam, aos 22 anos, o que queriam fazer dela.
Alguns dos quarentões mais interessantes que conheço,
ainda não sabem...

Tomem bastante cálcio.
Cuidem dos vossos joelhos
Que vos vão fazer muita falta.

Talvez se casem, talvez não.
Talvez tenham filhos, talvez não.
Talvez se divorciem aos 40 anos,
talvez dancem sem parar no vosso 75º aniversário de casamento.

Façam o que fizerem,
não se entusiasmem demais,
nem se censurem.
As vossas escolhas são meio caminho andado,
tal como acontece com toda a gente.

Gozem o vosso corpo,
usem-no de toda a maneira que puderem!
Não tenham medo dele, nem do que os outros pensam dele:
o vosso corpo
é o instrumento mais fantástico que jamais terão!

Dancem, ainda que não tenham onde dançar,
a não ser na vossa sala de estar!

Leiam todas as instruções,
mesmo que não as sigam.
Não leiam revistas de beleza, porque se sentirão mais feios!

Dêem-se ao trabalho de conhecer os vossos pais,
nunca se sabe quando vos deixarão para sempre!

Sejam simpáticos com os vosso irmãos,
eles são a melhor ligação que têm com o passado
e os que, mais provavelmente,
se manterão ao vosso lado no futuro.

Compreendam que os amigos vêm e vão.
Aguentem-se com os poucos e os melhores que têm.

Trabalhem muito para preencher as lacunas em geografia
e no estilo de vida.

À medida que forem envelhecendo,
mais vão precisar das pessoas que conheciam quando eram novos.

Vivam uma vez na cidade de Nova Iorque,
mas partam antes que ela vos torne duros!
Vivam uma vez na Carolina do Norte,
mas partam antes que ela vos torne moles demais.

Viajem.
Aceitem certas verdades inalienáveis.

Haveis de passar por crises,
os políticos não deixarão de vos endrominar,
vocês também vão envelhecer.
Quando isso acontecer, vocês também vão dizer
que quando eram novos os preços eram razoáveis,
que os políticos eram mais sérios
e que as crianças respeitavam os mais velhos.

Respeitem os que são mais velhos que vocês.

Não fiquem à espera que alguém vos sustente.
Talvez venham a ter bens ou casem com alguém rico,
mas nunca se sabe se tudo isso desaparecerá...

Não se preocupem demais com o cabelo,
senão, quando tiverem 40 anos, ficarão com o ar de quem tem 85.

Tenham cuidado com os conselhos que ouvem,
mas sejam pacientes com aqueles que os dão.

Os conselhos são uma espécie de nostalgia.
Dá-los é uma maneira de trazer o passado,
de o limpar,
de o pintar por cima dos pedaços feios
e de o reciclar por mais do que vale.

Mas não deixem de acreditar em mim
quanto à protecção solar.









baz luhrmann
everibody’s free (to wear sunscreen)
cd “something for everybody”
emi-vc
(tradução livre)

23 dezembro 2008

marguerite yourcenar / estações alciónicas...







Estações alciónias,
solstício dos meus dias ...

Longe de embelezar, à distância,
a minha felicidade,
devo lutar para lhe não turvar a imagem;
a sua própria recordação
é hoje demasiado forte para mim.

Mais sincero que a maioria dos homens,
confesso sem rodeios
as causas secretas dessa felicidade:
aquela calma tão propícia aos trabalhos
e às disciplinas
parece-me um dos mais belos efeitos
do amor.


E espanto-me
de que estas alegrias tão precárias,
tão raramente perfeitas no decorrer de uma vida humana,
sob qualquer aspecto
além de que nós os tenhamos procurado
e recebido,
sejam consideradas com tanta desconfiança
por pretendidos sábios,
que eles receiem o seu hábito e excesso
em vez de temer a sua falta e perda,
que passem a tiranizar os sentidos
um tempo que seria mais bem empregado
a ordenar ou a embelezar a alma.

Naquela época
punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la,
e também em julgá-la,
a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores
dos meus actos;
e que é a própria voluptuosidade
senão um momento de atenção apaixonada do corpo?

Toda a felicidade é uma obra-prima:
o menor erro falseia-a,
a menor hesitação altera-a,
a menor deselegância desfeia-a,
a menor estupidez embrutece-a.


A minha
não é responsável em coisa alguma por aquelas
das minhas imprudências
que mais tarde a quebraram.

Julgo ainda
que teria sido possível a um homem mais hábil que eu
ser feliz até à morte.









marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974







15 dezembro 2008

raul brandão / papéis do gabiru

.
.



klavdij sluban








chove um dia, outro dia, sempre.
amanhece um dia nublado,
outro dia alvorece áspero e negro.
o vento abala a pedra
sobre que é construído o casebre.
o inverno tem a sua voz própria,
a sua cor, o seu vestido em farrapos
com que agasalha os montes
deixando-lhe os ossos de fora.
mas o inverno é sonho.
só agora o compreendo.
é sonho concentrado:
sob esta casca ressequida
está uma primavera intacta.
esta voz clamorosa é a voz dos mortos.
uma pausa,
a prostração da tempestade,
e depois redobra o clamor...
andam aqui as suas lágrimas...
na sufocação
reconheço esta voz que me chama.
e depois a tempestade,
novos gritos,
a escuridão profunda...

lá andaremos todos não tarda!
lá andaremos todos não tarda!

