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14 julho 2023

luis buñuel / não me parece bem não me parece mal

 




 
Eu creio que por vezes nos contemplam
à nossa frente     atrás de nós     ao nosso lado
uns olhos rancorosos de galinha
mais terríveis do que a água podre das grutas
incestuosos como os olhos da mãe
que morreu no patíbulo
pegajosos como um coito
como a gelatina que os abutres engolem
 
 
Creio que hei-de morrer
de mãos espetadas na lama dos caminhos
 
 
Creio que se nascesse um filho
ele quedar-se-ia eternamente a olhar
as bestas que copulam ao entardecer
 
 
 
luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977
 



19 dezembro 2014

luis buñuel / redentora



Encontrava-me no jardim de um convento.
Um monge de S. Benito,
que levava sujeito a uma corrente um grande mastim vermelho,
contemplava-me com curiosidade, desde um claustro próximo.
Senti que o frade intentava lançar a fera contra mim,
pelo que, cheio de temor,
pus-me a dançar sobre a neve.

Suavemente, no princípio.
Depois,  jà que o ódio crescia nos olhos do meu espectador,
dancei furiosamente,
como um doido, como um possesso.

O sangue afluía-me à cabeça,
toldando-me os olhos vermelhos,
um vermelho semelhante ao do mastim.

O frade desapareceu e a neve fundiu-se.
O carniceiro vermelho desvanecera-se num imenso campo de papoilas.
Entre os trigais, na luz primaveril,
vinha agora a minha irmã, vestida de branco,
e trazendo-me nas mãos erguidas uma pomba de amor.

Era meio-dia em ponto,
a hora em que todos os sacerdotes da terra erguem a hóstia
sobre as searas.


Recebi minha irmã com os braços em cruz,
plenamente liberto
no meio de um silêncio augusto e branco de hóstia.



luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977




02 janeiro 2013

luis buñuel / bacanal




Carneiro de 125 pesetas,
caracóis abundantes, manuais como o ventre da mulher de 150 pesetas;
os pães que o pobre come
podem ser amassados desse ventre
e cozidos com fogo de polegares.

Quando cruzamos os polegares para formar uma harpa
renova-se o martírio de S. Bartolomeu,
que, souberam depois, era um diabo
ou um fauno
que se ria da cruz.

Ao morrer comeram-no umas formigas de ouro
que tinham carne de moura
e cu de bailadeira.
S. Bartolomeu e o fauno dançavam
enquanto as pedras saíam disparadas da terra
como beijos atirados com a ponta dos dedos.

Do túmulo de S. Bartolomeu sai uma espiga de bronze
por cada beijo que pôde e não quis roubar.



luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977


14 novembro 2011

luis buñuel / polisoir milagroso




No inverno os gritos dos semáforos caem ao mar
crivados de vento e de crucificação
Numa gota do meu sangue pode afundar-se um
        barco
do meu sangue caindo sobre o peito
de uma marquesa Luís XV de espuma

Esta paisagem gela menos ao espelho
do que sobre as unhas dos mortos
que hão-de ressuscitar com os dedos em flor
flor de agonia extinta e de salvação

Dividida como um vale de Josafat
espera-a a risca do meu cabelo
enquanto Cristo condena
a virgem Maria com um penteador branco
dará um naco de pão aos condenados
e porá um pássaro de carícias
na testa dos que se salvarem





luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977


07 março 2007

quando fomos para a cama





Os resíduos de estrela que ficaram entre os seus
cabelos
crocitavam como cascas de amendoins
a estrela cuja luz tu descobriste
há um milhão de anos já
no mesmo instante em que era dado à luz
um diminuto menino chinês.


«Os chinas são os únicos que não temem
os fantasmas
que nos saem da pele todas as noites.»


