30 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de inverno

a imagem do inverno


cruzei-me contigo ontem no denso granizo da noite, a dureza do dia transformou secamente o rosto gasto dos silêncios das sombras. lembra-me o teu nome invernoso, negro e pesado, o vicio onde transformei as mãos amarelecidas e secas de tanto fomentar. não grites, já não te ouço, a tua voz é um eco delicioso eterno no silêncio das noites misturadas, a solidão é cega e fria.

falta-me o túnel do sono invencível. entras na companhia do vento inconcusso, um vento indiferente. os dias chegam ausentes, agasalhados nas asas de nuvens cinzentas, desarrumadas de imagens, ninguém corrompeu o sentimento do teu tempo e tu voltas sempre no mesmo dia à mesma hora.

guardo a imagem do sonho turbulento. o sonho que parece ser real, o ranger das portadas de madeira, o fragor dos vidros, onde escuto o crescer da maré, dobrado no arrepio ameaçador do inverno. a insistência em ficares envolvido nos tons cinzentos de olhar ameaçador, afogado nas águas estagnadas. guardo a solidão dos dias que trazes, sem tons, indecisos e repisados.

empurra-me deste frio que desanima e arrefece o corpo, deste inverno que me cansa.



l. maltez

27 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de inverno

será esse o teu inverno
nada te levará tão longe, como os dias cegos de outrora. janelas que se perdiam na bruma, olhos que pousavam no impossível do tempo, movimento perpétuo dos lábios com marés de palavras esculpidas no coração.

foi tudo nesse horizonte afogado. a mesa vazia, o piano calado, o pássaro imóvel. virás por muitos anos, como a espuma dos sonhos perdidos. e a raiva será cantada no paredão da memória até ficarem macias as pedras do caminho.
será esse o teu inverno.
gil t. sousa

20 dezembro 2004

há coisas em que não vale a pena ser original...

Brinquedos



Nós, que somos espantosamente grandes,
que já não deslizámos pelo gelo desde as duas guerras,
Ou se o fizemos alguma vez, sem querer
Já nos fracturámos um ano,
Um dos nossos importantes e duros anos
De gesso...
Oh, nós, os espantosamente grandes
Sentimos por vezes
Que nos faltam os brinquedos.

Temos tudo o que necessitamos,
Mas faltam-nos os brinquedos.
Temos saudades do optimismo
Do coração de algodão das bonecas
E da nossa nau
Com três fieiras de velas,
Que tanto sulcava as águas
Como a terra firme.

Gostaríamos de montar um cavalo de madeira
E que o cavalo relinchasse ao mesmo tempo que a madeira
E que nós lhe disséssemos: 'Leva-nos a algum sítio
Não importa qual,
Porque em qualquer sítio da vida
Propomo-nos levar a cabo
Formidáveis façanhas'.

Oh, quanta falta, por vezes, nos fazem os brinquedos!
Mas nem sequer podemos estar tristes
Por essa razão,
E chorar com toda a alma,
Agarrando a perna da cadeira
Porque somos tão adultos
Que não há ninguém mais velho que nós
Para nos acariciar.




