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16 março 2024

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas

 
 
[…]
 
Pronto.
Pronto, estas são as obras que quero fazer,
que são a minha vida futura – mas também passada
– e presente.
Sabes, todavia já to disse, amigo antigo, pai
um pouco intimidado pelo filho potente,
hóspede heteroglota de origens humildes,
que nada vale a vida.
Por isso gostaria apenas de viver
mesmo sendo poeta
porque a vida também se exprime só por ela mesma.
Gostaria de exprimir-me pelos exemplos.
Lançar o corpo para a luta.
Mas se as acções da vida são expressivas,
também a expressão é acção.
Não esta minha expressão de poeta que renuncia,
que só diz coisas,
e usa a língua como tu, pobre, directo instrumento;
mas a expressão separada das coisas,
os sinais feitos música,
a poesia cantada e obscura,
que não exprime nada a não ser ela mesma,
por uma bárbara e delicada ideia de que é misterioso som
nos pobres sinais orais de uma língua.
Eu abandonei aos meus contemporâneos e até aos mais jovens
essa bárbara e delicada ilusão: e falo-te brutalmente.
E, como não posso voltar atrás,
fingir que sou um rapaz bárbaro,
que acredita que a sua língua é a única língua do mundo,
e que nas sílabas dela ouve mistérios de música
que só os seus conterrâneos, a ele semelhantes por carácter
e loucura literária, são capazes de ouvir
– enquanto poeta, serei poeta das coisas.
As acções da vida serão só comunicadas,
e serão, elas, a poesia,
pois, repito, não existe outra poesia senão a acção real
(só estremeces quando a encontras
nos versos, ou nas páginas de prosa,
quando a evocação delas é perfeita).
Não o farei com gozo.
Terei sempre o remorso daquela poesia
que é ela mesma acção, na sua separação das coisas,
na sua música que não exprime nada
a não ser a própria árida e sublime paixão por si mesma.
Pois bem, confesso-te, antes de te deixar,
que eu queria ser escritor de música,
viver com os instrumentos
dentro da torre de Viterbo que não consigo comprar,
na paisagem mais bela do mundo, onde Ariosto
teria enlouquecido de gozo ao ver-se recriado com tamanha
inocência de sobreiros, colinas, águas e barrancos,
e ali compor música
a única acção expressiva
talvez, alta, e indefinível como as acções da realidade.
 
                                            
                                          1966-67
 
[…]
 
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021




07 janeiro 2024

pier paolo pasolini / o pranto da escavadora

 



 

II
 
Pobre como um gato do Coliseu
vivia num bairro feito de cal
e poeira, longe da cidade
 
e do campo, diariamente sufocado
num autocarro desconjuntado:
e cada ida, cada regresso
 
era um calvário de suor e ansiedade.
Longos passeios numa névoa quente,
longos crepúsculos diante dos papéis
 
empilhados sobre a mesa, entre ruas de lama,
muros baixos, tugúrios caiados
sem caixilhos nas janelas e cortinas a servir de portas…
 
Passava o vendedor de azeitonas, o trapeiro,
vindos de qualquer outro bairro,
com a empoeirada mercadoria que parecia
 
fruto de furto, e rostos cruéis
de jovens envelhecidos no meio dos vícios
de quem tem mãe dura e esfomeada.
 
Renovado pelo mundo novo,
livre, um ardor, um hálito
que não sei descrever dava à realidade
 
humilde e suja, confusa e imensa,
que fervilhava nessa periferia do sul,
um sentimento de serena piedade.
 
Uma alma, em mim, não apenas minha,
uma alma pequena naquele imenso mundo,
crescia, revigorada pela alegria
 
de quem amava, não sendo embora amado.
E a esse amor talvez ainda de rapaz,
tudo se iluminava, heroicamente,
 
mas amadurecido já pela experiência
que nascia aos pés da história.
Estava no centro do mundo, naquele mundo
 
de bairros tristes, beduínos,
de planícies amarelas polidas
por um vento que nunca se cansava,
 
vindo do mar quente de Fiumicino,
ou do campo, onde a cidade se perdia
no meio dos tugúrios; naquele mundo
 
sobre o qual só podia reinar,
espectro quadrado e amarelento
na amarelenta bruma,
 
trespassado por mil fiadas iguais
de janelas com grades, a Penitenciária,
entre campos antigos e adormecidos lugarejos.
 