"que frio o outro mundo!
que impassibilidade a do outro mundo

saudade, saudade de tudo, até do fel,
saudade de te não sentir ao pé de mim.
tenho saudade da vida.
só poder aquecer-me ao lume,
só sentir o lume neste inverno sem limites,
neste frio de morte - sem outra primavera!


o que a vulgaridade sabe bem! o que a matéria sabe bem!

não vejo. ceguei.

disperso-me, e por mais esforços que faça,
sinto-me desagregar:
perco pouco e pouco a consciência de mim mesma.
sou ainda ternura e pouco mais.
já não tenho lágrimas.

quem me dera a desgraça!

e uma pena da vida! uma saudade da vida!
uma tristeza de não poder misturar-me à vida!
a vida - e um cantinho do lume,
a vida banal, a vida comezinha...
tenho saudades do muro a que costumava queixar-me.

vive devagarinho.
aquece-te à réstea do sol
como quem nunca mais tornará a aquecer-se;
perde todas as horas a trespassar-te da vida.

deixa que sobre ti caia o pó de oiro. vive-a.

tu és a nuvem, tu és a árvore.
enche a consciência de todas estas coisas,
porque não tardarás a perdê-la.

vive - não tornas a viver.
põe de acordo a tua alma com a pedra,
extrai encanto do céu e da miséria.
pudesse eu gritar! pudesse eu ter fome!

só agora dou pelo sabor das lágrimas.

sorri, esquece, dorme, sonha..."







raul brandão
húmus
(grafia adaptada)
frenesi
2000









10 dezembro 2008

alexandre moreira / o cão continua coxo








Nasce o dia de ideias políticas e de finanças
percebe a malta do leste ou a leste da malta se
contentam estatísticas e marinheiros próprios
do sábio descendente,

com isso se incute a perversão no
chefe da sua armadilha
no homem permitido ao morcego rotinando
os lagos
e os lembretes

afinal quem se recorda do dia em que a luz se fez luz ?
E que textos destrinçam os astronautas na visibilidade do espaço?

Não se lembram nem se afogam sem um limiar
e das finanças que a malta concebe
não se conjura o semblante de cada livro editado;

o cão continua coxo
o automóvel continua roxo
o ardil continua um mocho
e a estatística entende-se como própria dos encontros à beira-mar,
senta-se na areia
desenha para que o mar entenda o que se esvai

e a cada dia mais dias nascem e novas estatísticas
multiplicam outras tantas,
a malta do leste cada vez mais percebe
o leste da malta cada vez menos se inverte pela
tradição oral,

a língua condiciona o ardente ciúme
de quem fez lume por se lembrar
houve, afinal, um dia em que a luz se fez luz

mas era microscopicamente visível nos corpos distantes
e logo se condenaram as ampliações em marasmos
insignificantes de salões de chá

os astronautas dizem livros editados,
são flores cozinhadas pelo rubro medo do espaço
em que se plantam tanto finanças
como estatísticas, dicionários e solfejos arquejando
um abutre nos símbolos

o médium é agora o nome
onde a criança preenche o tédio civilizado
e nem do espaço é visível
a lembrança do lume ampliado

tudo é um livro editado
sem que isso fume a maior devoção
pois dentro de si amam os novíssimos amantes,
com claves de Fá inspiram com
abecedários expiram

e reluzir o oxigénio seria o novo circuito do receio mãos ao alto pés para dentro
- encoste-se à parede - é a nova fotografia
de quem procura esquecer o dicionário
o solfejo que nada semeia,

a simples reminiscência do nada que inventa,
inventa,
ofusca e anseia.






alexandre moreira




08 dezembro 2008

heiner müller / as imagens








As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.
Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista, o grou, um pássaro, mais
nada
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

sobre ossos feliz o carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores.





heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997





06 dezembro 2008

novalis / os hinos à noite



4

Sei agora quando será a manhã derradeira - quando a luz não afugentar mais a noite e o Amor – quando o sono for eterno e um sonho só inesgotável. Sinto em mim uma fadiga celeste – Longa e penosa foi a minha peregrinação ao Sepulcro Santo, opressiva a minha Cruz. A onda de Cristal, imperceptível aos vulgares sentidos, que jorra no seio obscuro do montículo de cujo sopé o terrestre caudal irrompe, quem dela alguma vez provou, quem esteve no cume das montanhas que delimitam o mundo e olhou para Além, para a nova terra, a morada da Noite – em verdade, esse não regressará jamais aos trabalhos deste mundo, à terra onde a Luz habita em eterna agitação.
Esse é o que levantará no alto as tendas da Paz, o que sente a ânsia e o amor e que olha para Além até que a hora entre todas bendita o faça descer ao imo da nascente – por cima, flutua o que é eterno, reflui ao sabor de tormentas; mas tudo aquilo que o contacto do amor santificou escorre dissolvido, por ocultas vias, para a região do Além e aí se mistura, como os aromas, com os seres amados para sempre adormecidos.
(…)




novalis
os hinos à noite
tradução de fiama hasse pais brandão
assírio & alvim
1998





