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21 fevereiro 2013

edmund white / nirvana




(...)

Não, do que eu gostava era do budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo, dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o matava nunca.
Sentia a necessidade de me libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento. Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem para zero.




edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
dom quixote
1996



03 julho 2008

edmund white

a vida privada de um rapaz




(...)


Não, do que eu gostava era do budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo, dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o matava nunca.
Sentia a necessidade de me libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento. Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem para zero.




edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
publicações dom quixote
1996







23 agosto 2007

paris, os passeios de um flâneur









(…)


Era no Hôtel de Lauzun que Le Club des Hachichins realizava as suas reuniões. Aí, um grupo de homens ligados às letras e às artes — incluindo os escritores Balzac, Gautier e Baudelaire e os pintores Édouard Manet, Honoré Daumier e Constantin Guys — reunia-se com umas quantas mulheres para passar longas noites em que ouviam música e... comiam haxixe (porque, pelos vistos, o haxixe era servido sob a forma de uma geleia esverdeada), O anfitrião, Fernand Boissard, um pintor menor, era rico (sem depender de heranças) e vivia no principal e principesco andar do Hôtel, onde tinha um clavicórdio, ao que parece decorado com pinturas de Watteau, e elegantes peças de mobiliário que casavam na perfeição com as paredes e as portas pintadas, esculpidas e douradas. Boissard costumava tocar violino quando estava pedrado; ou então contratava músicos para o acompanharem num trio de Beethoven ou Mozart.

Uma das visitas da casa, Paul Guilly, lembra que Boissard

...era um homem que vivia para o refinamento e a volúpia e que tinha verdadeiro horror aos convidados importunos ou maçadores. O seu maior prazer era receber e, por isso mesmo, seleccionava as visitas com todo o cuidado; não se podia aparecer sem convite, mas, a partir do momento em que éramos admitidos no círculo íntimo, podíamos fazer ou dizer aquilo que nos apetecesse. Rodeava-se de artistas que partilhavam os seus gostos e de belas raparigas que não eram obtusas, nem, em abono da verdade, completamente ignorantes das questões espirituais ou artísticas. Acima de tudo, Boissard adorava os jantares com amigos sinceros, incondicionais, essas noites íntimas em que passávamos horas debatendo os significados de um paradoxo entre um pouco de música de cravo e as estrofes de um poema.

Théophile Gautier deixou-nos um relato extremamente colorido da sua primeira participação numa das reuniões mensais do Club des Hachichins. Nesse texto, Gautier recorda que estava uma noite de breu e um nevoeiro muito cerrado — uma verdadeira tela de algodão que esbatia todos os objectos e que só a luz das lanternas ou das janelas conseguia penetrar. Além disso, caía uma chuva fria, de tal forma que o cocheiro de Gautier mal conseguia enxergar a placa de mármore que indicava o nome do Hôtel. Uma velha criada abriu-lhe a pesada porta e, com um dedo magro, indicou-lhe o caminho.

De súbito, o escritor viu-se diante de uma daquelas escadarias gigantescas construídas na época de Luís XIV (tão gigantesca, de facto, que uma casa moderna caberia toda lá dentro com a maior facilidade, diz Gautier). A estátua de uma quimera egípcia erguia uma única vela. Pensando nos cortesãos do século XVII com as suas rendas e perucas, Gautier concluiu que estava pessimamente vestido para a ocasião. No andar de cima, Gautier tocou a uma sineta e logo penetrou numa ampla sala, iluminada apenas numa das extremidades; nesse instante, teve a clara sensação de que acabara de recuar dois séculos.

Um médico encarregava-se do haxixe. Aparecia com uma bandeja carregada de geleia verde e os convidados, depois de terem comido a dose a que tinham direito, passavam uns aos outros as chávenas de café turco. Tendo começado com a última coisa que se serviria num jantar francês normal, sentavam-se depois a uma mesa a fim de degustarem uma refeição mais convencional. Os pratos e os copos, contudo, eram estranhos, exóticos — pratos de serviços diferentes (da China, do Japão, da Saxónia), copos de cristal de Veneza. Sob a influência da droga, a água sabia a vinho e a carne a framboesas. Com a refeição já perto do fim, Gautier sentiu que estava a enlouquecer. As alucinações que, durante o jantar, se tinham apossado dele em vagas intermitentes, converter-se-iam, durante o resto da noite, numa parte permanente, embora sujeita a flutuações constantes, da sua percepção.