Marin Sorescu,
de "Simetria"
Tradução colectiva
Poetas em Mateus, Quetzal




15 dezembro 2004

um poema de: Pere Gimferrer




Associo a chuva aos mortos


Associo a chuva aos mortos. Vem muito lenta,
com os nardos e os tubérculos, com o frio dos líros
e os grumos pastosos da terra lavrada,
com as nervuras das folhas, as sombras,
com o voo da codorniz e o grito do mocho.
Pela terra dentro, pelo tempo dentro, no coração
do barro, quem sabe deles? Esperam porque é esse
o ciclo da fecundidade. O machado, enterrado,
brilha com a mais viva prata, com um fogo mineral.
Essa é a lei. A chuva lava os sulcos
de rodas na terra, de tantos carros que passaram,
e passadas de humanos e cavalos. Um bafo cinza e líquido,
uma claridade afogada, como aço escuro e opaco,
sobre a terra empapada. Não ouves estas vozes,
os risos das raparigas num meio-dia de Agosto?
Não vês esta blusa vermelha? Como a raiz,
a mão ainda escava na terra húmida, dedos
como garfos, secos, de árida pele
como papel de embrulho. Não, a chuva não chega
a este reino. Cai muito lentamente, conhece
com profunda piedade o tronco da oliveira
e brune a angulosa aspereza da pedra,
e, na laguna, desbrava as águas pantanosas,
coléricas de fumo, e humedece o covil
da raposa, a lura do coelho e o ninho do rouxinol.
Mas não chega, sob a lama empapada,
sob o terrunho de humildade porosa,
de paciência e de luz, ao mais escuro reino,
ao país de rancor e secura dos mortos,
que ainda alongam mãos hostis, ferruginosas,
dentes carcomidos e sexos erectos e convulsos,
mumificados, e com avidez de unhas e de pó
rasgam a pele. Querem possuir-nos
ou apenas pedem para voltar a ser? Pedem
crispação, tremura e sofrimento?
Pedem acaso a incerteza
diária, sentirem que o desejo os sacode,
a pancada da pânico, a fúria
do domínio, o receio da derrota?
Acaso se atrevem a querer sobreviver?
Como vive a raiz, como vive o tubérculo, como vive
a erva, nunca poderão viver os homens
conciliados com um destino? Não aceitarão o cielo
do tempo fecundo e o do regresso à terra?
Por tanta dor que já passou,
pelo instantâneo ardor de tantos corpos,
por tudo o que esta luz de chuva nos recorda
e este sabor da terra recém-molhada,
pela vibração do ar quando a chuva
parou há instantes e um pássaro ergue o voo
num silêncio claro, e por esta cor
do pássaro, indeciso no azul, que gorgeia
quando o céu é mais nítido, pelo sofrer
que recordamos e pelos amores de antes,
e pela humilhada inocência,
e pelos desejos nunca confessados,
por tudo isso: nunca teremos uma palavra?
A chuva entra nos palheiros das velhas casas de lavoura,
a madeira apodrece, abre sulcos de água na terra arável
e nutre os narcisos. É cor de cinza
e, nos vidros das janelas tem a cor das memórias.
Há apenas um tempo. O tempo do homem
e o tempo do animal e da planta
e o tempo da pedra são um só. Este falcão
que agora, fulminante, cai do alto do céu,
sabe onde vai, como a pedra que no fundo da cisterna
vê o seu destino num relâmpago de águas.
Subitamente o vêem, e os anula,
e os possui, e chegam ao resplendor: atingem
a fulguração do ser. Chegam assim
a ser o que são. Fiéis, silenciosos,
como o chaparral queimado pelo sol, dizem que sim,
sabem que é sim, que esta imagem
— o brilho de uma água morta, ou, ao cair da tarde,
um lugar de sombras no coração do outeiro —
é o que são, chama-os, para morrer ali,
e esta morte será um ter vivido,
não uma interrupção, nem sequer uma espera.
Dizem que sim, sentindo que não é para lamentar
nada, que nada têm a esperar, que nada se mutila
porque já tudo existia antes: Viviam
sempre o tempo do lugar de sombras
e o tempo da água morta no fundo do poço.
Quando passamos, de noite, junto ao rumor
que o vento ergue na folhagem dos choupos,
ou, na iluminada glória do meio-dia solar,
recolhemos, num cacho de uvas, a claridade,
ou semicerramos os postigos — o sol
é um martelo nas ruas desertas — e um corpo
nos fornece um alento cálido de limões,
ou, quando, pela mata, vemos uma pedra vermelha
ou ouvimos um estalar de ramos e de águas
sabemos que tudo será esse único instante?
Acaso esperamos algo mais? Sem memória,
desapossados, o tempo já não nos ofusca
com um espelho sob o sol,
já não nos fere os olhos com luzes de feldspato.
Eu sou o meu ontem e sinto a eminência
do futuro que pulsa em cada gladíolo.
Não nos espia atrás do instante: é o instante.
Não tem o escuro rosto do nosso receio
nem deverá ser-lhe pedida piedade. Não sentíamos,
desde sempre, que o trazíamos connosco? Desejo,
tu, negro escravo com máscara de príncipe,
e tu, princesa branca e cega, paixão
que ris vestida com a claridade dos lírios,
não sentis que o instante é o vosso tempo?
Nada ganhamos, nada perdemos. Os mortos
vivem o tempo eterno e nocturno da névoa,
o instante que é todos os tempos. O tempo
do desejo e da paixão, o tempo de recordar
e o tempo de sonhar. Os vapores da névoa
e uma fumarada como a da lenha verde
informam onde estão os nossos sonhos: longe,
como os relâmpagos numa noite de estio.


