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21 dezembro 2023

gonçalo m. tavares / os prédios dos pobres

 
 
O cão não urina junto à árvore
como já vi mulheres de banqueiros fazerem.
As duas patas de trás paralelas,
o rabo encostado ao tronco para evitar a queda,
e depois o mijo: quente, rápido e amarelo
como a cor dos prédios dos pobres
assinalados com a subtileza possível
          pelo arquitecto.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



06 maio 2023

gonçalo m. tavares / o táxi



 
Uma mulher levanta o braço. Está no passeio. Não tem pressa, mas levanta o braço e acena com a mão. O táxi pára. Está vazio, mas não pára.
 
A mulher veste calças elegantes, castanhas. Tem um lenço ao pescoço.
 
De novo, vemos a sua mão levantada a acenar. Outro táxi que não pára.
 
A mulher está a sorrir. É bonita. Levanta o braço de novo. Estamos sempre a vê-la, a ver o seu entusiasmo sorridente. Mas não, de novo o táxi não pára. Também vazio, mas não pára.
 
O plano agora abre-se mais. Vemos a mulher, sim, as suas calças elegantes castanhas. E, junto aos seus pés, um corpo inerte; provavelmente morto.
 
 
 
gonçalo m. tavares
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caminho
2011
 



 

23 outubro 2022

gonçalo m. tavares / o amor



 

A Natureza tem uma entrada por trás
como os clubes clandestinos;
e o coração, mesmo apaixonado, não é tão estúpido
como uma galinha, por exemplo,
que é capaz de seguir durante horas
uma linha traçada a giz no chão.
 
 
 
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1 poesia
relógio d´água
2004





 

17 julho 2022

gonçalo m. tavares / envelhecer

 
 
O Perigo não tem lugares fixos, como se sabe.
          Nem todos podem morrer de frente
ou com um tiro na nuca,
                    por vezes o assunto último
          é manuseado com tiques mesquinhos,
dedos como bicadas de galinhas imbecis
          a bicar o inútil, o impossível e a pedra.
Morres mas não morres de vez como os animais.
Apodreces, sim, como as plantas (quando envelheces)
          como uma rosa disputada à força por dez mulheres,
ou como um deus imortal atingido cem vezes.
          Talvez eu preferisse ver a erva
como os ratos vêem,
olhando em frente com os olhos minúsculos.
          Mas não.
 
 
 
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1 poesia
relógio d´água
2004
 



27 agosto 2020

gonçalo m. tavares / ignorância



Uma ignorância súbita, de uma intensidade incalculável.
É não entender da forma mais humana que existe.
Não é o medo, no animal,
Não é a explosão na matéria: é o espanto.




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relógio d´água
2004













28 março 2020

gonçalo m. tavares / guerra, inferno



Uma certa indumentária clássica: os sapatos mantêm-se
Indispensáveis mesmo depois da guerra.
Uma progressiva intimidade com o inferno não
Modifica conceitos estéticos e necessidades orgânicas:
Quais os índices do desejo em dias de bombardeamento?
Há números importantes para perceber a razão por que certas
Palavras se introduziram em todas as línguas,
Do Oriente ao Ocidente. Palavras más.




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1 poesia
relógio d´água
2004






25 fevereiro 2016

gonçalo m. tavares / o número 76



Uma vaca, com o número 76 na orelha, está morta, o corpo caído sobre a neve. O excessivo frio súbito matou vários animais – dezenas, centenas, milhares de animais. Mas nenhum animal era igual àquela vaca com o número 76 desenhado numa placa amarela agarrada à orelha. Esse número, sabe-se lá porquê, assusta.

  
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2011



08 abril 2015

gonçalo m. tavares / a cabeça



Esta cabeça que aceita tudo como os pobres,
impossível desligá-la, fazer uma muralha,
fechar o sítio de onde sai o que se pensa.
Mas os acontecimentos exteriores ainda assustam,
ou divertem,
      e não consigo parar.
A carne se fosse metal seria melhor,
              mas não é melhor,
nunca é melhor.

  

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relógio d´água
2004




28 outubro 2010

gonçalo m. tavares / chão





Não há limite que não seja por ele suportado.
Suporta todo o cansaço. Traições, fadiga, falhanços.
Aconteça o que acontecer tens um corpo que pesa;
e um chão, mudo, imóvel, que não desaparece.






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relógio d´água
2004






29 maio 2008

a trégua






Havia uma desarrumação no cabelo, se tinha
Calções eles caíam; puxava-os para cima, não
Me penteava.
Se alguma trégua fiz com a infância foi esta:
Ainda não uso pente, os calções são calças,
mas continuam a cair. Por delicadeza,
Puxo-as para cima.






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1 poesia
relógio d´água
2004