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31 janeiro 2024

katerina angheláki-rooke / adolescência 1

 
 
Com a adolescência o eu divide-se em dois:
um brinca e o outro apieda-se.
O tempo florista embrulha-nos em papel transparente,
e, embora esta atenção só se dirija ao nosso florescimento,
não o sabemos e tomámo-la como caso nosso pessoal.
Inverno em Atenas em 1953,
as lajes do passeio nadam em lama,
as luzes vermelhas do cine Orphéas amesquinham o mais informe
      dos corpos.
Tens saudades do futuro como se fosse passado,
ao saíres do teatro Koun, o homem das castanhas à esquina,
a mamã com o casaco novo,
tudo te leva às lágrimas; a inconsolável Blamche DuBois
acompanha-me até ao bairro Exárcheia;
os gladíolos amarelos pisados à chuva
amargamente me simbolizam.
A minha lascívia púbere idolatra o actor
que introduz os principais temas da minha vida
desejo – morte
depois ele afasta-se e eu prossigo
os restantes actos no meu acanhado palco.
Até chegar à porta de casa subi tragicamente até aos meus olhos;
que me falta que choro?
Chove e eu hei-de ficar sempre só, ninfazinha desamada ao frio.
 
 
 
katerina angheláki-rooke
epílogo do ar, 1990
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
tradução e organização de manuel resende
língua morta
2021




28 janeiro 2015

katerina angheláki-rooke / a transcrição do pesadelo



Para que o pesadelo se torne poema
é preciso que o silêncio não tenha rangidos
de alma, de coração ou doutros órgãos
da química inorgânica da existência.
No silêncio permite-se que habitem cores
mas estão proibidos os contrastes gritantes:
negro com carmesim
ou com o tão cantado azul dos olhos.
Talvez um pouco de cor de cobre
terroso de folhas murchas
ou branco com manchas de café na nuca dos cães.
Logo que o pesadelo tenha deitado todo o corpo que tem a deitar
é sujeito a uma série de operações.
Com grande minúcia há que lhe extrair
a suspeita lógica
e depois sem anestesiante
transplantar-lhe algo
da bondade inata dos humanos.
A intervenção mais difícil
consiste em amputá-lo do medo.
Isso consegue-se mergulhando
sem cessar o mau sonho
na santidade da natureza.
E é então que o poema floresce;
folhinha a folhinha
flor a flor
débil a princípio, trémulo,
ergue-se da negra terra que o alimentou
e ousa.

Ousa sonhar
o antídoto da aridez
a palavra.



katerina angheláki-rooke
(grécia, n. 1939)
(de "belo deserto o corpo")
tradução de manuel resende





16 outubro 2013

katerina angheláki-rooke / a outra penélope



Por entre as oliveiras vem a Penélope
com os cabelos apanhados à trouxe mouxe
e uma saia comprada no mercado
azul marinho com florinhas brancas.
Explica-nos que não foi por dedicação
à ideia "Ulisses"
que deixou os pretendentes durante anos
a esperar na antecâmara
dos misteriosos hábitos do seu corpo.
Ali no palácio da ilha
com os horizontes fictícios
de um doce amor
e o pássaro à janela
a captar apenas isto, o infinito,
ela pintou com as cores da natureza
o retrato de eros.
Sentado, de perna traçada,
segurando uma chávena de café
matinal, um pouco macambúzio, um pouco sorridente,
a sair quente dos edredões do sono.
A sombra dele na parede
marca deixada por um móvel há pouco retirado
sangue de antigo assassínio
aparição solitária do Karanguiózi
na tela, e por trás dele sempre a dor.
Inseparáveis o amor e a dor
como o balde e o menino na praia
o ah! e um cristal que se escapa das mãos
a mosca verde e o animal morto
a terra e a pá
o corpo nu e o lençol de Julho.

E a Penélope, que ouve agora
a música sugestiva do medo
a bateria da renúncia
o doce canto de um dia sereno
sem bruscas mudanças de tempo e tom
os complexos acordes
de uma infinda gratidão
por tudo o que não aconteceu, não se disse, não se diz,
acena que não, não, não a outro amor
não mais palavras e sussuros
abraços e dentadinhas
vozinhas na escuridão
cheiros de corpo que arde à luz.
A dor era o pretendente mais excelente
e fechou-lhe a porta.



katerina angheláki-rooke
belo deserto o corpo
tradução de manuel resende



12 julho 2012

katerina angheláki-rooke / regresso ao tempo sem amor





     O cão foi o primeiro sinal
     de que brilham vazios os espelhos cá dentro
     e de que havia um espaço infinito para ele
     no interior da minha história;
     podia entregar-me inteira a ele
     aos seus pulinhos à luz
     e outras actividades caninas.
     Antigamente era assim, como casinha de recém-casados,
     e a alma,
     no ar meio roído em que se abrigava,
     onde ainda não havia cheiros e choros,
     leve como escama a arrastava o futuro.

     Ontem à noite tornei a perder o barco
     e enquanto os filhinhos dos amigos quietos
     mergulhavam no seu sono azulado,
     enroupava-me uma serenidade semelhante à origem,
     talvez porque só o silêncio
     pode unir a mirra da vida
     com o furúnculo da morte;
     mudo o humano
     vê primeiro uma depois o outro
     a alastrarem na carne.
     E ninguém sabe se é progresso ou imobilidade
     este vazio que como lava espessa
     recobre as culturas do espírito,
     se as obras que se apresentam à memória
     vão a subir ou a descer,
     se é perda ou lucro a dedicação
     e se se roeram os dentes da máquina
     no momento em que íamos para novo voo.

     É tão certa hoje a terra
     com os ramos secos, o pouco verde,
     os torrões de terra que bondosos
     se descansam na terra repartindo a emoção
     equitativamente entre o fim e a origem...
     Mas é fim esta beleza
     que sempre inacessível
     aflora os humanos torturados?
     É fim aquilo que desarticulado se prepara
     nas câmaras escuras do tempo
     e não deflagra em desesperos e pragas,
     mas bate em retirada diante das explosões que se aproximam?
     É fim ou outra origem
     na qual hoje à noite farão círculo
     as caudas dos bichos adormecidos
     em redor do meu sono,
     para que eu passe ligeira
     para a sombra inconsciente
     como se nunca tivesse gritado:
     "Meu amor, perco-me se me deixares agora!"
     como se nunca tivesse tido o corpo sem fim.




     katerina angheláki-rooke
     (grécia, n. 1939)
      (de "belo deserto o corpo")
      tradução de manuel resende