04 dezembro 2008

pedro s. martins / aranha rainha







atirei uma caneta ao ar para que ela escrevesse na cortina do sonho:
" não preciso do teu pulso para desenhar letras". era aranha
rainha que tecia a tinta preta este poema na sua teia. não
estava à espera de apanhar insectos,
apenas alegorias à pessoa.
sempre que uma ficava presa, com as patas, não a matava, estimulava
o fim precoce dos sentimentos. dos bons dos maus e quando havia nuvens
no céu florido dos perversos.
manta de emoções, retalhos de vidas, sonhos eternos, rostos estacados
em corpos que não lhes pertenciam.

agora,
que acordo para nunca mais adormecer,
pressinto que me capturaste tudo que tinha e o deglutes na
paz do teu sono obreiro.
não queria ser eu a ter que te dizer isto, mas:
sou pele de cobra dos mil fôlegos: regenero-me sazonalmente. renasço
do que capturaste e renascerei as vezes que estender a tua
teia manto de razão errada em mim.





pedro s. martins





01 dezembro 2008

herberto helder / eles construiram...








Eles construíram
e os anos destruíram,
e eles reconstruíram as coisas gastas
e construíram
outras novas.

Que é isto?

Quer dizer
que a carne renasce,
e é essa a tarefa?

A noite vem sempre,
mas talvez trabalhem também
de noite.

Às vezes
ouvem-se as picaretas e os martelos,
à distância,
durante certas noites.

E depois é manhã,
e apercebemo-nos de que existe
uma coisa nova,
um corpo que se organiza para o dia,
e isso
foi um secreto trabalho nocturno.

Eles acreditam, então
— será verdade que ousam acreditar?

Pode-se avançar nas trevas.

Uma,
duas vezes,
foi-nos indicada uma luz fugitiva
e depois sabemos.

Talvez ainda mais nítida,
a topografia marcou-se na nossa cegueira,
e então caminhamos,
caminha ele com o seu cigarro
por acender,
a sua perseguição ao fogo.

Não é uma admirável virtude do fogo,
não será até um milagroso
talento das trevas que,
aqui e ali,
durante um segundo,
o fogo abra a sua pequena
rosa trémula,
e o homem possa respirar
na cega atmosfera
dos séculos?

É
— eis que ele o diz para si,
com uma força maior
do que ele próprio,
o inventado poder da sua
vertiginosa,
momentânea fé.

Caminha pelos anos pétreos,
com os pés a decifrarem
o empedrado
e os degraus do bairro.

Ouve os próprios passos,
porque sempre ouviu as
pancadas do coração
— por aí é que reconhece estar vivo,
embora isso seja violento demais
e demasiado precipitado
para a verdadeira harmonia que,
possivelmente,
seria o estar vivo.

Mas respira,
isso sim,
o sangue corre pelas veias e artérias,
corrompe-se e purifica-se
dentro da confusa massa
da sua dor de homem,
e anda,
ele anda,
sobe,

Contudo,
os passos que ouve,
como se fossem as pancadas fortes
do seu sangue,
parecem distanciar-se.

Pára.

E os passos continuam,
afastando-se.

Mais longe,
aparece a brasa do cigarro.

O outro foge.

Porque foge?

Que medo inspira assim
o desejo do conhecimento,
ou o desejo do amor?

É a caça?

Existem aqui o desígnio,
o jogo,
o ritual — e a alegria bárbara
e o primitivo pânico da caça?

Porque o amor é mortal
(o amor é mortal?).

Talvez se adivinhe que sim,
e obscuramente se saiba
que é mortal
o conhecimento.

Talvez seja isso
o que melhor se conheça do conhecimento
— a sua natureza mortal.

Os passos do outro
fogem pelo tempo fora, ouvem-se.
— embaraçados e rápidos —
perdendo-se nas escadas,
pelas ruas ondulantes,
sob os arcos.

Um momento ecoam no meio de uma praça,
o cigarro brilha,
forma-se uma súbita coroa
de silêncio,

Haveria palavras para dizer,
a antiquíssima súplica do perseguidor:
porque foges?

Mas não haveria resposta.

Ou seria:
tenho medo, ou então:
é o jogo.

Contudo,
não se sabe bem o que acontece,
por isso não haveria resposta.

Medo?,
porquê medo?,
dir-se-ia, jogo,
que espécie de jogo?

E as palavras
nunca mais acabariam.

Não mais existiria este silêncio
no qual, ofegantes,
sabemos com tanta dor
que ainda estamos vivos.

Por isso é que andamos,
agora com todas as artes da caça,
devagar,
depressa,
silenciosamente,
cercando a
presa.












herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968