22 março 2006

post it / luís melo


[ Coiso! ]




... Tão baralhado
tão cheio de bicos
para cima
e para baixo.
A bússola maluca
a rodopiar desatinos;
o sol a sul
anti-magnético
desnorteado;
espectros
esvoaçantes
não identificados.
Vogar à deriva
sem radar:
algures a plenitude
no arco ogival
a basílica
vertigem gótica
naves laterais
de inexistência
e vacuidade;
Ah, a promenade,
a nave central
com declive
a tender
para o confuso
e infinito
do alfa à morte
do ómega ao parto.

Vagamente...
marcial um Viva-se !
Pois!
...Vagamente !
uma missão
logo à partida
inconclu-ida
inconclu-sivel
inconclu-dente
inconclu-coisa-nenhuma
de uma longa
e vaga
sim sim sim ... vaga
caminhada
até aqui
e a sê-lo
de ser onda
do meu mar
mural de história
pouco nada
ante-projecto
de desespero!
Sem sentido
salgado
(e como é obvio,...)
... vaga _ mente
escorrer por fora
de um globo ocular
ou... ser lágrima !




luís melo

20 março 2006

post it / l. maltez

no bater das portas


entrei no lado azul da noite
em silêncio pesado

tropecei na verde porta
com palavras embrionárias

flui da obscuridade
sem nome de gente

empurrei o verão
esquecida, na inocência do tempo
do lado de lá, disseminei aromas
na magia dos ventos desabridos

rostos sedentos,
aterrados,
suspirantes no sossego
duma noite, sem paisagem
transpirada de azul

voraz passa incandescente
a idade louca de um tempo


l.maltez




19 março 2006

post it / rui martins

eclipse


há um piano a tocar(te) no quarto.
Fixas os olhos em mim e deixas o tempo passar
atrasando as horas
negando beijos
adormecendo na minha mão, todos os dias mais um pouco.
[Amo-te porque existo]

Sopro água nesse rosto
conto as gotas e adormeço no banco das tuas mãos transparentes.

Flutuas sobre a cama na força que drenas do corpo tocado Existes eternamente nua em cada marca que os meus lábios deixaram [em cada regresso] Com um gesto fechas os olhos, dás-me outro mundo, guardando-me dentro de ti como fazes aos segredos.

PS - Conservo os teus mamilos em absinto queimado, ainda me ardem na boca.



rui martins

17 março 2006

estações

2)


Sandro Botticelli, Birth of Venus (detail)



hoje,
o sopro dos anjos,
onde já nem a sombra
chegava.




gil t. sousa

16 março 2006

post it / carla ribeiro

eu sou as personagens que tu representas
as falas que inventas
as histórias que gostarias de ter vivido
os sentimentos que sabes ter fingido
a cartilha das tuas opções
o chorrilho das tuas razões
as viagens que nunca fizeste
o grande amor que não tiveste
o talento que não é o teu
o saber que tens e que é o meu

a tua vida é o maior livro em que escrevo
nele não ficará registado tudo aquilo que não fiz
tudo aquilo que quero escrever mas de verdade temo



carla ribeiro

15 março 2006

post it / m. f. s.


até nós chegavam as notícias murmuradas
nas brisas da beira-mar

eram os rastos das jovens mães em alvoroço
os sons desarticulados das crianças nos ninhos
o desenho do futuro incandescente

as adolescentes ensaiavam meneios
como protagonistas de telenovelas
e riam olhando de través os rapazes
gulosos

os cabelos embranqueciam
nas cabeças dos animais domésticos
de olhos suplicantes

era notícia








m.f.s.

13 março 2006

estações

1)

se não fosse segunda-feira, metia uns ténis e uma t-shirt preta. punha os headphones com muito Pergolesi (sim, o Giovanni Battista) : Stabat Mater nas versões que me fosse possível reunir. saía pelas ruas mais solarengas e cagava-me para o facto de ser o elo mais fraco na cadeia da criação. sentava-me na Capela Sistina, volume no máximo, ria-me muito cá para dentro daquele cromo que vai dar 160 mil euros para viajar no espaço e passava a manhã a perguntar-me:

- mas quem era este Miguel Ângelo?

… mas sendo segunda-feira, deixo o telefone tocar, minimizo o excel e colo aqui este pormenor.







gil t. sousa

12 março 2006

Nem Sempre Sou Igual






Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,

Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...



