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23 maio 2023

federico garcia lorca / encruzilhada

 




 
Vento do Leste,
uma lanterna
e o punhal
no coração.
A rua
tem um tremor
de corda
em tensão,
um tremor
de enorme moscardo.
Por toda a parte
eu
vejo o punhal
no coração.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



13 novembro 2022

federico garcia lorca / gazel do amor desesperado

 




 

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
 
Mas eu irei,
inda que um sol de lacraus me coma a fronte.
 
Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.
 
O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
 
Mas eu irei
entregando aos sapos meu mordido cravo.
 
Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridade.
 
Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.
 
 
 
federico garcia lorca
romanceiro gitano e outros poemas
divã do tamarit (1936)
trad. de oscar mendes
editora nova fronteira
1985
 



05 dezembro 2021

federico garcia lorca / ao ouvido de uma jovem

 
 
Não quis.
Não quis dizer-te nada.
 
Vi em teus olhos
duas arvorezinhas loucas.
De brisa, de riso e de ouro.
Meneavam-se.
 
Não quis.
Não quis dizer-te nada.
 
 
 
federico garcia lorca
transversões
poemas reescritos em português
trad. de zetho cunha gonçalves
contracapa
2021




10 dezembro 2020

federico garcia lorca / dois marinheiros na margem

 
 
I.
 
Trouxe no seu coração
um peixe do Mar da China.
 
Às vezes vê-se passar
diminuto nos seus olhos.
 
Esquece, sendo marinheiro,
os bares e as laranjas.
 
Olha a água.
 
 
II
 
Tem a língua de sabão.
Lava as palavras e cala-se.
 
Mundo liso, mar frisado,
cem estrelas e um barco.
 
Viu as varandas do Papa
e doirados seios de cubanas.
 
Olha a água.
 
 


federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013




31 agosto 2020

federico garcia lorca / balada da água do mar



O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

– Que vendes tu, rapariga,
de turvos seios ao ar?

– Vendo, senhor, água
do mar.

– Que levas tu, jovem negro,
misturado em teu sangue?

– Levo, senhor, água
do mar.

– Essas lágrimas salobres,
onde te nascem, mãe?

– Choro, senhor, água
do mar.

– Coração, esta amargura
tão funda, donde te vem?

– Amarga muito, a água
do mar.

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.




federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013







04 junho 2020

federico garcia lorca / gazel da fuga



Muitas vezes me perdi no mar,
o ouvido cheio de flores recém-cortadas,
a língua cheia de amor e de agonia.
Muitas vezes me perdi no mar,
como me perco no coração de alguns garotos.

Não há noite que, ao dar um beijo,
não sinta o sorriso da gente sem rosto,
não há ninguém que, ao tocar um recém-nascido,
esqueça as imóveis caveiras de cavalos.

Porque as rosas buscam numa fronte
uma endurecida paisagem de osso
e as mãos do homem não têm mais sentido
que imitar raízes debaixo da terra.

Como no coração de alguns garotos,
muitas vezes me perdi no mar.
Ignorante da água, vou procurando
uma morte de luz que me consuma.




federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013









11 janeiro 2020

federico garcia lorca / ai!


O grito deixa no vento
uma sombra de cipreste.

(Deixai-me neste campo
chorando.)

Tudo se perdeu no mundo.
Não ficou mais que o silêncio.

(Deixai-me neste campo
chorando.)

O horizonte sem luz
está mordido de fogueiras.

(Já vos disse que me deixeis
neste campo
chorando.)