Pere Gimferrer
“Quinze poetas catalães”
Ed. Limiar, Porto, 1994
Trad. Egito Gonçalves



10 dezembro 2004

quatro estações #crónicas de outono

hairy building



a casa


e a casa fecha-se
como uma flor que se gasta

agora
as palavras sobem-na
como raízes
devoradoras
sobre os olhos
entaipados

há esse amor
um vermelho muito alto
tão alto
e a morrer, a morrer
como sangue ao relento
ou livros abandonados
no chão da memória

no desejo

e há um adeus muito triste
um céu antigo
que tudo cobre sem gritar

ternura
é a ternura meu amor
é esta fogueira medonha que se apaga
no coração silencioso
do tempo frio

a casa, amor
o punho fechado do destino
roendo
o que os olhos largaram na rua
o que as mãos pousaram
no coração
para sempre, para sempre, para sempre

gil t sousa

23 novembro 2004

quatro estações #crónicas de outono



Escrever o Outono



Abraçar o cansaço
dos ramos que já não sabem
tecer a própria sombra.

Estancar o olhar,
vê-lo envelhecer como um rio.

Assistir à antiga nudez das árvores
e pensar as folhas caídas
como memórias dolorosas.

Escrever o Outono
e sujar os dedos na sua melancolia.




Diogo M. Silva

14 novembro 2004

quatro estações #crónicas de outono




Livros que deitam folhas


A um livro, por vezes, crescem-lhe raízes para dentro do próprio leitor. É, então, possível vê-lo assentar a estacaria minuciosa, encenar-se, senão mesmo deitar lume. Dê-se-lhe voltas, e não se lhe compreende a fonte, a subtil força que o anima, nos perturba.
Por vezes, há ocasionais, discretos versos suspensos da página, que maturam sombriamente por fora, que se anicham entre os parietais. Como que redivivos. Quando falamos de livros, não chegamos, sequer a falar de livros. Falamos dos versos que se pegam ao corpo – que ofuscam. Por que há versos que trazemos ignorados como um nome. Outros: já lá estão, desde sempre, ao fundo, à nossa espera.

Eu amo assim: com as mãos, os intestinos. Onde ver deita folhas. Luís Miguel Nava.

J. P. Francisco

06 novembro 2004

As coisas e a cópia das coisas



A dualidade do belo e do útil está presente em toda a filosofia grega desde Homero a Platão. Enquanto o homem pré-histórico marcava a sua arte por uma forte intenção social e pela utilidade quotidiana, os gregos libertando-se da necessidade do mágico e do sobrenatural pelas ideias, equacionam essa dualidade por uma prática artística e filosófica.
Hesíoclo começou por dar uma interpretação à beleza que, segundo ele, tinha a ver com as cores, as formas, a expressão e até mesmo a beleza moral, adaptando pela primeira vez o belo a uma manifestação humana. Para ele, a diferença entre o belo e o bem é que o belo é imediato, enquanto que o bem é mediato. Isto é: o belo permite uma sensibilidade de gozo, o bem é apenas uma fruição do prático.
Este conceito evoluiu em Homero para uma interrogação dialéctica entre um e outro conceito. São as coisas belas forçosamente úteis e haverá sempre beleza no que é útil?
Homero diz que o que é útil pode ser belo e que o belo pode ser útil, mas uma coisa não implica a outra. De facto, a beleza pode ser utilitária mas não é essa utilidade que lhe confere a categoria de belo.
A metafísica, no entanto, veio trazer ao pensamento grego uma nova concepção. O belo não é o formal, o concebido na materialidade das coisas. O belo passa a ter e a ser uma existência nos próprios conceitos e nas ideias. Aliás, Sócrates e Platão, opõem à beleza artística a beleza da natureza. E esta está acima daquela porque nenhuma realização artística pode criar vida, enquanto a natureza é a própria vida, ela mesma na sua criação, incomparável a qualquer criação humana.
Platão formula na sua filosofia um novo conceito de belo. Institui o mundo como a criação dum modelo e dum paradigma onde, na sua essência, o belo é autónomo tanto quanto o seu fim.
Já a lógica aristotélica intrinsecamente naturalista, atribui à realidade uma certa imperfeição. A realidade é desajeitada e em si mesma desprezível, porque tudo está nas ideias. A realidade, como tudo afinal, só é apreendida quando se conhece a Ideia Final. O bem e o belo têm assim um valor cósmico.
É destes pensamentos que vai nascer pela primeira vez a arte como deleite. Abandonada ao tempo a necessidade da magia e do sobrenatural, a arte reflecte e traduz o Ideal e exerce na realidade uma influência modelar. Longe de preceitos e de práticas, a arte afirma-se sem um objectivo prático. Ela já não é um meio para atingir um fim, mas um fim em si mesma.
O artista criará a perfeição e a beleza e é a partir daí que o real será interpretado e julgado.