Os papéis e o pó que a brisa
como cega arrastava aqui e ali,
as pobres vozes sem eco
 
de mulheres humildes vindas dos montes
Sabinos, do Adriático, e ali
acampadas, com catervas
 
de filhos enfezados e duros,
gritando, de camisetas esfarrapadas,
calções desbotados e queimados,
 
os sóis africanos, as chuvas violentas
que transformavam as ruas em torrentes
de lama, os autocarros nos finais de linha
 
enterrados no seu canto
entre um último rasto de erva branca
e alguma lixeira ácida e ardente…
 
era o entro do mundo, e o meu amor
por tudo isso estava
no centro da história: e nessa
 
maturidade que nascia
e era portanto ainda amor, tudo estava
prestes a tornar-se claro – tudo era
 
claro! Aquele bairro nu ao vento
já não era romano, nem meridional,
nem operário, era a vida
 
na sua luz mais actual:
vida, e luz da vida, cheia
do caos não ainda proletário,
 
como pretende o obsceno jornal
da célula, o último
panfleto que se agita: osso
 
da existência quotidiana,
pura, por estar demasiado
próxima, absoluta, por ser
 
por demais miseramente humana.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005




07 junho 2023

pier paolo pasolini / sem ti regressava

 
 
Sem ti regressava, qual bêbado,
incapaz de estar só à noite
quando as cansadas nuvens se dissipam
na escuridão incerta.
 
Estive milhares de vezes só
Desde que estou vivo, e em milhares de noites
                                                           iguais
foram-me escurecidos aos olhos a relva, os
                                                        montes,
os campos, as nuvens.
 
A sós de dia, e depois adentro o silêncio
da noite fatal. E ora, bêbado,
regresso sem ti, e ao meu lado
só há sombra.
 
E de mim longe estarás milhares de vezes,
e depois para sempre. Não sei travar
esta angústia que galopa dentro do peito;
estar só.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




28 fevereiro 2023

pier paolo pasolini / apontamento

 
 
Por que existe a poesia lírica? Porque só eu,
e mais ninguém no meu lugar, sei quais são as
                                            longas tradições
da dor que nasce da cor do ar que escurece;
a tarde e as nuvens anunciam, juntas, a noite
                                                  e o Inverno.
Que olhos se enchem desta triste luz a não ser
                                                      os meus?
 

 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




09 dezembro 2022

pier paolo pasolini / e surpreendia-me que a indiferença

 
 
E surpreendia-me que a indiferença
fosse tão parecida com a angústia.
O mesmo candor consistia no acreditar
e no não acreditar. Nunca terei eu
mudado? Se por mim não fores pensado, Tu
em mim não podes? E eu nada posso
fazer para tornar humana a minha vida?
Posso ao menos esperar que na diversidade
do Teu ser, o meu ser único
que me é inútil Te seja necessário?
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




14 setembro 2022

pier paolo pasolini / ao príncipe

 



 

Se voltar o Sol, se cair o crepúsculo,
     se a noite tiver sabor de noites futuras,
se uma tarde de chuva parece regressar
     de tempos muito amados e jamais
                                               possuídos,
eu já não fico feliz, nem disso retiro prazer ou
                                                   sofrimento
     já não sinto, diante de mim, a vida inteira…
Para se ser poeta, é preciso ter muito tempo
     horas e horas de solidão são a única
                                                        maneira
de dar forma a alguma coisa, que é força,
                                                     abandono,
     vício, liberdade, de dar estilo ao caos.
Eu tempo já tenho pouco: por culpa da morte
     que avança, no ocaso da juventude.
Mas também por culpa deste nosso mundo
                                                        humano,
     que aos pobres tira o pão, aos poetas a paz.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




25 dezembro 2021

pier paolo pasolini / a madrugada meridional

 
 
