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26 fevereiro 2024

joão miguel fernandes jorge / a neve começa

 
 
A neve começa. O frio
torna o ar transparente.
Perigo
é uma carta que vem longe.
 
A terra traz os frutos.
 
Tu dirás que sou eu
eram meus olhos
nunca a neve foi silêncio
nem o frio
voo de ave.
 
Suspenso da atmosfera crepuscular
vem pela luz da madrugada
 
conheço os seus cabelos cortados em mármore
versos calmos e razoáveis tinham sido as palavras
reconheço os traços vigorosos do seu rosto
ao qual dirás que
 
nunca foram silêncio nem o frio voo de ave.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019





01 dezembro 2023

joão miguel fernandes jorge / primeiro de dezembro

 




 
O Primeiro de Dezembro é um café pobre. O dono
se reconhece a sua casa neste verso
não vai gostar. Que posso fazer? Recordo a sala ampla;
deu lugar a várias divisões – salas de restaurante e
café – o espaço de soalho carcomido; estremecia ao
passo dos clientes. Cheiro a café de saco bem quente
servido em copo. E o vinho que bebiam ao balcão, Gaeiras
de reduzida colheita de lavrador, quando a luz incidia,
brilhava como telha vermelha magoada de luar.
 
A vila – se alguma coisa de qualidade em
Portugal deixasse um dia de ser pobre – tem hoje arre-
medos de casinha de chocolate.
Fico-me pela esplanada no desvão do largo irregular e
perfeito. Em frente, o portal da ermida de São Martinho;
dois túmulos prendem-se à estreita frontaria. À direita, a
parede lateral da igreja de São Pedro; ao lado esquerdo,
armas plenas do reino, coroadas, dão corpo ao edifício da
câmara. Buganvílias crescem na diferença do vermelho e do roxo.
 
Cimeira à ermida, uma velha casa aluga quartos. Um dia
hei-de fazer de turista e alugar a divisão fronteira à mesa
em que, por hábito, me sento. Não é golpe narcisista
para ver o lugar da minha ausência. Vou querer abrir e
fechar a empenada janela de guilhotina e voltar a abri-la
para assim permanecer toda a noite.
Hei-de sentar-me na cama, despir-me com o vagar dos gestos
de quem nunca teve um ombro onde pousar a cabeça; de
súbito, quando já for madrugada, hei-de ouvir
 
vozes alegres, risos, chamamentos, respostas
joviais, hei-de chegar à janela, hei-de ver
os mortos de Óbidos
abandonados nas posições mais cruéis.
Feira de cadáveres e de porção de ossos; e uma festa ao mesmo
                                                                                 tempo
com um tilintar de campainhas a carruagem de não sei que
capitão de praça vai passar pelo meio dos despojos
levada por um cavalo branco. E na boleia, os gémeos
que conheci na casa logo abaixo da Misericórdia. O mais bonito
segurava as rédeas e o chicote. O que não era tão bonito –
  leitura difícil, rosto e corpo genuinamente iguais – tocava
                                                                  o serpentão.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004



23 abril 2023

joão miguel fernandes jorge / vanitas







 

 
Vem. Abre o livro.
Quem lê não está morto.
Somente aproxima as palavras
da chama do tempo.
Quase foge. Quase se funde
na luz da vela.
Vem. Lê baixo, num murmúrio,
as palavras.
Último esforço ruinoso, as palavras
fecho de um mundo sem esperança.
A palavra
a última que puderes ler
reflecte na fundura da órbita
a causalidade de deus.
Irradia a última palavra
luz interior
a imagem incendeia a própria caveira
dessa palavra
vem
abre o livro
quem lê não está morto
 
              
                                /Mestre desconhecido, pintura italiana, séc. XVII/
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
museu das janelas verdes
relógio d´água
2002





07 fevereiro 2023

joão miguel fernandes jorge / vivi nesta casa muitos anos

 



 

Vivi nesta casa muitos anos.
Agora mudaram já decerto a fechadura
e as pequenas coisas que fazem uma casa.
As chaves já não as trago
ao lado dos meus gestos.
 
Mudaram os móveis
deitaram fora as cortinas
e as paredes
trazem agora um calendário novo.
 
Uma casa é sempre
caliço cheiros alianças.
Eu avanço sobre o silêncio de
ainda
esperar por ti.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




19 agosto 2022

joão miguel fernandes jorge / e falamos assim

 
 
E falamos assim falamos
de outra voz de outro tempo
de outra folha
 
do traço parecido
e carregado
do Verão.
 
