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15 fevereiro 2024

miguel serras pereira / à tona do vazio

 
 
 
Não te leva nem traz a memória das horas
que voltam a morrer com o dia ao fim do dia
 
Por isso nunca te lembrei embora agora
de repente esta noite à tona do vazio
sejas tu afinal quem não está aqui
 
Pudesse assim morrer-se ou um dia morrer fosse
como sem ter de te lembrar não te esqueci
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
todo o ano 1990
barricada de livros
2022




 

17 outubro 2023

miguel serras pereira / na morte das horas

 
 
Um dia ficámos sós e a teu lado
os anos vão ficando enquanto passam
 
Perdendo-se vão connosco adormecidos
nas casas sem regresso onde moramos
 
Que água lavará da tua boca
o sangue que secou de tanto vento?
 
Quebra-se a espada e vira a sua lâmina
o fulgor contra nós dos nossos olhos
 
Um mar de areia insiste nestas veias
que roubam o alto mar aos mares do sono
 
que as sementes do sangue não semeiam
senão o vento inútil que as secou
 
Árvore moribunda pântano de sede
ou animal que nasce da ferida
 
Agora voam e as asas envenenam-nas
as horas que te esperavam e morreram
 
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
todo o ano 1990
barricada de livros
2022
 



19 julho 2023

miguel serras pereira / da insónia

 
 
Perdem-se todos os caminhos dessa casa
que não pára ao longe de fechar-se à tua espera
e de novo o cavalo do sono cai exausto
nas areias onde o tempo foi vencido
e as aves de passagem se esquecem de voltar
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022
 





10 dezembro 2022

miguel serras pereira / limiar

 
 
Não sei se volta a ti ou de ti parte
onde começa te começa ou traz enfim
a leve linha de altos choupos brancos
que lágrimas de ninguém estreitam ainda
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022





16 setembro 2022

miguel serras pereira / le temps retrouvé

 



 

Tu não sabias que cantavas
e eu nada sabia
mas já todas as fontes em que eu bebia se calavam
sempre que tu adormecias
 
Eu nada sabia do tempo que traria
a paz do tempo ao tempo que passava
e todo o tempo que passava se perdia
Mas tu não sabias que cantavas
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022





 


03 outubro 2021

miguel serras pereira / a que se cala

 
 
Entre dois dias tu és a que se cala
no silêncio das mãos sonhando a minha voz
e a distância do tempo enquanto o tempo
transborda o mundo e o mundo fica só
 
Viver é morrer sem fim enquanto nasces
Mas o regresso encontra intacta a despedida
e intacta e branca o tempo enquanto passa
a noite que o transborda entre dois dias.
 
 
 
 
miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993




 

30 junho 2014

miguel serras pereira / advento


Se eu pudesse dizer-te outra palavra
que não fosse só este silêncio só desfeito
com ela te diria o nome do meu filho
e entretanto descubro que não esperamos

Também aqui não nos espera a terra
Podemos ouvir e beber todos os ventos
ou saber como todas as palavras são apenas
o momento só de outro momento

Mas nem na morte estamos sós
Por isso não esperamos nem cremos
e é nos nossos corpos o silêncio de outra voz
quem respira quando nos calamos




miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993



15 novembro 2012

miguel serras pereira / sobre as ervas



Vem sobre as ervas do silêncio
E desperta a tua mão
─  É apenas o espaço sem dedos entre os dedos
de outra mão ausente

na tua mão de silêncio sobre as ervas
no espaço sem mão entre os teus dedos.



miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993



05 setembro 2012

miguel serras pereira / remo de água


  

(Valada do Ribatejo)



Voltará o verão à terra larga
e a carne à noite branca do começo
mas tu não voltarás e não passaste
e aconteces para sempre sempre que aconteces

Atravessas um remo de água submerso
na água que inunda ao alto o meu olhar
E é então que o tempo passa e ao passar se esquece
de me levar consigo ou te deixar ficar




miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993


05 junho 2012

miguel serras pereira / após o mar


  


Perdeu-se após o mar a nostalgia
de sermos pelo menos na hora do desastre
um voo de marinheiros caindo ainda
vencidos e longínquos ─  como o dia
sobre o rasto vermelho das amadas

E mesmo onde te encontro a despedida
corta as minhas mãos abertas pelas tuas
Passam as aves e passada a minha vida
procura o chão ardente da cidade
onde eu possa ser contigo as mesmas ruas

Entretanto esperamos apenas ─ árvores tristes
divididos um pouco mais a cada encontro
Eu parto e digo-te à partida amada que resistas
decepado sobre a terra e sobre ti
terra que deceparam do meu sangue

Mas a esperança que nos vem dentro do vento
desperta a voz da morte no regresso
Por isso somos hoje tão sábios e tão lentos
que as gaivotas nos poisam na cabeça






miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993




10 janeiro 2011

miguel serras pereira / desoras





I

Levei-te a minha casa mas nenhum
de nós dois foi capaz de me encontrar
tu por ser já talvez um pouco tarde
eu pelos anacronismos do costume

Por isso amada se apesar de tudo
nem sempre fomos só iguais a nada
teremos de arranjar novo teatro
onde a verdade logre melhor lume

mais capaz de a si próprio se tornar
esse instante de cada instante único
em que o instante ou só passa ou a passagem
mais que só consumir-se nos consuma

pois nem o tempo pode outro lugar
que não nos falte ou exceda onde nos une




II

Que sabes tu do inferno de onde estou
a telefonar-te agora? Mas também
como haverias tu de o saber se nem
eu sei já onde estou nem bem quem sou?

Porquê tentar de resto que o soubesses
em vez de te falar dessa promessa
nisso mostrando já melhor cabeça
que seria qualquer sítio onde estivesses

por acaso e eu chegasse por acaso
e depois sucedesse que em me vendo
quisesses cavalgar o tanto atraso
de quanto até então eu fora sendo?

E o rio cuja agonia ao fundo estancas
singraria as tuas mãos nas minhas ancas





miguel serras pereira
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes






31 outubro 2010

miguel serras pereira / talvez um barco







Podia dizer-to agora mesmo
mas do silêncio já nada me separa
ou só o tempo lento ainda de um momento
uma palavra só sem mais cansaço

Será talvez um barco se fores tu
- a chuva da manhã nos vidros limpos
e o vulto esguio perdido duna a duna
de quem regressa apenas de partida

Um pássaro esquecido brilha ainda
em dois olhares levemente embaciado
pela mesma indecisa febre antiquíssima

Podia dizer-to agora mesmo
E talvez seja um barco se fores tu
- ou serei eu talvez se for o mar






miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993