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17 maio 2014

felipe benitez reyes / o género humano




Nem juntos os nossos corações se ouvem mais,
na inquietude total do universo,
do que ouvimos esse frigorífico latir de noite
numa solidão cordial e insone.


Nem sequer a união
de todos as canseiras que suportamos
conseguiria mudar a forma de uma nuvem.


A soma do amor de todos juntos
não poderia salvar
a vida de um insecto agonizante
nem impedir a soberba de um tirano.


A nossa história é um cofre
de sangue e cinza.


O mar some as pegadas dos barcos.
O tempo apagará as nossas esteiras.



felipe benitez reyes
tradução de manuel rodrigues





16 fevereiro 2014

felipe benitez reyes / o mar



Se lançassem de uma só vez ao mar
as cinzas de todos os mortos
que vagam pelas brumas da História,
digo que nem toda essa cinza
unânime alteraria
o seu contínuo fluir:
o leve marulhar rude
ou as lendas graves da sua ira.


Errabundo e cativo, mas sempre
com uma ordem
perfeita: misteriosa e calculada,


ouve-o como brama:

o mar bêbado pelas luas,
homérico, mutável, mecânico,
com frotas de peixes
de olhos aterrados que o exploram
como os pensativos peixes coloridos
exploram uma vez e outra e outra vez ainda
o aquário cheio de palmeiras
e tesouros em miniatura de piratas.


Flutuante como o pensamento,
olha-o,
angustiado de azul indefinível,
asmático, grandioso e teatral,
ele,
que recua e invade
segundo um raro método que tem
algo a ver quiçá com os nossos ciclos
de razão e loucura, as duas faces
de uma moeda que nunca cai direita.


Refúgio de seres silenciosos,
inesgotável mar de vaivém de espuma,
tão dado a todo o tipo de metáforas
que sucede às vezes lembrarem-nos
o muito que somos parecidos ao mar.


felipe benitez reyes
tradução de manuel rodrigues




22 março 2013

felipe benitez reyes / aviso por palavras


  
Não confundas desejo com paixão:
O desejo vale mais – nunca morre,
e busca sob luas tormentosas,
com olhar de lobo que não dorme,
o frágil fulgor fugaz dos relâmpagos.




felipe benitez reyes
espanha
tradução de manuel rodrigues 



23 agosto 2012

felipe benitez reyes / esboço na água





Sabes bem que estes anos passarão,
que tudo acabará em literatura:
a imagem das noites, a lenda
da triunfante juventude e as cidades
vividas como corpos.


Que estes anos
passarão já o sabes, pois são teus
como posse de neve e neblina,
como do oceano é a bruma, ou é do ar
a cor fugitiva da tarde,
coisas de ninguém e do nada
surgidas, que ao nada vão:
nem o oceano, nem o ar, nem essa bruma,
nem um crepúsculo igual verão os teus olhos.


A memória é um desenho na água
e nas suas ondas revela-se o cadáver do tempo.

Farás esse desenho.

E de súbito
terás a sombra morta
do tempo junto de ti.





felipe benitez reyes
espanha
tradução de manuel rodrigues


23 maio 2012

felipe benitez reyes / a idade de ouro






O que o tempo leve
que seja tanto
quanto o tempo nos deu,
prenda imerecida,
deixando a memória na inocência
da vida gasta, porque nada
fere mais e mais fundo que a lembrança:
enquanto subsista uma noite na memória,
essa noite é a Noite
e essa intensa memória a Memória.

Leve o tempo tudo
o que queira levar,
porque tudo foi seu desde sempre.

Que o tempo desvaneça
o ouro delinquente do amor
e a imagem hermética daquilo
que chamavas passado
- e era apenas
ontem: a fugitiva idade
de não ter idade para o passado.

Idade de Baudelaire e de raparigas
que adquiriam noções da vida
nas últimas filas dos cinemas
e nesses velhos cinemas do pós-guerra
convertidos em lugares para dançar que fechavam
quando o céu queria amanhecer,
amanheceres de domingo,
voltando para casa com
um copo ainda na mão
e tabaco de outros no bolso,
a essa hora em que abriam os cafés
e as senhoras de caridade montavam mesas
com cartazes de meninos moribundos.

E era a morta luz que amanhecia
a metáfora gelada e a ilusão exacta de estar queimando
as naves da eterna juventude.

Mas no seu carro fúnebre
O tempo ia admitindo passageiros.

E as naves queimadas são cinza
e muito pouco de eterno
teve a minha juventude.

Mal arraste tudo, o tempo
que leve na sua vertigem a memória,
deixando
um vazio perfeito no passado.

Porque toda a recordação
acaba corrompendo-se no presente
e este presente já
de pouco vai servir-nos.

De pouco vai servir-nos
saber que houve um tempo em que a vida
valia o seu peso em ouro.

Porque a vida monta
a sua casa no passado.

E esta casa sombria não parece a nossa.





felipe benitez reyes
espanha