Passeava nas proximidades do hotel – era ao entardecer –
e quatro ou cinco rapazes surgiram,
na pele de tigre dos campos, sem
um penhasco, uma cova, um resto de vegetação
que fosse abrigo para eventuais disparos: que
Israel estava ali, sobre a mesma pele de tigre,
semeada de casas de cimento e muros
inúteis, como em todos os subúrbios.
Fui ter com eles, àquele lugar absurdo,
longe da estrada, do hotel,
da fronteira. Foi mais uma amizade,
daquelas que duram uma noite
e atormentam depois toda uma vida. Eles,
deserdados, e também crianças
(que, dos deserdados têm o saber
do mal – o furto, a rapina, a mentira –
e, das crianças, o idealismo ingénuo
de sentir que se consagram ao mundo),
tiveram logo a velha luz do amor
– como de gratidão – no fundo dos seus olhos.
E falando, falando, até
cair a noite (e já um me abraçava,
ora dizendo que me odiava, ora que não,
que me amava, me amava), soube, por eles, todas as coisas,
todas as coisas mais simples. Eles eram os deuses,
ou filhos de deuses, que misteriosamente disparavam,
por um ódio que os faria descer das montanhas de argila,
como noivos sedentos de sangue, sobre os Kibutz invasores
na outra metade de Jerusalém…
Maltrapilhos, que agora vão dormir
ao relento, no fundo de um baldio dos subúrbios.
Com os irmãos mais velhos, soldados
armados de uma velha espingarda e bigodes
de mercenários resignados com mortes antigas.
São estes os Jordanos, terror de Israel,
estes que à minha frente choram
a dor antiga dos foragidos. Um deles,
emissário do ódio, já quase burguês (ao moralismo
chantagista, ao nacionalismo que empalidece de raiva
neurótica) canta-me o velho refrão
que aprendeu na sua rádio, com os seus reis –
outro, no meio dos seus trapos, ouve concordando,
enquanto, como um cachorrinho, se encosta a mim
não sentindo, naquele campo de fronteira,
no deserto jordano, no mundo,
mais que um mísero sentimento de amor.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005




17 dezembro 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas

  
[…]
 
Como é que me tornei marxista?
Bem… passeava eu entre florzinhas cândidas e azulinhas
                                                                                          [da Primavera,
aquelas que nascem logo depois das prímulas,
– e pouco antes de as acácias se carregarem de flores,
odorosas como carne humana, que se decompõe ao calor
                                                                                                    [sublime
da mais bela estação –
e escrevia nas margens de pequenas lagoas
que lá, na aldeia da minha mãe, com um daqueles nomes
intraduzíveis se chamam “fundas”,
com os rapazes filhos dos camponeses,
que inocentes, se banhavam
(porque viviam impassíveis à vida que levavam,
enquanto eu achava que tinham consciência daquilo que eram)
escrevia os poemas d’ «O Rouxinol da Igreja Católica»:
passava-se isto em ’43:
em ’45 <foi completamente diferente>.
Aqueles filhos de camponeses, já um pouco mais crescidos,
um dia puseram ao pescoço um lencinho vermelho
e marcharam
em direcção ao centro do governo, com as suas portas
e os seus palacetes venezianos.
Foi assim que soube que eram trabalhadores,
e que, portanto, havia os patrões.
Pus-me ao lado dos trabalhadores e li Marx.

[…]
 
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021




29 outubro 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas

 
 
[…]
 
Vivi <…>
aquela página de romance, a única da minha vida:
quanto ao resto, <o que querem,>
tenho vivido dentro de uma lírica, como todos os atormentados.
Tinha entre os meus manuscritos também o meu primeiro
                                                                             [romance:
eram os tempos de «Ladrões de Bicicletas»
e os literatos descobriam a Itália.
(Eu agora já não sou um literato,
evito os outros, não tenho nada a ver
com os seus prémios e as suas publicações.)
Chegámos a Roma,
ajudados por um doce tio meu,
que me deu um pouco do seu sangue:
eu vivia como pode viver um condenado à morte
sempre com aquele pensamento como uma coisa atrás de mim,
– desonra, desocupação, miséria.
A minha mãe reduziu-se durante algum tempo ao trabalho
                                                                      [de servir.
E eu não me curarei jamais desta doença.
Porque sou um pequeno-burguês, e não sei sorrir…
como Mozart…
Num filme – a que chamei «Passarinhos e Passarões» –
Tentei, é verdade, a ópera buffa, ambição suprema de um escritor,
– mas só em parte o consegui,
porque sou um pequeno-burguês,
e tendo a dramatizar tudo..
 
