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11 setembro 2023

rui caeiro / aos poetas…

 
 
 
Aos poetas não invejar coisíssima nenhuma: a poesia que fazem, a inspiração que podem ou o mau vinho que bebem. Nem as vidas que tiveram, por muito adjectivadas ou desconhecidas que fossem. Nada. pois tudo é para esquecer: os versos, a inspiração, os álcoois e, já agora, as vidas também. E a somar a isso as dores que sentiram, depreende-se que muitas e também os alívios, desde os mais nobres até aos mais soezes, ou vice-vers.
 
 
 
rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




06 fevereiro 2023

rui caeiro / fica e é só o que fica

 
 
Fica e é só o que fica: o primeiro encontro
o primeiro beijo numa gare deserta
o mar por líquida ou aérea testemunha
 
depois a longa gestação do adeus
único e verdadeiro adeus
o subtil envenenamento da memória
 
 
 
rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




20 outubro 2022

rui caeiro / o toureiro de deus

 




Os que procuram Deus nos pátios da miséria,
onde ele não está
 
os que procuram Deus nos jardins da abastança,
onde ele também não
 
os que procuram Deus na memória longínqua,
onde ele nunca por nunca
 
e os que o procuram nos curros onde, cegos,
os touros investem a esmo
 
porque é aí, porque é aí e não em outro lugar,
porque é precisamente aí
 
 
 
rui caeiro
o toureiro de deus
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





 


13 janeiro 2022

rui caeiro / o que era mel

 
 
O que era mel
lambiam
 
o que não era
desdenhavam
 
e quase nunca
se enganavam
 
 
 
rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




13 outubro 2021

rui caeiro / do amor

 
 
Do amor não conhecemos os espaços
largos, manhãs, luares, jardins
 
Espeluncas de aluguer (serve assim?)
e lá dentro o esplendor dos corpos nus
 
– Está aqui a chave, é ao fundo
do corredor, à esquerda
 
(E lá dentro o esplendor dos
corpos nus)
 
 
 
rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





27 fevereiro 2021

rui caeiro / na minha terra

 
 
Na minha terra, no capítulo das figuras típicas, havia muitos velhos, alguns deles muito velhos mesmo. A maior parte sentados, imóveis, pelos cafés, pelas tascas, pelos bancos de pedra da praça. Concentrados na sua solidão, no seu silêncio teimoso, com a pirisca já consumida a pender dos lábios…
 
Ainda me lembro de um ou outro desses magníficos velhos, por os considerar autênticos filósofos. Partidários talvez de uma filosofia concisa, meio empírica e meio pragmática, ou tão-só de uma filosofia calada, de um género não consagrado ainda.
 
 
 
rui caeiro
pranto por vila viçosa
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




05 agosto 2020

rui caeiro / também os gritos são feitos



Também os gritos são feitos
de palavras, isto é

de uma grande ausência
de palavras, isto é

de silêncio carregado
de veneno



rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019

05 maio 2020

rui caeiro / sabem que mais?



Sou um homem dado ao álcool e a eternas dúvidas
e que na rua ou lá onde seja a todo o momento pode tropeçar
ou morrer: voar é que é muito mais improvável

Sou um homem de áridas certezas e uma esperança
a essa arrasto-a, pela mão pelos cabelos pelas orelhas
paro escuto e olho antes de atravessar

com ela. E não lhe sei o nome. E não me preocupo



rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019








11 março 2020

rui caeiro / alheios à catástrofe geral



Alheios à catástrofe geral
e ao frio que faz
despimo-nos
colocamos na banca de cabeceira
o relógio a pulseira os brincos
e o mal de viver

Enquanto lá fora pela cidade
os outros (à   sua   maneira   também
alheios)
almoçam riem conversam
nós percorremos devagar as áleas
de um jardim


rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019






19 novembro 2019

rui caeiro / vestes-te como quem tapa um segredo



Vestes-te como quem tapa um segredo
e desces a escada, para a despedida
não há palavras, ou não sobraram
Contigo, escada abaixo, vão adeuses
por dizer, ternura envergonhada, mudos
agradecimentos e ainda alguns restos
de humores trocados no entre-pernas
O que tu digas ou eu diga pouco importa
Que os corpos se lembrem – isso é tudo
Que tenham esquecido ou venham
a esquecer – tudo é também


rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019






10 setembro 2019

rui caeiro / escolher uma razão de ser triste



Escolher uma razão de ser triste
– ele há tantas – e depois sê-lo

Sem hesitação, apaixonadamente

Dar á luz um poema imerecido
e logo de seguida abandoná-lo

Sem hesitação, galhardamente




rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019







21 agosto 2019

rui caeiro / retrato



Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o Verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem


rui caeiro
livro de afectos
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019






12 junho 2013

rui caeiro / a dois passos



Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais
soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o vento
e levava, quando penso em ti e mais em tudo
o que deixaste avariado na minha vida e eram
todos os pobres artefactos dela, da minha vida
quando penso em ti, isto é, quando penso em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós
éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu
penso — esse tempo esse calor esse frio essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas devo
reconhecer, em abono da verdade, que não era
no inferno que nós estávamos, era a dois passos
dele e se queres mesmo saber era agradável
pela boa e simples razão de que não havia mais
nada, era intensa e insuportavelmente agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que
se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno — estava-se bem.



rui caeiro
do inferno – cinco aproximações
telhados de vidro nr. 12
maio 2009
averno