Ortega y Gasset (“Estética en el tranvia”) opõe-se completamente a esta unicidade do que é belo e do seu modelo absoluto sobre a realidade.
Para ele a perfeição é o implícito em cada parcela de real. Não é a ideia cósmica que temos do mundo que nos leva à insatisfação estética com cada uma das suas parcelas. Tudo está em mim, idealizado e com um apuramento perfeito. Mas esse paradigma que exerço sobre tudo o que me chega aos sentidos, só se forma quando sinto e faz parte não inteiramente de mim, mas da coisa que é sentida por mim.
Sou, portanto, não inteiramente juiz da beleza e da fealdade dos outros ou das coisas. O mundo não é perfeito por eu aplicar o meu modelo de perfeição. A perfeição ou a imperfeição daquilo que observo é intrínseca à minha observação e não à minha qualidade e papel de observador.
Na sua aventura no eléctrico, Ortega exercita muito bem este seu conceito. Há traços no mundo, como na sua “Guapa”, que se desenham por si numa projecção de beleza no que se realiza como feio.
Neste exercício, o que está em causa é talvez a nossa petulância de juízes ou de detentores de modelos que se dilaceram ou erigem ideias e concretizações do belo, justo e perfeito.
Afinal de contas, o desconhecido não é inteiramente desconhecido e a descoberta dos filósofos e dos estetas gregos, vista a esta luz, é um grande feito, não das coisas belas que os artistas expressaram, mas uma expressão definitiva do que por si só era já beleza, ainda que diáfana, ainda que soprada pela força imensa da genialidade.
E, como a cor nos impressionistas é definitiva mais que o desenho, delimitando as formas e as composições, também o belo é uma emanação das próprias coisas, que valem pelo que evocam e traduzem. A promessa de beleza não está em mim, mas vem — invisível — de quem, ou das coisas, que eu pretendo belas.
Assim, nada é mais previsível do que ser o artista não aquele que cria, mas o próprio objecto criado.