[…]
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021






20 agosto 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas





Sou alguém
que nasceu numa cidade cheia de pórticos em 1922.
Tenho, portanto, quarenta e quatro anos, que carrego <muito>
                                                                                    [bem
(apesar de ainda ontem dois ou três soldados numa matazinha
                                                                              [de putas
me terem dado vinte e quatro – pobres rapazes
que tomaram por menino um seu coetâneo);
o meu pai morreu em ’59,
a minha mãe está viva.
Ainda choro de cada vez que penso
no meu irmão Guido,
camarada morto por outros camaradas, comunistas
(era do Partido da Ação, mas a conselho meu:
ele começara a Resistência como comunista),
nos montes malditos de uma clareira
raiana, com pequenas colinas cinza e desalentadas encostas
                                                                     [pré-alpinas.
Quanto à poesia, comecei aos sete anos:
Mas não fui precoce senão na vontade.
Fui um “poeta de sete anos” –
como Rimbaud – mas só na vida.
Agora, num lugar entre o mar e a montanha,
onde rebentam grandes temporais, de Inverno chove muito,
em fevereiro veem-se as montanhas claras como o vidro,
logo a seguir aos ramos despidos, e depois nascem as prímulas
                                                                             [nas valas
inodoras, e no Verão as hortas, pequenas, de milho,
alternadas com aqueles verdejares da alfafa,
desenham-se contra o céu esfumado
como uma paisagem misteriosamente oriental –
agora, naquele lugar,
há uma arca cheia de manuscritos de um entre tantos meninos
                                                                               [poetas.
 
 
[…]
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021

 





08 março 2021

pier paolo pasolini / o pranto da escavadora

 
 
I
 
Amar, conhecer
é o que conta, não ter amado,
ou ter conhecido. Angustia
 
viver de um amor passado.
A alma já não cresce.
Neste calor encantado
 
da noite profunda, aqui,
entre os meandros do rio e as visões
adormecidas da cidade constelada de luzes,
 
onde ecoam ainda mil vidas,
o desamor, o mistério, e a miséria
dos sentidos tornam-me hostis
 
as formas do mundo que, até ontem,
eram a minha razão de existir.
Triste, cansado, volto para casa,
 
por negros largos de mercado, tristes
ruas em redor do porto fluvial,
por entre barracas e armazéns que se misturam
 
aos últimos campos. Aqui reina um silêncio
de morte: mas, mais em baixo, na avenida Marconi,
ou na estação de Trastevere, a noite
 
parece ainda amena. Para os seus bairros,
para os seus subúrbios, regressam em motas
ligeiras – de fato-macaco ou calças
 
de trabalho, mas cheios de um ardor festivo –
os jovens, com um companheiro no selim,
rindo, sujos. Os últimos fregueses
 
conversam, de pé, em altos gritos,
aqui e ali, na noite, às mesas
das tascas ainda iluminadas e quase vazias.
 
Magnífica e mísera cidade,
que me ensinaste o que os homens,
alegres e ferozes, aprendem em crianças,
 
as pequenas coisas em que a grandeza calma
da vida se descobre, como, por exemplo,
andar, duro e lesto, entre a multidão
 
das ruas, dirigir-se a outro homem
sem tremer, não ter vergonha
de verificar o dinheiro contado
 
com dedos lentos pelo empregado
que foge, suando, rente às fachadas
numa cor eterna de Verão;
 
defender-me, atacar, ter
o mundo diante dos olhos e não
apenas o coração, compreender
 
que poucos conhecem as paixões
em que vivi:
que, não sendo meus irmãos, são, porém,
 
meus irmãos, porque sentem, justamente,
paixões de homens
que, alegres, inconscientes, inteiros,
 
vivem de experiências
que nunca vivi. Maravilhosa e mísera
cidade que me fizeste viver
 
a experiência dessa vida
ignorada: até me fazeres descobrir
o que, em cada um, era o mundo.
 
Uma lua agonizando no silêncio
que dela vive alveja em violentos
clarões, que, miseramente, na terra
 
onde a vida se cala, nas belas avenidas,
nas velhas ruelas, cegam, mas não iluminam,
enquanto, lá em cima, farrapos de nuvens
 
quentes as reflectem até ao infinito.
É a noite mais bela do Verão.
O Trastevere, no seu cheiro a palha
 
de velhos estábulos, a pensões
vazias, ainda não dorme.
Nas esquinas escuras, nas pacatas paredes
 
ecoam rumores encantados.
Homens e rapazes regressam a casa
– sob festões de luzes que são agora o sol –
 
vão para os seus becos, pejados
de escuridão e lixo, naquele passo brando
que mais fundo se cravava na minha alma
 
quando amava realmente, quando realmente
queria compreender.
E, como então, desaparecem, cantando.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005





05 março 2020

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


No aniversário de Pasolini, o magistral “As cinzas de Gramsci” da edição da Inova na colecção “O oiro do dia” em Maio de 1966, na tradução soberba de Egito Gonçalves.







