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17 outubro 2013

hélène monette / saudações da princesa


para kim


Senhora, aplainais-me o coração
e não poderei esquecê-lo
eu, uma diabinha, a inocente
santa lutadora
arrastada na lama
eu, arrastada em pé viva
ao fresco, à sombra, grande demais ao ser espancada
tão orgulhosa de ninguém ao ser esbofeteada
ao frio
no rumor das cigarras
alegre
no mundo e seus irreais
eu, olhos ternos e roupas ordinárias
mãos frias, olhos quentes
impaciente em desordem
amorosa no caos
sorriso franco
aterradora amável
sim, senhora
até tenho olhos que se arrastam
como sempre acabam por se arrastar
aos vossos pés
no chão de todos
porque como sabeis
estamos no chão de todos
esquecemo-lo vezes demais
esquecemos até as nossas chaves, as nossas cabeças, os nossos números
nas estantes do coro, entre os trapos, entre dois ombros
em cadernos, livros, sobre a terra de todos
e as nossas almas, senhora
elas acabam também por se arrastar
as nossas almas são vagas
sequiosas de margens
 
num tal deserto
elas preocupam-se até demais                

 
hélène monette
poemas                                      
tradução de rosa alice branco
(encontros de talábriga)




10 maio 2013

hélène monette / a conformidade




Até os mais amigos
dizem
conforme
o jogo é conforme
o prazer é conforme
no plano da vestimenta, a mulher é conforme
a vida é conforme
ou deslocada.
 
assustadora, a verdade não é verdadeira

como isto é definitivo
nada para escrever um poema à filha
uma carta ao filho
uma lágrima à irmã
nada para escrever por estes dias uma sinfonia
os dias fedem como o aborrecimento

o absurdo tomou conta do aquecimento dos glaciares
não me aborreçam com tudo o que é conforme a este diktat
a esse desgaste
a esse glaciar derretido em negro acorrentado
 
é possível sonhar com a nascente do conforme
a humanidade desaparecerá antes
o conforme depois
porque tudo é conforme no primeiro como no último
a idiotice é conforme
a mentira é de boa conformidade

eu esperava-vos ali onde vocês me esperavam
 
sim, mas conforme a quê?
 
não sei
é a sociedade pesada e maldosa
bonita e conforme
com a cor dos pulmões nas florestas queimadas
é a sociedade na terra de todos
que torna a humanidade conforme
aos bozos da definição plana
o zero é conforme
e o resto, é a terra a um canto
que já não aguenta de tanto suar
 
nos tempos que correm caminhamos com uma faca nas costas
bem enterrada entre as omoplatas
uma faca sólida, no lugar apropriado
a faca é conforme ao amor que perdura entre os dormitórios batidos em neve
entre as ilhas inundadas
isso é exacto
tudo está no seu lugar
a lama e o oceano
o cartão do loto
o número errado
e o espectáculo
o grande espectáculo debate-se no ecrã que morre
 
como isto é cómico, o cómico é conforme
com o cómico
e não há engano
toda esta lógica é patética
o universo gira nos olhos dos nossos bem-amados
calhaus em fogo
no além mais profundo sem igual

 

hélène monette
poemas                                      
tradução de rosa alice branco
(encontros de talábriga)




13 julho 2011

hélène monette / cálculo integral

.
.
.

Quantas noites há neste planeta?
quanta paz na escuridão
de luz na sabedoria?
Quantos mortos até à morte?
Quanto?

Quantos passos traçaram
com os vossos pés, com as vossas mãos
quantas notas ligaram
quantas vozes enlaçaram
neste deserto sem fim?

Quanto amor há no vosso amor

vós que traçais na areia
os esquemas dos vossos conhecimentos
os teoremas do esplendor
a fórmula infalível da existência?

Quantas noites há na vossa vida?
Quantos oceanos no vosso corpo?
Quantas ilhas moram
no arquipélago atlântido da vossa alma?
Quantas velas nos vossos olhos
e o fogo
onde o puseram?
No léxico das vagas?
Na gramática do céu
hoje tão enevoado?

Quantos rodeios e convenções
quantas indecisões fratricidas
por princípio, em teoria
quantas vozes entorpecidas
no capítulo do coração?

Quanto amor no silêncio impossível deste planeta?

Que fizeram de tudo isso
por entre as ditaduras físicas
zombarias animais
extravios de suburbanos
entre os intelectos arrefecidos
e as comédias fraternais?
Que fizeram do vosso amor?
Que fizeram das vossa vida?
que disseram?

Quantos ramos de flores esmagados nas vossas mãos?
Quantas paixões alucinadas
quantas horas de gabarolice
por cada aventura inverosímil?
Quantas notas há no vosso amor?
Quantos objectivos?
Quantos talismãs  nos vossos preconceitos?
Quantas fogueiras?

Quanto rigor antropológico
quanta sinceridade
nesse desespero estruturado bem no mais fundo da cabeça
Quantas miragens exactas
nesta alegria empolada?
Quantas respirações controladas
no exercício da mentira
que nunca basta, nunca?

Quanto amor há no vosso amor?
Quantos dias na vossa vida?
Quantas mulheres e quantos homens
no vosso exército?
E que fardo os obrigam a transportar?

Quantas notas ligaram
quantas vozes enlaçaram
neste deserto sem fim?

E afinal, porquê?
  
 

 

hélène monette
poemas                                      
tradução de rosa alice branco
(encontros de talábriga)


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07 maio 2007

senhor…




Senhor, o amor é uma coisa que mete medo
não sabeis pois que se trata de um trabalho difícil
exige uma coragem e uma fé além do improvável
uma humanidade indizível
uma fraternidade cega
dinheiro e garrafas
crianças ao acaso
olhares nem sequer fulminantes
e charcos de céu
e festas campestres
quando o tempo permite
o amor quer idas à pesca, patins e chocolate negro
o amor quer a curva suave e a facilidade
é tão difícil, Senhor
não poderia descrevê-lo
em toda a sua volúpia
para lá dos seus mártires
e dos seus desastres hipócritas
o amor é pleno de alegria
e segue o seu caminho
na névoa dos primeiros passos
na roupa pendurada no inverno
na corda tensa
vai para onde calha
e muito lentamente
lentamente demais o amor segue
como um ouriço do mar oco cheio de areia
como um botão que se deixa por coser
é miserável
é uma pluma
move-se ao vento
quando o coração bate
é esplêndido lavado pela maré
mesmo na maré odiosa
é onda
e é belo
é onda e é belo e cheio de algas
é o silêncio
é a luz
uma coisa assim vulgar







hélène monette
poemas
tradução de rosa alice branco