A Estética actual procura no quotidiano e no discurso das Artes, a determinação dos seus conceitos filosóficos, assumindo intencionalmente o problema da sua inserção no mundo e da sua universalidade.
No mundo moderno é precisamente essa pretensão de universalidade que nos faz surgir o intemporal do belo como princípio estético quer objectivo, quer subjectivo.
De facto, a morte da beleza nos tempos modernos, não é mais que o resultado da crise histórica de um princípio estético uniforme.
Essa crise inscreve-se na fragmentação cultural do nosso mundo, directamente relacionada com o carácter culturalmente diverso dos modos de vida humanos.
A confrontação com outras situações históricas e com outras culturas humanas, situa em primeiro plano a pluralidade e diversidade da beleza, a existência irrefutável dessa multiplicidade de princípios estéticos não homogéneos. Não é só a diversidade de gostos, do desajuste das apreciações estéticas subjectivas, mas antes a estreiteza e diversidade das representações humanas: individuais, sociais e linguísticas da beleza. “A beleza não é uma realidade substantiva, senão um horizonte de conceitos e valores sensivelmente representado, o produto dum conjunto de relações”.
Significativamente patentes na sociedade actual, os modos de representação multiplicaram-se profusamente, fruto também das tecnologias inovadoras e da tentativa de pluralizar uma certa estética veiculada pelos meios massivos de comunicação. Pela imagem, pelo som ou pela escrita, assiste-se desde o início do século a uma difusão planetária de valores ideológicos e estéticos, até aí cativos de uma élite. A arte sai dos museus e dos palácios e entra-nos em casa, nas ruas, no quotidiano.
É assim que a fotografia se vem afirmar como arte. Em simultâneo com o desenvolvimento técnico, assiste-se a uma concepção teórica que elabora uma estética própria da fotografia e em que se apoia a generalidade dos fotógrafos que fazem já parte da sua história.
A História parece ter esperado pelos fotógrafos para se precipitar duma vez por todas no nosso século.
Desde as guerras que refizeram a geografia política e económica, até ás ciências que mudaram o pensamento e o quotidiano, tudo se desenrolou perante as objectivas. E embora quase tudo viesse do pensamento do século XIX (como a própria fotografia) toda a acção se transpôs e realizou a partir de 1900.
Nomes como Mathew B.Brady, John Thomson, Lewis Hine, Eugene Smith, Robert Capa ou Sebastião Salgado, ficarão ligados para sempre aos acontecimentos mais marcantes do nosso século. Eles foram os primeiros a resgatar do efémero a verdade dum acontecimento e, por outro lado, deram à fotografia a sua dimensão social lançando as bases do que viria a chamar-se fotojornalismo.
O exercício do fotorepórter é uma dialéctica entre o objectivo e o subjectivo, um encontro da verdade com a interpretação do fotógrafo. Nessa dialéctica residem em simultâneo a crónica do tempo, a obra de arte e a filosofia.
Tal como os pintores da Idade Média, o fotorepórter tem como missão pregar o mal e exorcizá-lo. Seja a guerra ou a moral, a justiça ou o despotismo, o que os torna diferentes é o quanto de mentira se pode colocar numa pintura e o quanto de verdade se pode retirar, apesar de tudo, a uma fotografia.
Este jogo entre a verdade e a mentira está na origem da profusão iconográfica do nosso tempo. Os mitos contemporâneos hão-de assentar sempre num obscuro poder de auto-multiplicação da sua própria imagem que os mass media se encarregarão de difundir. Longe dos modelos clássicos, o veículo desta nova mitologia tanto pode ser uma lata de feijão, como a loura mais vulgar. No entanto, é definitivo que todos nos inclinaremos na direcção daquilo que assim for deificado. Andy Warhol demonstrou-o até à saciedade.
Eis então o homem no controlo total da realidade, moldando-a ou construindo-a segundo a sua própria medida.
A mentira das imagens tem no nosso tempo a força do desejo; as imagens são as “asas do desejo”. Elas asseguram-nos a passagem para as cidades mais cobiçadas, as mesas mais fartas, os corpos mais invejados.
No fundo, talvez ainda acreditemos que entre a cópia das coisas e as próprias coisas haja uma relação mágica e que a posse de uma influencia a outra.



gil t. sousa

01 novembro 2004

The Sad Punk

Estava muito frio. Juntámo-nos no Pinguim para mais um recital. Levávamos livros e maços de papel com textos em txt com os nossos poemas preferidos. Lembro-me de ficar comovido por ver que a maioria eram miúdos muito jovens cheios de vida e de irreverência, empunhando poetas como quem empunha armas. Lembro-me de sentir um orgulho enorme no meu país e de sentir que nada pode estar perdido, enquanto houver pessoas assim a carregar os seus sonhos pelas cidades e pelo mundo.

Foi num desses eventos que me disseram: aquele é o The_Sad_Punk. Nunca cheguei a falar com ele, mas habituei-me a ver o seu nick no canto da tela do computador. Era um nick bonito, mas nunca me passou pela cabeça que aquele “Sad” fosse tão real.

Pois é Alexandre, hoje só me apeteceu ler Mário-Henrique Leiria, pois sem conhecer nada de ti, sei que o apreciavas muito e se eras capaz de o apreciar tanto só podias ser um tipo com uma alma maior do que tu próprio, só podias ser um poeta, pá.

Por isso, espero que agora te “deixem sentar numa nuvem, a mais alta e que dês pontapés na lua” todos os que te apetecer, como se fosse enfim a tua vida.