As cinzas de Gramsci (mandado cremar pela cunhada, Tatian Schucht) estão recolhidas numa caixa metálica no Cemitério dos Ingleses, em Roma, perto da campa de Shelley. Assinala-as uma simples inscrição: Cinera Gramsci, seguida das datas.



I
Não pertence a Maio este ar impuro
que ainda mais escurece ou encandeia
com súbitas abertas o estrangeiro

e sombrio jardim… este céu
de espuma nos terraços amarelados
que velam, em longo anfiteatro,

as curvas do Tibre, o azul-turquesa
dos montes do Lácio… lança uma paz
mortal, sem amor, como o nosso destino,

entre as velhas muralhas, o outonal
Maio. Tem sem si o cinzento do mundo,
o final do decénio em que nos aparece

entre os escombros, terminado o fundo
e ingénuo esforço de refazer a vida;
o silêncio enxarcado e infecundo..

Tu, jovem, naquele Maio em que o erro
era ainda vida, naquele Maio italiano
que pelo menos à vida acrescentava ardor

bem menos descuidado e de saúde impura
que a dos nossos pais – não pai, irmão
humilde – já com a tua magra mão

delineavas o ideal que ilumina
(mas não para nós: tu morto, e nós
Igualmente mortos, contigo, no húmido

Jardim) este silêncio. Somente podes
– não vês? – repousar neste lugar
estranho, ainda confinado. Cerca-te

um tédio patrício. E abafado
chega apenas a ti o ruído da bigorna
das oficinas de Testaccio, adormecido

na tarde: entre armazéns pobres, montes
de lata e ferro-velho, onde, vicioso,
cantando, um rapazola já encerra
o seu dia e achuva em torno cessa.


II
Entre os dois mundos a trégua nos rejeita.
Selecção, devotamento, agora já não têm
outro som que este, do jardim mesquinho

e nobre em que a astúcia tenaz
que asfixiava a vida se mantém na morte.
Os medalhões dos sarcófagos limitam-se

a revelar a morte sobreviva
de profana gente nas laicas inscrições
destas pedras soturnas, curtas

e imponentes. Ainda de paixões
insaciáveis, sem escândalo,
os ossos dos milionários de nações

maiores; volteia, raro desaparece
a ironia dos príncipes, dos pederastas,
cujos corpos dormem ao acaso das urnas

reduzidos a cinzas e tão pouco castos.
Aqui o silêncio da morte testemunha
a quietude urbana de homens que ficaram

homens, de um tédio que no tédio
do Parque, discreto, se altera. E a cidade
que indiferente o confina, no meio

de tugúrios e igrejas, ímpias na piedade,
ali perde o seu esplendor. A terra,
rica de urtigas e legumes, faz crescer

estes magros ciprestes, esta humidade
negra que macula em torno os muros
com pálidas garatujas de buxo que a noite

suavizando apaga em tristes
odores de alga… essa erva difícil,
inodora, onde a atmosfera violeta

se aprofunda, com um arrepio de hortelã
ou feno borolento, e quieta preludia
com melancolia diurna a apagada

trepidação da noite. Áspero
de clima, de história dulcíssima, é
entre os muros o solo que segrega

um outro solo; esta humidade que
evoca outra humidade; e ressoam
– familiares de latitudes e

horizontes onde florestas inglesas coroam
no céu perdidos lagos, entre pradarias
como verdes bilhares fosforescentes ou como

esmeraldas: «And O ye Fountains,,,» - invocações
piedosas…


III
Um tecido vermelho, como aquele
que os guerrilheiros punham ao pescoço
e, perto da urna, no solo de cinza,

diversamente rubros, dois gerânios.
Estás ali, banido, de elegância severa
e não católica, registado entre mortos

estranhos: cinzas de Gramsci… Entre esperança
e antiga suspeita, aproximo-me, vindo
por mero acaso a este escasso lugar, frente

