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18 outubro 2014

stéphane mallarmé / sinfonia literária (*)




No inverno, quando sinto um torpor envolver-me, mergulho cheio de prazer nessas tão queridas páginas das FJeurs du mal. Mal abro o meu Baudelaire sou lançado numa paisagem surpreendente que revive aos nossos olhos com a intensidade das que têm a sua origem no ópio ou na sua profundeza. No horizonte, ao alto, estende-se um céu lívido de aborrecimento, com rasgões azuis neles feitos por uma Oração proscrita. No caminho, única espécie de vegetação, penam algumas raras árvores em cuja casca, dorida, se entrelaçam nervos despidos: o seu crescimento visível, apesar da estranha imobilidade do ar, é interminavelmente seguido por um choro tão dilacerante como o de violinos e que, atingida a extremidade dos ramos, sob a forma de folhas musicais estremecesse. Assim que penetro nesse domínio, descubro langorosos lagos dispersos corno canteiros de um eterno jardim: no granito negro das suas cercaduras, em que se encastram pedras preciosas da India, repousa uma água morta e metálica, com fontes de cobre maciças, onde um raio bizarro se vem tristemente reflectir, com a graça das coisas fenecidas. Nenhumas flores, em volta, por terra — mas apenas, de longe em longe, penas de asas de algumas almas decaídas. O céu, que um segundo raio, logo seguido de outros, finalmente ilumina, perde rapidamente a sua lividez e desprende o azul claro desses dias de Outubro, magníficos, enquanto a água, o granito de ébano e as pedras preciosas depressa flamejam como só o fazem, ao entardecer, os pavimentos da cidade: é o Sol que se põe! E, oh prodígio!, uma vermelhidão singular, em torno da qual alastra o odor enervante de cabeleiras que se soltam, cai em cascata do céu obscuro! Tratar-se-á de um dilúvio de rosas corruptas de que o pecado constituísse o único perfume? —Sangue?, ou uma pintura?— Estranho pôr do Sol! Ou iimitar-se-á esta inundação unicamente a ser o rio das lágrimas avermelhadas pelo fogo de artifício de um Satã saltimbanco que, escondido, mexe os cordelinhos? Ouçam como cai com um ruído de beijos, lascivo... Por fim trevas de tinta invadem tudo e ouve-se apenas, com o remorso e a Morte, esvoaçar o crime. Então cubro o rosto e um choro arrancado menos da minha alma por tal pesadelo do que por uma amarga sensação de exílio, atravessa o negro silêncio. Pátria—O que é para nós afinal o país mais íntimo?

Fecho o livro, os olhos, e procuro-a. Diante de mim ergue-se a aparição do sábio poeta que m’a aponta por meio de um hino misticamente ascendente, como se fosse um lírio. O ritmo desse canto assemelha-se à rosácea de uma velha igreja: no meio da ornamentação de cantaria antiga, com um seráfico sorriso ultramarino que parece mais  ser a oração que dos seus olhos azuis se desprende do que o nosso costumado azul, anjos, fazendo-se acompanhar de harpas, imitação das suas asas ou címbalos de um ouro primitivo, da brancura das óstias o seu êxtase entoam — puros raios agora modelados como trombetas e tamborins onde ainda ressoa a virgindade dos trovões imaturos. — As santas trazem palmas, e embora eu não levante o olhar mais alto do que as virtudes teologais — de tal forma a santidade do lugar é inefável —, ouço ribombar infindavelmente o agradecimento: Aleluia!



(*) Este texto de Mallarmé, quo aqui apenas reproduzimos parcialmente, foi publicado pela primeira vez sob a forma de artigo» no número de 1/2/1865 do jornal L’artiste. Neste texto Mallarmé, além de Charles Baudelaire, refere-se também a Théophile Gautier e a Thóodore Bainville. Posteriormente Mallarmé corrigiu a redacção inicial do «artigo», tendo anotado à margem uma nova sugestão de título: «No meu divã, com três livros — invocação, seguida de solilóquio». (N. do T.)




stéphane mallarmé
baudelaire
escritos íntimos
tradução de fernando guerreiro
editorial estampa
1994




11 agosto 2012

stéphane mallarmé / brisa marinha




Triste carne, ai de mim! Já li os livros todos.
Fugir! Longe fugir! As aves sinto a modos
De ser ébrias de espuma entre o mistério e os céus!
Nada, nem os jardins espelhados nos meus
Olhos, o coração retém quase afogado,
Ó noites! nem da lâmpada a ausente claridade
No branco do papel que o vazio rejeita
E nem a jovem mãe que ao peito o filho aleita.
Hei-de partir! Veleiro a mastrear, tu, larga
As amarras, demanda outra exótica plaga!
Um Tédio, desolado por esperanças cruéis,
Crê ainda nos lenços molhados dos adeus!
E talvez que esses mastros atraindo os presságios
Sejam dos que o tufão verga sobre os naufrágios
Perdidos, já sem mastros, em estéreis ilhéus...
Mas os marujos cantam, ouve, coração meu!




stéphane mallarmé
(1842-1898)
poemas de mallarmé, lidos por fernando pessoa
tradução de josé augusto seabra
poemário
assírio & alvim
2000