31 outubro 2004

book zapping #003 henry miller


O Tempo dos Assassinos
Um estudo sobre Rimbaud



“Diz-se que Rimbaud, no tempo em que escrevia o seu “livro negro” (Une Saison en Enfer), terá afirmado: “O meu destino depende deste livro!” Nem o próprio Rimbaud sabia como era profundamente verdadeira essa afirmação. À medida que começamos a compreender o nosso próprio destino trágico, começamos também a perceber o que ele queria dizer. Tinha identificado o seu destino com o da época mais crucial de que o homem tinha conhecimento. Das duas uma, ou, como Rimbaud, renunciamos a tudo aquilo que a nossa civilização tem representado até aos nossos dias, e procuramos construir desde o princípio, ou destruímo-la com as nossas próprias mãos. Quando o poeta está no nadir, então não há dúvida de que o mundo está de pernas para o ar. Se o poeta já não pode falar em nome da sociedade, mas apenas em seu próprio nome, então é porque estamos encurralados na última trincheira. Sobre o cadáver poético de Rimbaud, começámos a levantar uma torre de Babel. Nada significa o facto de ainda haver poetas e de alguns deles ainda serem inteligíveis, capazes de comunicar com a multidão. Qual é o rumo da poesia e onde reside o elo entre o poeta e a sua audiência? Qual é a mensagem? Esta é a pergunta mais importante. Qual é a voz que hoje em dia se faz ouvir, a do poeta ou a do cientista? Andamos a pensar na Beleza, por amarga que seja, ou anda mos a pensar na energia atómica? E qual é a principal emoção que as nossas grandes descobertas inspiram? Pavor! Temos saber e não temos sabedoria, temos conforto e não temos segurança, acreditamos mas não temos fé. A poesia da vida expressa-se apenas em termos matemáticos, físicos, químicos. O poeta é um pária, uma anomalia. Caminha para a extinção. Quem é que hoje se preocupa com o facto de o poeta se tornar a si próprio monstruoso? O monstro anda à solta. Passeia-se pelo mundo. Fugiu do laboratório e está ao serviço de seja quem for que tenha coragem suficiente para lhe dar emprego. Na verdade, o mundo tornou-se número. A dicotomia moral, como todas as dicotomias, sofreu um colapso. Atravessamos uma era em que uma grande maré tudo arrasta ao acaso. Começou a grande deriva.
E os loucos falam de reparações, inquisições, retribuições, de alinhamentos e coligações, de comércio livre e de estabilidade e revitalização económicas. Nenhum deles acredita, no fundo, que a situação mundial possa ser regulada. Todos aguardam o grande acontecimento, o único acontecimento que nos preocupa dia e noite: a próxima guerra. Pusemos tudo em total desordem e ninguém sabe nem como nem onde procurar os meios de a controlar. Os travões ainda estão no sítio, mas será que funcionam? Sabemos que não. O demónio anda à solta. A era da electricidade já lá vai há tanto tempo como a Idade da Pedra. Esta é a Idade do Poder, do poder puro e simples. Agora a escolha é entre céu e inferno; já não é possível meio termo. E tudo indica que vamos escolher o inferno. Se o poeta vive o seu inferno, já não é possível ao homem comum escapar dele. Terei eu dito que Rimbaud era um renegado? Todos somos renegados. Desde o alvorecer dos tempos que andamos a renegar. Finalmente, o destino consegue andar a par connosco. Todos, homens, mulheres e crianças, identificados com esta civilização, vamos entrar na nossa Estação no Inferno. É isso que temos andado a pedir; cá está. Aden ainda nos há-de parecer um local confortável. No tempo de Rimbaud ainda era possível deixar Aden e partir para Harare, mas daqui por cinquenta anos o mundo há-de parecer uma vasta cratera. Apesar do que em contrário possam dizer os cientistas, o poder que o homem tem hoje nas mãos é radioactivo, é permanentemente destrutivo. E nunca pensámos no poder em. termos de bem; apenas em termos de mal. Nada existe de misterioso no que toca à energia do átomo; o mistério reside no coração dos homens. A descoberta da energia atómica ocorre em sincronia com a descoberta de que nunca mais podemos confiar uns nos outros. Aqui, neste medo capaz de se multiplicar como as cabeças da Hidra, medo que nenhuma bomba consegue destruir, aqui é que reside a nossa fatalidade. O verdadeiro renegado é o homem que perdeu a fé no seu semelhante. E a perda da fé, hoje, é universal. Aqui, neste ponto, o próprio Deus é impotente. A nossa fé transpôs-se para a bomba e será a bomba a responder às nossas orações.”