à tua campa, ao teu espírito que ficou
aqui em baixo, entre os livres (ou é algo
de diverso, talvez, de mais extasiado

e também mais humilde, ébria simbiose
de adolescência, se sexo e de morte…)
E neste espaço onde a tua tensão

não teve tréguas, sinto o teu erro
– aqui na calma dos túmulos – e também
a tua razão – no inquieto destino,

o nosso – de traçares as páginas maiores
durante os dias do teu assassinato…
Eis aqui, a confirmá-lo, semente

ainda não dispersa do antigo poder,
estes mortos, ligados a uma posse
que mergulha nos séculos sua grandeza

e abominação: e ao mesmo tempo, obsessivo,
o vibrar das bigornas, em surdina,
abafado e pungente – vindo do humilde

bairro – para testemunhar o fim.
Aqui estou eu próprio… pobre, vestido
com roupas que os pobres olham nas vitrinas

de grosseiro esplendor, já poídas
pelo lixo das estradas menos vistas,
por bancos de transportes que tornam estranhos

os meus dias: é cada vez mais raro
um repouso como este no tormentos
de sobreviver; e se me acontece

amar o mundo, é apenas com violento
e ingénuo amor sensual
tal como, confuso adolescente outrora

o odiei, se nele me feria a dor
burguesa de ser burguês: agora dividido
– contigo não aparece o mundo objecto

de rancor, de quase místico
desprezo, a parte que detém o poder?
No entanto, sem o teu rigor, subsisto

porque não escolho. Vivo na indiferença
do crepuscular pós-guerra: amando
o mundo que odeio – na sua miséria,

desdenhoso e perdido – por um obscuro
escândalo de consciência…


IV
Escândalo de me contradizer, de estar
contigo e contra ti; contigo no coração,
na luz, contra ti nas negras vísceras;

embora traindo o legado paterno
– no pensamento, numa sombra de acção –
sei-me ligado a ele pelo calor

dos instintos, da paixão estética;
fascinado por uma vida proletária
anterior a ti, é para mim religião

a sua alegria, não a sua luta
milenária; a sua natureza, não a sua
consciência; foi a força originária

do homem, que se perdeu no acto,
a dar-lhe a embriaguez da nostalgia,
uma luz poética: nada sei dizer

para além disto que não seja
justo mas não sincero, abstracto
amor, não simpatia pungente…

Pobre como os pobres, ligo-me
como eles a esperanças humilhantes,
como eles para viver batalho

dia a dia. Mas na desoladora
minha condição de deserdado,
eu possuo; a mais exaltante

das posses burguesas, o estado
mais absoluto. Mas tal como possuo
a história – ela me possui; ilumina-me:

mas para que me serve a luz?

V
Não falo do indivíduo, do fenómeno
da paixão sensual, sentimental…
Outros seus vícios, outro o nome

e a fatalidade do seu pecar…
E amassados neles quantos comuns
vícios, pré-natais, e quantos

pecados objectivos! Não são livres
os actos, seus ou externos, que o despertam
para a vida, não escapam a nenhuma

das religiões que na vida estão presentes,
hipoteca de morte, instituídas
para iludir a luz, dar relevo ao engano.

Destinados a serem sepultados
no Verano, os seus despojos, é católica
a sua luta contra eles: jesuíticas

as manias que no coração dispõe
e ainda mais fundo: há astúcias bíblicas
na sua consciência… irónica paixão

liberal… e rude luz, entre náuseas
de fidalgo provinciano, de provinciana
saúde… até aos ínfimos pormenores

onde se diluem, no fundo animal,
Autoridade e Anarquia… Bem protegido
da impura virtude, da embriaguez do pecado,

defendendo uma pureza de obcecado
e com que escrúpulo!, o eu vive: eu
assim vivo, iludindo a vida; no peito

o sentido duma existência que seria esquecimento
pungente, violento… Ah!, como compreendo,
mudo, atravessado pelo húmido arrepio

do vento, aqui, onde Roma silencia
entre ciprestes convulsos, fatigados,
junto de ti, a alma que soa na inscrição

Shelley… Como compreendo o turbilhão
dos sentimentos, o capricho (grego
no coração do patrício, nórdico

vagabundo) que o mergulhou no cego
azul-celeste do Tirreno; a carnal
alegria da aventura, estética

e pueril: enquanto a Itália prostrada
como em enorme ventre de cigarra
alonga litorais brancos

esparsos, no Lácio, com velados grupos
de pinheiros, barrocos, com amareladas
clareiras de flora silvestre onde dorme,

com o membro inchado entre farrapos,
um sonho goethiano, o jovem camponês…
Escuras, na Maremma, manchas de ervas

medicinais, onde surgem, claras,
as nogueiras, nos caminhos que o pastor
enche com a sua juventude ignorante.