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013






06 setembro 2019

federico garcia lorca / meia-lua




Pela água vai a lua.
Como o céu está tranquilo!
Vai ceifando lentamente
o tremor velho do rio,
enquanto um ramo jovem
a toma por espelhinho.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013









21 junho 2019

federico garcia lorca / rosa imutável




Ao abrir pela manhã
rubra como sangue está.
O orvalho não a toca
com medo de se queimar.
Aberta à luz do meio-dia
é dura como um coral.
O sol assoma nos vidros
só para a ver fulgurar.
Quando nos ramos começam
os pássaros a cantar
e quando a tarde desmaia
nas violetas do mar,
torna-se branca, tão branca
como uma face de sal.
E logo que a noite toca
brando corno de metal
e as estrelas avançam
enquanto se esconde o ar,
no risco fino da sombra
começa-se a desfolhar.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013





20 março 2019

federico garcia lorca / o silêncio



Ouve, meu filho, o silêncio.
É um silêncio ondulado,
um silêncio
donde resvalam ecos e vales,
e que inclina a fronte
para o chão.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugènio de andrade
assírio & alvim
2013









31 março 2017

federico garcia lorca / aldeia

 
Sobre o monte nu
um calvário.
Água clara
e olivais centenários.
Pelas vielas
homens embuçados
e nas torres
cataventos girando.
Eternamente
girando.
Oh, aldeia perdida,
na Andaluzia do pranto!
 
 
 
federico garcia lorca
antologia da poesia espanhola contemporânea
trad. de josé bento
assírio & alvim
1985




05 março 2015

federico garcia lorca / gazel do amor maravilhoso


Com todo o gesso
dos campos maus,
eras junco de amor, jasmim molhado.

Com sul e chama
dos céus maus,
eras rumor de neve no meu peito.

Céus e campos
prendiam correntes nas minhas mãos.

Campos e céus
açoitavam as chagas do meu corpo.



federico garcia lorca





25 janeiro 2015

federico garcia lorca / canção cantada


No gris,
o pássaro Griffón
vestia-se de gris.
E a menina KiKiriKi
perdia a sua alvura
e forma ali.

Para entrar no gris
pintei-me de gris.
E como reluzia
no gris!

  

federico garcia lorca




27 março 2014

federico garcia lorca / é verdade



Ai, quanto trabalho me dá
querer-te como eu quero!
Por teu amor me dói o ar,
o coração
e o chapéu.

Quem compraria de mim
este cinteiro que tenho
e esta tristeza de fio
branco, para fazer lenços?

Ai, quanto trabalho me dá
querer-te como eu quero!



federico garcia lorca



30 março 2013

federico garcia lorca / ãnsia de estátua




Rumor.
Ainda que não fique nada mais que o rumor.
Aroma.
Ainda que não fique mais que aroma.
Mas arranca de mim a recordação
e a cor das velhas horas.

Dor.
Ante a mágica e viva dor.
Batalha.
Na autêntica e suja batalha.
Mas tira a gente invisível
que rodeia perene a minha casa!




federico garcia lorca


14 outubro 2010

federico garcia lorca / 1910 (intermédio)







Aqueles olhos meus de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos,
nem a feira de cinza do que chora de madrugada,
nem o coração que treme acantonado como um cavalinho do mar.

Aqueles olhos de mil novecentos e dez
viram a branca parede onde urinavam meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma luz incompreensível que iluminava pelos cantos
pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.

Aqueles olhos meus no pescoço do poldro,
no seio trespassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor, com gemidos e mãos sem vergonha
num jardim onde os gatos comiam as rãs.

Sótão onde o velho pó junta estátuas e musgos.
Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados.
No sítio onde o sonho tropeçava na sua realidade.
Ali os meus pequenos olhos.

Não me perguntem nada. Já vi como as coisas
procuram a sua direcção e encontram o seu vazio.
No ar deserto há uma dor de ausências
e nos meus olhos pessoas vestidas, sem nudez!









federico garcia lorca
nova iorque num poeta
trad. antónio moura
hiena editora
1995



26 março 2007

regresso de passeio





Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até à serpente
e as formas que procuram o cristal,
deixarei crescer os meus cabelos.


Com a árvore de mãos cortadas que não canta
e o menino com seu branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos de cabeça partida
e a água andrajosa dos pés secos.

Com tudo o que tem fadiga surda-muda
e borboleta afogada no tinteiro.

A tropeçar como o meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!








federico garcia lorca
nova iorque num poeta
trad. antónio moura
hiena editora
1995