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25 dezembro 2022

s. kierkegaard / como me senti estranhamente melancólico

 



 
Como me senti estranhamente melancólico ao ver um pobre homem arrastar-se pelas ruas num sobretudo muito gasto, verde-claro, para o amarelado! Deu-me pena dele. Mas o que mais me comoveu, no entanto, foi que essa mesma cor do sobretudo tão vivamente me recordou as minhas primeiras criações de criança na nobre arte da pintura. Esta era precisamente uma das minhas cores preferidas. Não é mesmo triste que estas misturas de cores, em que ainda penso com tanta alegria, não se encontrem em parte nenhuma na vida? Toda a gente as acha berrantes, garridas, a empregar apenas nas figuras de Nuremberga. Se alguma vez, nos deparamos com elas, o encontro será sempre tão infeliz como este agora. Tem sempre de ser um fraco de espírito ou um desgraçado, em resumo, sempre alguém que se sente um estranho na vida e que o mundo não quer reconhecer. E eu que sempre pintei as vestes dos meus heróis com pinceladas deste verde amarelado eternamente inesquecível! Não acontece o mesmo com todas as misturas de cores da infância? O brilho que a vida então tinha torna-se pouco a pouco demasiado forte, demasiado berrante para o nosso olhar esvaído.
 
 
s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011 





17 julho 2020

s. kierkegaard / a verdadeira fruição



A verdadeira fruição não está naquilo de que se frui, mas na representação. Se tivesse ao meu serviço um espírito submisso que, quando eu pedisse um copo de água, me trouxesse os vinhos mais preciosos do mundo inteiro agradavelmente misturados numa taça, então dispensá-lo-ia, até que ele aprendesse que a fruição não está naquilo de que fruo, mas em fazer a minha vontade.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011












02 dezembro 2019

s. kierkegaard / que irá acontecer?



Que irá acontecer? Que trará o futuro? Não sei, não pressinto nada. Quando uma aranha, de um ponto firme, se precipita nas suas consequências, ela vê continuamente um espaço vazio à sua frente em que, por mais que se debata, não consegue encontrar ponto de apoio. Assim sucede comigo – à minha frente sempre um espaço vazio; o que me impele para diante é uma consequência que se encontra atrás de mim. Esta vida está virada ao contrário e é horrível, não se aguenta.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011









13 janeiro 2019

s. kierkegaard / o sol brilha




O sol brilha, entrando tão bela e vivamente no meu quarto. A janela do lado está aberta; na rua, tudo está quieto. É domingo à tarde. Ouço claramente uma cotovia, lá fora, diante da janela num dos pátios vizinhos, lançando os seus trinados – lá fora, diante da janela onde vive a rapariga bonita. Ao longe, de uma rua distante, ouço um homem a apregoar camarão. O ar está tão quente e, todavia, toda a cidade está como morta. Então, lembro-me da minha juventude e do meu primeiro amor – nesse tempo, eu suspirava por; agora, só suspiro pelo meu primeiro suspiro por. Que é a juventude? Um sonho. Que é o amor? O conteúdo do sonho.



s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011









07 abril 2017

s. kierkegaard / clamar e gritar



É, de facto, precisa uma grande ingenuidade para acreditar que, no mundo, servirá de alguma coisa clamar e gritar – como se, com isso, o destino de uma pessoa mudasse. Aceite-se o destino tal como é oferecido e evitem-se todas as prolixidades. Quando eu, na minha juventude, ia a um restaurante, também dizia ao empregado: um bom naco, um muito bom naco, do lombo, não demasiado gordo. Se calhar o empregado mal ouvia o meu apelo, menos ainda lhe prestava atenção, menos ainda a minha voz conseguia chegar até à cozinha, mover quem trinchava – e, mesmo que tudo isto acontecesse, talvez não houvesse nenhum bom naco em todo o assado. Agora já não clamo mais.


s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011 




26 janeiro 2017

s. kierkegaard / que é um poeta?



Que é um poeta? Um homem infeliz que esconde profundas agonias no seu coração, mas cujos lábios estão conformados de tal modo que, quando o suspiro e o grito por eles fluem, soam como uma bela música. Passa-se com ele como com os infelizes que eram demoradamente torturados com fogo brando no touro de Fálaris: os seus gritos não podiam chegar aos ouvidos do tirano para o aterrorizar – a ele soavam-lhe como uma doce música. E os homens aglomeram-se em torno do poeta e dizem-lhe: «depressa, canta outra vez», [o que] quer dizer, «que novos sofrimentos martirizem a tua alma e que os lábios continuem a estar conformados como antes, pois o grito apenas nos angustiaria, mas a música é encantadora». E vêm os autores de recensões, que dizem: «está correcto, assim deve ser, de acordo com as regras da estética». Ora, isso percebe-se: também um autor de recensões se parece com um poeta como duas gotas de água, só não tem agonias no coração, nem música nos lábios. Eis por que prefiro ser guardador de porcos em Amagerbro e ser entendido pelos porcos a ser poeta e mal entendido pelos homens.




s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011




30 outubro 2015

s. kierkegaard / a minha mágoa é o meu castelo senhorial



A minha mágoa é o meu castelo senhorial, que, tal como um ninho de águia, fica bem lá no alto, no cume das montanhas, entre as nuvens. Ninguém pode tomá-lo de assalto. De lá voo, descendo sobre a realidade e apanho a minha presa. Mas não fico lá em baixo – trago a minha presa para casa e essa presa é uma imagem que eu teço nas tapeçarias do meu castelo. Então, vivo como um morto. Tudo aquilo que é vivido mergulho-o no baptismo do esquecimento, para a eternidade da recordação. Todo o finito e casual é esquecido e apagado. Então, fico pensativamente sentado, como um velho homem grisalho, e explico as imagens em voz suave, quase sussurrante, e ao meu lado está sentada uma criança e escuta-me, apesar de se lembrar de tudo antes de eu lho contar.



s. kierkegaard
diapsalmata
assírio & alvim
2011




25 dezembro 2011

s. kierkegaard / que os outros lamentem…


Que os outros lamentem que os tempos sejam maus; eu lamento que sejam miseráveis ─ pois são desprovidos de paixão. Os pensamentos dos homens são ténues e frágeis como rendas, eles próprios são dignos de pena, como rendeiras. Os pensamentos do seu coração são mesquinhos demais para serem pecaminosos. Talvez para um verme pudesse ser considerado pecado alimentar tais pensamentos ─ não para um homem, que foi feito à imagem de Deus. Os seus prazeres são comedidos e moles; as suas paixões, sonolentas. Cumprem os seus deveres, essas almas de merceeiros; permitem-se, porém como os Judeus, cortar um pequeno pedaço na moeda; pensam que, por mais que Nosso Senhor tenha a contabilidade bem organizada, uma pessoa consegue bem escapar, aldrabando-o um pouco. Deviam ter vergonha! Por isso, a minha alma volta-se sempre outra vez para o Antigo Testamento e para Shakespeare. Aí, sente-se mesmo que são homens que falam: aí, odeia-se; aí, ama-se, mata-se o inimigo, amaldiçoa-se a sua descendência por todas as gerações; aí, peca-se.




s. kierkegaard
diapsalmata
assírio & alvim
2011