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18 outubro 2007

mestres-do-chá




Na religião, o Futuro está atrás de nós. Na arte, o Presente é o eterno, O mestre-do-chá defendia só ser possível a verdadeira apreciação artística aos que a encaram como uma influência viva. Assim, procuraram regular o quotidiano das suas vidas pelo elevado padrão de requinte que prevalecia na sala-de-chá. Fosse qual fosse a circunstância, havia que manter a serenidade de espírito, e a conversa deveria conduzir-se de modo a nunca perturbar a harmonia da ambiência. O corte e a cor do traje, a pose do corpo e a maneira de caminhar podiam ser transformados em expressão da personalidade artística. Estes preceitos não deviam ignorar-se com ligeireza, pois até se tornar a si próprio belo ninguém tem direito a aproximar-se da beleza. Assim, o mestre-do-chá esforçava-se por ser algo mais que o artista — a própria arte. Era o Zen do esteticismo. A perfeição está em todo o lado, basta decidirmos reconhecê-la. Rikiu adorava citar um velho poema que diz: «Aos que anseiam apenas pelas flores, eu mostraria com agrado a primavera desabrochada que subsiste nos botões obstinados dos montes cobertos de neve.»

Foram de facto diversas as contribuições dos mestres-do-chá para a arte. Revolucionaram completamente a arquitectura clássica e as decorações interiores, e estabeleceram o novo estilo que descrevemos no capítulo sobre a sala-de-chá, um estilo a cuja influência se sujeitaram inclusivamente os palácios e mosteiros erigidos depois do século dezasseis. O versátil Kobori Enshiu deixou exemplos notáveis do seu génio na vila imperial de Katsura, nos castelos de Nagoya e Nijo, e no mosteiro de Kohoan. Todos os jardins célebres do Japão foram planeados pelos mestres-do-chá. É provável que a nossa cerâmica jamais atingisse aquela altíssima qualidade de excelência se os mestres-do-chá não lhe houvessem emprestado a sua inspiração, uma vez que a manufactura dos utensílios utilizados na cerimónia-do-chá exige o maior dispêndio de engenho por parte dos nossos ceramistas. Os Sete Fornos de Enshiu são sobejamente conhecidos de todos os estudiosos da cerâmica japonesa. Muitos dos nossos tecidos trazem os nomes dos mestres-do-chá que lhes conceberam as cores ou o padrão. Em verdade, é impossível encontrar algum sector da arte em que os mestres-do-chá não tenham deixado marcas do seu génio. Na pintura, e nas lacas, parece quase supérfluo mencionar o imenso serviço que prestaram. Uma das maiores escolas de pintura deve a sua origem ao mestre-do-chá Honnami-Koyetsu, afamado também como artista lacador e ceramista. Perto da sua obra, a criação esplêndida do seu neto, Koho, e dos seus sobrinhos-netos, Korin e Kenzan, quase cai na penumbra. Toda a escola Korin, como geralmente é designada, é expressão do Cháismo. Nos traços largos desta escola parecemos encontrar a vitalidade da própria natureza.

Por maior que tenha sido a influência dos mestres-do-chá no campo da arte, ela não é nada quando comparada com a que eles exerceram na conduta da vida. Sentimos a presença dos mestres-do-chá não apenas nos usos da sociedade polida, mas também no arranjo de todos os nossos detalhes domésticos. Muitos dos nossos pratos delicados, bem como a maneira de servirmos os alimentos, são invenções suas. Ensinaram-nos a vestir somente trajes de cores sóbrias. Instruíram-nos no espírito próprio para nos aproximarmos das flores. Acentuaram o nosso amor natural pela simplicidade, e mostraram-nos a beleza da humildade. Na verdade, através dos seus ensinamentos o chá entrou na vida do povo.