O Tempo dos Assassinos
Henry Miller
Hiena Editora, 1983
Colecção Cão Vagabundo 8

28 outubro 2004

quatro estações #crónicas de outono

dias de espera


faz de conta que o tempo voou. estrangulou o dia, rasgando caminhos confusos da cidade invisível. depois enrosca-te na penumbra, afasta as sombras gravadas misteriosamente e entre insónias de horas perdidas, esquece-me pouco a pouco. desfaz as memórias e vai secando as ideias, encharcadas do perfume acumulado na raiva das minhas veias.

debruça o olhar no presente, abre a janela e engole as luzes das noites. saboreia cada sussurro oculto, nas horas que ouves na grande solidão. adormece na inquietude das paredes brancas, cheias de falsos sonhos, enquanto fugirei de mim silenciosamente. desce de novo os teus olhos, ao fascínio ardente da água teimosa, do mar que nos fez sentir vivos, numa prolongada espera.

é então tempo de caminhar, voar no esquecimento das emoções, partir sem som.


l.maltez

23 outubro 2004

polaróide mínima #002



Tiziano Fratus


Tiziano Fratus (Bergamo, 1975) dirige «ManifatturAE», é poeta, artista, critico. Em 2001 participou com os seus quadros-poesia em Versus VII (Velan, Torino). Em 2002 leva à cena o monólogo-performance l’autunno per eleni, de que dirige o vídeo homónimo. Participou em vários festivais de teatro e poesia. Em 2003, publica lumina (Editoria & Spettacolo, Roma). O poema la barba da vecchio che segue tracciati sfumature d'asfalto usurato (Dubsters, Torino) participa no projecto Fioriture organizado por Isabella Bordoni para a Giornata Mondiale della Poesia, difundida pela KunstRadio de Vienna. Compôs o longo poema l’inquisizione (2000-2004), que está para ser publicado pela Editoria & Spettacolo. Dirigiu o videopoema anatómico nell’uomo (Dubsters, Torino, 2004), que terá estreia no X Festival Internazionale di Poesia di Genova. É critico no semanário «Il Domenicale» e no «Dramma.it», consultor do festival de dramaturgia Quartieri dell’Arte (Viterbo), Tramedautore (Milano), Incontrosensi (Pescara). Ensina história da dramaturgia do século XX em Moncalieri. Publicou os seguintes ensaios, conversas e volumes sobre o teatro contemporâneo: Lo spazio aperto. Il teatro ad uso delle giovani generazioni (Editoria & Spettacolo, 2003); L’architettura dei fari: 1990-2003, la nuova drammaturgia italiana (Edizioni Atelier, 2003). Trabalha na antologia Un albero in scena. L’arte dei versi nella drammaturgia contemporânea italiana.


A inquisição é um poema composto por 33 quadros. Na Turim dos nossos dias, simultaneamente reconhecível e transfigurada, um homem duplica–se algures na periferia norte da cidade: pensamentos, recordações, personagens selvagens, como selvagem é a mancha negra que, partindo do cérebro e do fundo da alma, se expande, infiltrando-se nas paredes, perturbando o silêncio, lacerando os tecidos e ocultando a lenta combustão dos corpos.



PICTA / n o i n t e r i o r d e h o m e m
poema de tiziano fratus
tradução de letizia russo e pedro marques


{ de poema a inquisição, Artistas Unidos / Editoria & Spettacolo, Lisboa / Roma, 2004 }