Lástima é que a estrela
não tivesse sabido fecundar teu seio
e que o pássaro da lamparina de azeite
a bicasse como casca de amendoim
o teu e o meu olhar
deixaram-te no ventre
um signo futuro de luminosa multiplicação.









luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977








22 abril 2006

estações

5)

Confesso publicamente a minha aversão aos blogues que, quando se abrem, nos cospem música. E digo música, porque emprego o termo no seu significado mais generalista e popular. É que nalguns casos, meu Deus!, levamos com cada coisa mais traumatizante… Ainda por cima, parecem estar programados para nos explodirem de madrugada, derramando-se pela escadaria do prédio até à porta do vizinho mais ranhoso, ou então na hora em que aquele cliente estrangeiro está precisamente a entrar no nosso departamento para nos ser apresentado.

Quando no Blogger me ponho à procura do que há aí pelo mundo, até acho piada à chinfrineira cromática e sonora que embrulha os blogues dos adolescentes asiáticos, com coisas estranhas e ruidosas a flutuarem nos ecrãs. Mas por favor, quando vejo aí alguns senhores, tão eloquentes na cultura e no social, a embrulharem as suas páginas com música de fundo… bem, dá-me vontade de rir.

É que a música é como um perfume: só se “impõe” a alguém que se conhece muito bem, é uma coisa que para ser partilhada sem aviso prévio, pressupõe intimidade. Quando me atiram um texto, posso defender-me recusando-me a lê-lo, mesmo uma fotografia pode ser recusada. Mas a música, meus senhores, a música mexe com tudo: com a pele, com os olhos, com o coração.

E porque nunca aqui será colocado um ficheiro de mp3, a música que vos posso dar, é desta:



INSTRUMENTAÇÃO

(para Adolfo Salazar)




Violinos
Donzelas pirosas da orquestra, insuportáveis e
pedantes. Serras de som.

Violas
Violinos que já chegaram à menopausa. Estas
solteironas ainda conservam bem a sua voz de meia
tinta.

Violoncelos
Rumores de selva e de mar. Serenidade. Olhos
profundos. Têm a persuasão e a grandeza dos discursos de Jesus no deserto.

Contrabaixos
Diplodocus dos instrumentos. O dia em que se decidam a dar o grande berro, pondo em fuga os espectadores espavoridos! Actualmente, vemo-los cabecear e grunhir de contentes com as cócegas que lhes fazem na barriga.

Flautim
Formigueiro do som.

Flauta
A flauta é de todos os instrumentos o mais nostálgico. Ver-se nas mãos de um bom senhor gordo e calvo, ela que, nas de Pã, era a voz emocionada
da pradaria e do bosque! Mesmo assim continua
a ser a princesa dos instrumentos.

Clarinete
Flauta hiper-atrofiada. Às vezes, o coitado, soa bem.

Oboé
Balido feito madeira. Suas ondas, profundos mistérios líricos. O oboé foi irmão gémeo de Verlaine.

Corno Inglês
É o oboé já maduro, com experiência. Viajou.
O temperamento requintado tornou-se mais grave,
mais genial. Assim como o oboé tem quinze anos
o corno tem trinta.

Fagote
Os professores de fagote são os faquires da orquestra. Às vezes, olham para o tremendo réptil que têm nas mãos e que lhes mostra a língua bífida. Depois de hipnotizado deitam-no nos braços e ali se fica, extático.

Contrafagote
É o fagote da terra terciária.

Xilofone
Jogo infantil. Água de madeira. Princesas a fiar no jardim, raios de luar.

Trompete com surdina
Clown da orquestra. Contorção, pirueta. Esgares.

Trompas
Ascensão a um cume. Emersão do sol. Anunciação. Oh, o dia em que se desenrolem como um «mata-sogras»!

Trombones
Temperamento um tanto alemão. Voz profética. Chantres de velha catedral com hera e catavento bolorento.

Tuba
Dragão lendário. O seu vozeirão subterrâneo faz tremer de medo os outros instrumentos, que desatam a perguntar quando virá o príncipe de luzida armadura que os liberte.

Pratos
Luz feita em estilhas.

Triângulo
Carro eléctrico de praia através da orquestra.

Tambor
Trovãozinho de sanefa. «Algo» ameaçador.

Bombo
Obcecação. Grosseria. Bum. Bum. Bum.

Tímbales
Cestos de azeitonas.






luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977



gil t. sousa