Cegamente fragrantes nas enxutas
curvas da Versília, que no enredado
mar, cego, os polidos estuques,

as incrustações suaves da sua pascal
planície inteiramente cultivada,
expões entristecida no Cinquale,

enovelada ao pé dos tórridos Apuanos
o azul-vítreo no róseo… De escolhos
derruídos, agitados, como num pânico

odorífero, na Riviera, húmida,
escarpada onde o sol luta com a brisa
para dar suprema suavidade aos óleos

do mar… Em torno adeja alegremente
o espantoso instrumento de percussão
do sexo e da luz: tão familiar

na Itália que ela não treme, como que
morta na sua vida: gritam calorosos,
de centenas de portos, o nome

do companheiro os jovens orvalhos
no moreno das faces, entre a gente
ribeirinha, ao longo de campos de cardos,

em minúsculas praias sórdidas…

Pedir-me-ás então, morto despojado,
que abandone esta desesperada paixão
de estar no mundo?


VI
Vou-me, deixo-te na noite
que embora triste cai suavemente
para nós, vivos, na luminosidade cinza

que na penumbra ao bairro adere.
E o altera. Torna-o maior, vazio,
em torno, e mais longe reacende-o

com uma vida frenética, que no rodar
rouco dos transportes, nos gritos
dialectais, humanos, elabora um concerto

abafado e absoluto. Sente-se nos seres
vivos que ao longe gritam, riem,
nos seus veículos, no mesquinho

casario onde se consuma o infiel
e expansivo dom da existência –
que essa vida é somente um arrepio;

presença carnal e colectiva;
sente-se a ausência de qualquer sincera
religião; não vida mas sobrevivência

– talvez ainda mais alegre que a vida –
como um povo de animais cujo secreto
orgasmo ignora outra paixão

que a do labor quotidiano: fervor
modesto que confere um ar de festa
à simples corrupção. Qualquer ideal

– neste vazio da história, nesta ruidosa
pausa em que a vida silencia –
quanto mais inútil melhor se manifesta

a magnífica e ardente sensualidade,
quase alexandrina, que tudo pinta
e impuramente acende, quando aqui

no mundo algo desmorona e a vida
rasteja, na penumbra, reentrando
em desertas praças, oficinas sem ânimo…

Já se acendem as luzes que constelam
a Rua Zabaglia, a Rua Franklin, todo
o Testaccio, desgrcioso, entre o sujo

e grande monte, as margens do Tibre, o negro
cenário, para lá do rio, que Monteverde
projecta ou esfuma invisível contra o céu.

Diademas de luzes que se perdem, cintilantes
e frias, de tristeza quase marinha…
Pouco falta para a hora de jantar;

brilham no bairro os raros autocarros,
com cachos de operários pendurados
e soldados vão, em grupos e sem pressa,

a caminho do monte de entre aterros
húmidos e imundícies secas oculta,
na sombra, algumas pobres putas

que esperam, iradas em cima do lixo
afrodisíaco; e por ali, entre barracas
clandestinas, nas faldas do monte ou perto

de palácios como mundos, rapazinhos
leves como andrajos brincam na brisa
agora morna, primaveril; ardentes

de estouvamento juvenil, adolescentes morenos
assobiam nos passeios, na tarde romana
e crepuscular, na festa de Maio;

tombam ruidosamente as comportas
de ferro das garagens, súbitas e alegres;
a penumbra tornou serena a tarde

e na Praça Testaccio, entre os plátanos,
o vento ao cair em frémito de trovoada
é suave, apesar de ao roçar as muralhas

e a terra do matadouro ter sorvido
o sangue podre, e por onde passa
agite detritos e o cheiro da miséria.

A vida é um murmúrio e os que nela
se perdem, perdem-na serenamente,
se ela lhes encheu o coração: ei-los

que gozam a noite, miseráveis. Neles,
tão fracos, o poderoso mito
renasce… Mas eu, com a consciência

de quem só na história encontra vida,
poderei alguma vez agir por paixão pura
se sei que a nossa história terminou?