olho para o rosto do meu pai
um pai como todos os pais que recorda e traz gravados os sinais da vida
os seus erros e culpas e diferenças revivem em mim reflorescem para serem às vezes repetidos
queria abraçá-lo apertar-lhe os ossos e as fibras musculares
escancarar a boca ranger a segunda fileira de dentes e depois devorá-lo
engoli-lo digeri-lo no escuro do estômago durante muito tempo e deixá-lo decantar nas entranhas
para o queimar depois fragmentado em todos os seus pormenores a posição dos pés e a maneira de segurar no cigarro
e o sulco que os anos cinzelam nas bochechas de norte a sul
mas agora fui raptado pelos amores e pelos leitos da paixão por um outro tipo de carne
as estações andam de mão em mão e acumulam-se atrás do olhar que se faz mais prudente
a tua mão é uma recordação embora o aperto dela na minha ainda arda
uma epígrafe jaz na nossa sepultura o mármore frio
epitáfio de um amor que morre mais uma vez
tentámos mudar o mundo mas o mundo mudou-nos a nós
é mais fácil levar a cabo um holocausto nos nossos dias
agarrados aos sobretudos elegantes e sepultados debaixo de corredores de livros e mapas do mundo
as fotografias dos campos de concentração espalhadas pela velha europa amareleceram demasiado depressa
oxidaram e precipitaram-se no fundo dos rios
nem os pescadores nem os remadores que treinam os corpos no tibre no pó ou no arno
nem eles podem distingui-las debaixo dos sedimentos de lodo e dos resíduos industriais
um espectro com a varinha de hipócrates canta uma cantilena
não adormeçamos uma nova confusão em cima de sedimentos de uma outra confusão
este correr atrás este cansar-se para contribuir pessoalmente para a evolução do pensamento
já há demasiada vida incompleta a rebocar as paredes das salas de aula e as igrejas
somos homens pequenos que tentam fazer a história com um balde de areia
mas não suportamos a areia nas sandálias a máquina de lavar que encrava a massa empapada
a humanidade está avariada estragou-se logo depois da criação
indivíduos de sexo incerto andam às voltas com máscaras no rosto
únicos concorrentes para o mesmo farrapo de poder
apinham as rampas do metro e fazem mais compridas as filas nas escadas de vidro transparente (agora embaciado)
nos apartamentos cada vez mais lúcidos cada vez mais vagos habitam animais silenciosos
mas a recordação foge como fumo esvanece por cima das cabeças é vapor
a celebração da memória camufla as verdades históricas
será verdade que aqueles soldados os primeiros a saltar por cima dos portões de auschwitz não podiam olhar para os corpos filiformes os cadáveres empilhados que não paravam de nascer para além dos limites do olhar para além do vocabulário para além dos gestos das mãos
envolvia-os um sobretudo de frio que não obedecia às leis da física e da química
lá ao fundo uma fábrica desagregava um povo inteiro
era a morte que apertava a mão da europa que tinha apostado nos fascismos
meio século mais tarde gostava de te ver de piquete numa marcha nazi
mas no fundo é melhor deixarmos de nos chatear por qualquer coisa
o homem perecerá de certeza no momento de máximo fulgor
enquanto os poetas e os artistas sem bengala se queixam como sempre despenteados e maltrapilhos à frente de um copo de gin vazio
os jovens (já poucos) reproduzem no papel as ilações mas sem confiar nos pais e nos primos
com dor e compreensão por todos os mortos sem funeral e todos os corpos desfigurados privados do nome
os macacos e os papagaios monocromáticos peneirados por trás das grades do jardim zoológico de periferia
delira o pó levantado pelos touros durante um dia de corrida
enquanto as mãos juntas de uma mãe seguram debilmente as contas do rosário
ao alto seguras no queixo escultural e na altivez do perfil
as objectivas dilaceram o ar numa chuva de pontos de exclamação
e finalmente a lâmina que se espeta para cortar a artéria jugular e separar a cabeça do resto do corpo (já cadáver)
terá de fazer gotejar ainda o último derramamento de sangue enquanto o coração ainda pulsa
o jogo o medo a raiva o instinto a sobrevivência
tensos os músculos e os tendões nos membros ao longo da espinha dorsal
as flores e os beijos cercam o campo de batalha enchem as margens
transbordam e enfiam-se no corpete do toreador até iniciar o seu colapso
nenhuma clínica funciona para o comparsa sacrificado
ainda há guerra e as causas justas de novo excitam a imprensa
grandes discursos escritos nas mesas dos parlamentos
ser obstinadamente inconsoláveis é doença que encurta a vida
o luto é um bordado fino tecido na penumbra






Um poema da vertigem e dos limites físicos e mentais.
«La Repubblica»




por Nuno Travanca

quatro estações #crónicas de outono



passados


não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.

havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.

eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.


gil t. sousa