Alberto Caeiro
O Guardador de Rebanhos

12 fevereiro 2006

Palavras em desalinho para uma despedida



Para onde foi o amor, anuncia a rádio,
com a Bette Davis, num cinema de subúrbio,
e também eu pergunto, inutilmente te pergunto,
para onde – se alguma vez, entre nós, realidade teve.
Indomada a solidão firma as suas raízes
e, canção que vem com o vento, irmana-nos no ódio.
Porque podem o cavalo e a serpente dois anos conviver
que nem por isso há-de ter neles morada a ternura,
a noite guardará os seus relances de insónia e destruição.
“Quand vous serez bien vieille”, escreveu Ronsard,
e Henry Cristophe suicidou-se com uma bala de prata,
formoso e absurdo gesto: palavras que só a Beleza selará.
Nunca a mesquinhez ou o engano serão vencidos pela idade,
nem prevalecerá a prata sobre o sangue
no desesperado estertor final.
Para onde foi o amor, oh tu, que sempre amaste,
donzela pura confiada às presas da fera.
E dias deixaste passar, e horas transparentes,
onde cada sílaba exumou o seu peso de verdade.
Ilusório domínio da tua vida,
não quiseste então, nem uma só vez o quiseste,
o tutano último das palavras,
o que nu e virgem se levantava entre elas.
Mais cómodo e alegre foi aprender aquilo que fácil se oferecia
com valor bastante para ser leiloado numa festa.
Triste é ser juiz e mais ainda ser verdugo.
Como um cego, agora, vagueio na memória
tacteio os frágeis muros onde a sombra derramaste,
esbarrando na tua lembrança, mesmo à beira do que já não existe,
infantil e torpe. Treme nas minhas mãos um punhal.
Para onde foi o amor.
Eis as palavras para uma despedida.





Juan Luís Panero
“Antes que chegue a noite”
Fenda, 2000






PS: até sempre!



22 setembro 2005

posição política



Bananas

A banana tornou-se um fruto demasiado precioso para simbolizar esta república. O fungo da foleirice invadiu tudo. O país devia ser evacuado e desinfectado.

Já não serve de nada escolher entre um Soares e um Cavaco. O único protesto decente é abandonar o país aos seus ratos.




gil t. sousa








07 setembro 2005

quatro estações #crónicas de verão

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Não quero perder o navio em Nova Orleans



Não quero perder o navio em Nova Orleans.
Não quero perder o navio.
Quero subir este vasto e fundo Mississipi
Que foi sonho da minha vida aventureira.
Quero subir o rio de margens baixas, verdes,
O rio lodoso que rasga um continente
Até ao coração desta cidade em perdição perdida.
Quero subir o rio depois de ter visto nos bars escuros
As mulheres nuas de Nova Orleans.
Quero subir o rio na barca antiga,
Igual à das estampas antigas.
Quero subir o rio que já não tem aventura
Para guardar na memória este pedaço de aventura.
Já não há troncos de árvore à deriva no rio,
Mas eu quero agarrar-me ao tronco de árvore
Que à deriva,
No rio,
Arrasta para o mar
Este sonho de fuga
E de abordagem
E de viagem
E de evasão
Para mundos distantes,
Para cidades exóticas,
Para mares insondáveis,
Para rios infindáveis,
— Este sonho de fuga
Que marcou, indelével,
No mapa da vida,
O meu destino.


Nova Orleans, 30 de Abril, 52.




Joaquim Paço d´Arcos
“Poezz”
Almedina 2004

02 setembro 2005

quatro estações #crónicas de verão

ESCATOLOGIA POÉTICA DOS ATROFIOS


1.


Uma questão menor
Nada de pessoal
Um acesso de furor --

Ausência
Falta

Tudo se destrói;
O círculo degenerou em espiral

Faltam ideias
Falta vontade

Respirar é um caos

Nada é verdade,
Só a sua falta.

E o comboio do ódio afasta-se em silêncio

E eu parado
Parado, atafulhado em cigarros
Cigarros e mais cigarros --

Paralisia infernal de desgosto e raiva e morte

(Arrependimento não?)

Lágrimas
Solitárias
Um telefone
Desligado
E mais cigarros

Mais dúvidas
Onde a esperança ainda vive
Falta rogar a Deus,
Só rogar a Deus.

Lá longe, o comboio do ódio rasga planícies cinzentas de indiferença e
morte.


j-