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22 janeiro 2014

nuno l. ramalho / poemas dispersos



1.
Tenho o tamanho todo
de um espaço onde não há nada.

2.
Roubamos o gato à noite e a mulher que nos traz
a aguardente,
ele quer a verdade a verdade sanguinária, ele quer
toda a gente amarrada dentro dele - o gato e a mulher, os sinais
da tempestade, qualquer coisa precisa, indomável e
urgente - ele quer adormecer como um crocodilo
encostado à certeza de uma pedra
para sempre.

Aos tropeções pela mortífera noite abaixo
há-de o gato trazer-nos a sua mulher sedenta, o seu cio confuso
e irado, e depois de os roubarmos - ao gato a virgindade, à mulher
a aguardente - chamaremos a verdade
e cortá-la-emos aos bocados. Por entre os incêndios da palavra,
ele buscará sempre algo sério algo frágil
algo intocável que buscar - porque subitamente o medo ou a débil implosão
de um grito, porque subitamente o movimento
imprudente de um crocodilo - e se uma pedra não servir
para que se convença, poderá servir-lhe então
o que roubámos: a aguardente à mulher e a mulher
ao gato, mas apenas porque a noite
desviara o olhar.

3.
Albergo dentro de mim todos os barcos do mundo
há sementes de mar soltas nos porões
nas fardas dos marinheiros nas fissuras
da madeira
e eu quero morrer afogado

4.
Não posso proibir o rapaz de se sentar ali.
Aprisionaram-no em si, ele está sempre sempre
com quem é e eu não sei
proibi-lo de se sentar ali. Inúmeras vezes, depois de me
deitar, adivinho
a perplexa fixidez da sua sombra
vertida delicadamente sobre
mim. O rapaz
ali parado, acorrentado a si, averigua a medo
o meu medo escuro, a sua tremenda boca
acesa - ausculta a fome invicta
do futuro.



nuno l. ramalho
poemas dispersos