Os que, entre nós, desconhecem o segredo de regular adequadamente a sua existência neste mar tumultuoso de problemas tolos a que chamamos vida, estão num estado de tristeza constante, embora tentem em vão parecer felizes e contentados. Vacilamos ao tentar manter o nosso equilíbrio moral, e vemos prenúncios da tempestade em cada nuvem que paira no horizonte. Contudo, há alegria e beleza na espiral das vagas que se encapelam rumo à eternidade. Por que não entrar no seu espírito, ou, como Liehtse, cavalgar o próprio furacão?

Quem apenas viveu com o belo pode morrer em beleza. Os últimos momentos dos grandes mestres-do-chá foram de um requinte sofisticado tão completo quanto o haviam sido as suas vidas. Procurando constantemente harmonizar-se com o grande ritmo do universo, estavam sempre preparados para entrar no desconhecido. O «Ultimo Chá de Ríkiu» evidenciar-se-á para sempre como o auge da grandiosidade trágica.

A amizade entre Ríkiu e o Taiko Hideyoshi vinha de há muito, e era elevada a estima em que o grande guerreiro tinha o mestre-do-chá. Mas a amizade de um déspota é sempre uma honra perigosa. Vivia-se uma época fértil em traições, e os homens não confiavam sequer nos seus parentes mais próximos. Rikiu não era um cortesão servil, e ousara amiúde discordar do seu feroz patrono. Tirando partido da frieza que existia há algum tempo entre o Taiko e Rikiu, os inimigos deste último acusaram-no de estar implicado numa conspiração para envenenar o déspota. Foi segredado a Hideyoshi que a poção fatal lhe seria administrada com uma chávena da beberagem verde, preparada pelo mestre-do-chá. Para Hideyoshi a suspeição era terreno suficiente para execução imediata, e não houve apelo que demovesse a vontade do irado governante. Um só privilégio foi concedido ao condenado — a honra de morrer pela sua própria mão.

No dia destinado à autoimolação, Rikiu convidou os seus principais discípulos para uma última cerimónia-do-chá. Enlutados, na hora estipulada os convidados encontraram-se no alpendre. Quando olham para o caminho do jardim as árvores parecem estremecer, e no restolhar das folhas escutam-se murmúrios de fantasmas desabrigados. Como sentinelas solenes perante os portões do Hades estão as lanternas de pedra cinzenta. Uma onda de incenso raro solta-se da sala-de-chá; é o chamamento que ordena aos convidados que entrem. Um a um avançam e tomam os seus lugares. No Tokonoma está pendurado um kakemono um escrito maravilhoso de um monge antigo, discorrendo sobre a evanescência de todas as coisas terrenas. A chaleira cantante, à medida que ferve sobre o braseiro, soa como uma cigarra derramando os seus lamentos ao Verão em declínio. Pouco depois o anfitrião entra na sala. Um a um são servidos de chá, e um a um esvaziam silenciosamente as suas chávenas, sendo o anfitrião o último a fazê-lo. De acordo com a etiqueta estabelecida, o convidado principal pede agora permissão para examinar o equipamento-do-chá. Rikiu dispõe frente a eles os diversos artigos, com o kakemono. Tendo todos expressado admiração pela sua beleza, Rikiu presenteia com um destes artigos cada um dos convivas reunidos, como lembrança. Só a malga reserva para si mesmo. «Jamais esta chávena, poluída pelos lábios da desgraça, será usada pelos homens.» Fala, e quebra o recipiente em bocados.

A cerimónia termina; os convidados, dificilmente retendo as lágrimas, despedem-se pela última vez e deixam a sala. A um apenas, o mais próximo e mais querido, é solicitado que fique e testemunhe o fim. Então, Rikiu remove o seu fato-do-chá e dobra-o cuidadosamente sobre a esteira, desvendando assim o imaculado vestido branco de morte que até aqui se ocultara. Com ternura fita a lámina reluzente do punhal fatal, e dirige-se-lhe assim, em versos singulares:


Bemvinda sejas,
Ó espada da eternidade!
Através de Buda
E também de Daruma
Cravaste o teu caminho!

Com um sorriso no rosto, Rikiu entrou no desconhecido.






kakuzo okakura
o livro do chá
trad. fernanda mira barros
biblioteca editores independentes
2007