De longe olhámos o inverno.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




14 fevereiro 2022

joão miguel fernandes jorge / schumann, uma fantasia

 
 
Amo aquele que pede o impossível
quando sente a casa desmoronar tijolo
a tijolo
com a leveza de uma pena liberta pleno
voo
 
de um azul e oiro, o ritmo –
  esse tijolo de barro vermelho
de um modo apaixonado pede
 
a vida
e a vida, num último instante, dá-lhe jardins,
deuses e a energia de uma
cidade suspensa
a luz de um palácio submerso
 
no último instante,
muito lento,
silvam as chamas do desamparo, caducidade
duração
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004




13 setembro 2021

joão miguel fernandes jorge / canção para nenhum caminho

 
 
 
Trabalha nas obras camarárias
à entrada do Passeio Alegre. A mão vigorosa compões a terra.
Afasta-se com um balde, para regressar com a novidade de
um boné de pala vermelha – protege-lhe o
rosto. Vejo-o da varanda. A minha casa
pertence-lhe;
nunca o saberá. Ofereci-lhe, prata envelhecida, o meu tempo.
Não vai suspeitar
que também o meu próprio tempo lhe pertence.
Não terá as palmeiras, a pedra perfeita dos obeliscos à
entrada do romântico passeio. Ele canta –
  o desfazer do exacto tempo passado: o que foi meu
entrego ao abrigo dos seus braços      a inclemência da velhice
apodera-se do oriente eslavo, da sua vida. Na Foz do Douro um dia
 
 
o enganoso dia da fortuna.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
invisíveis correntes
relógio d´água
2004





 

12 junho 2021

joão miguel fernandes jorge / das nossas mãos que restará fazer?

 
 
Das nossas mãos que restará fazer?
 
Quem há-de lembrar
a cadeira a porta a árvore?
 
O tempo sobre o nosso sangue
o sangue sob o nosso corpo
das nossas mãos que restará fazer?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






18 março 2021

joão miguel fernandes jorge / é uma casa…

 
 
É uma casa de parede coberta de heras e musgo
Corre um banco comprido,
são assim os bancos das aldeias do litoral.
 
É o presságio,
é o olhar sobre a planície.
 
É uma casa de chão batido.
As bilhas de barro chegam da proximidade das manhãs
sob a sombra de dunas e pinheiros.
 
Os barcos ainda não deixaram o porto.
Só depois de o sol nascer largam para ocidente.
Não temos ilusões,
 
a sombra não chega para esta memória.
 
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




02 fevereiro 2021

joão miguel fernandes jorge / este ano

 
 
Este ano o verão atravessou
Lisboa. O verão foi invisível.
Atravessou a cidade e os outros
levou do meu corpo
memórias do teu nome.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







21 novembro 2020

joão miguel fernandes jorge / fins de outubro

 
 
Fins de Outubro. As uvas ainda estão
nas ramadas.
É preciso perder o rosto mais próximo
vencê-lo como se fisgam pássaros novos
e ficar preso a esse movimento.
Deixar nos campos crescer a flor do
aloés.
 
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







09 agosto 2020

joão miguel fernandes jorge / este repouso



Este repouso
quando a luz separa
as mais secretas folhas

e os olhos,
por instante, são o rosto
e a noite

o vento que me prende e
não conheço.



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019








07 fevereiro 2020

joão miguel fernandes jorge / falava como se um sonho pudesse



Falava como se um sonho pudesse

um sonho não teria tantas árvores
um sonho não as teria tão
suspensas e tão tomadas

que dizia que diziam?
que queriam eles de mim?



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019








26 junho 2019

joão miguel fernandes jorge / íamos por onde uma erva pudesse crescer



Íamos por onde uma erva pudesse crescer.
Nos cantos da casa, nos mais remotos, onde
cai a chuva e não se sabe onde um dia a
criança deixou pão bolorento depois seco depois cinzas.

Esses remotos sítios das formigas
hei-de entretê-los com pedras
e desbotadas flores de papel
páginas cheias de ninguém.



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







27 maio 2019

joão miguel fernandes jorge / o rosto a linha o risco



O rosto a linha o risco
do teu lado intenso à
tua mão?

O rumor
o excessivo inverno
e

E os olhos para não dizer.



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






28 maio 2015

joão miguel fernandes jorge / o mar já não era para mim suficiente


2.

O mar já não era para mim suficiente.
Fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.

É difícil a meio da música
suportar a luz do café.

Estávamos juntos
como vejo estar no palco
sob dois projectores.

Os olhos
as mãos
todo o corpo
era só o frio da noite.



joão miguel fernandes jorge
poemas escolhidos,
o roubador de água (1981)
assírio & alvim
1982