Todos os sinais de quem está totalmente, delirantemente, ou mesmo perigosamente pedrado, e que o meu caro leitor tão bem conhece, eram já algo de familiar para os frequentadores e residentes do Hôtel de Lauzun mais dados às artes e às letras. Rompiam num riso incontrolável e, escassos segundos depois, um medo inexprimível apossava-se deles, logo seguido de um plangente amor a toda a humanidade ou da total imersão num livro de gravuras. Os movimentos tornavam-se lentos e viscosos, o tamanho dos quartos expandia-se de uma forma brutal, um sentido do épico e do magnificente distorcia a atmosfera da reunião, para logo ser substituído por um olhar que descobria com repulsa os grotescos rostos dos outros hachichins. Tudo era tão distorcido — e tão apelativo para a imaginação — que não admira que Gautier tivesse usado a palavra «fantasia» para descrever uma tal noite. Saberia Gautier (por certo sabia) que uma fantasia era também uma composição musical de forma livre aberta ao improviso? Ou que, em Marrocos, uma fantasia era uma gala equestre e militar que envolvia espectaculares investidas de sucessivos esquadrões de cavalaria dotados de inexcedíveis talentos na arte da equitação, os homens vestidos com figurinos de veludo debruados a ouro e mantos esvoaçantes, montando magníficos garanhões, acompanhados por uma banda e por tambores e até por danças, e com toda a cena envolta no nevoeiro causado pelo fumo das fogueiras onde se preparava o banquete que se seguiria ao espectáculo?

Como seria de esperar, Balzac inspeccionou com toda a atenção a geleia verde e chegou mesmo a pegar nos diversos apetrechos, provenientes do Próximo Oriente, que se destinavam ao consumo da droga, e, como era seu timbre, fez todas as perguntas do género «recolha de informações» — mas não provou nem um miligrama do haxixe, receando perder o controlo da sua vontade de aço ou da sua influenciável mente. Provavelmente, o Clube dos Consumidores de Haxixe não se reuniu mais de oito ou nove vezes. Também não há nenhuma prova de que o próprio Baudelaire tenha experimentado a droga mais do que uma ou duas vezes; de qualquer modo, o poeta considerava o vinho preferível ao haxixe, já que o vinho, dizia ele, era mais «democrático» porque mais barato e mais facilmente disponível (tal e qual como Oscar Wilde, Baudelaire era simultaneamente um «socialista» e um snob estético). Para ser mais exacto, Baudelaire louvava tanto o vinho como o haxixe por promoverem «o excessivo desenvolvimento poético da humanidade», mas não deixava de acentuar que o vinho exalta a vontade, o haxixe aniquila-a. O vinho é um sustento para o corpo, o haxixe uma arma pata o suicídio. O vinho torna as pessoas boas e amistosas. O haxixe isola, O vinho significa trabalho duro, ao passo que o haxixe é um sinónimo de preguiça. Por que estranha razão há-de alguém suportar a maçada que é trabalhar, lavrar a terra, escrever, enfim, fazer o que quer que seja, se, com uma fumaça, pode alcançar o paraíso? O vinho é para as pessoas que trabalham e que merecem bebê-lo. O haxixe pertence à categoria dos prazeres solitários; foi feito para o ocioso infeliz, O vinho é útil, produz resultados frutíferos. O haxixe é inútil e perigoso.

É possível que a imaginação de Baudelaire fosse tão espicaçada pela atmosfera do Hôtel de Lauzun como pelo próprio haxixe. Ele e Gautier celebravam a história segundo a qual a palavra haxixe estaria ligada à palavra assassino; no seu conto Le Club des Hachichins, Gautier conta mesmo a história do déspota «oriental» que transformou os seus homens em saqueadores (ou assassinos) desvairadamente intrépidos e sem o menor medo da morte, mantendo-os constantemente pedrados com haxixe.

Ou talvez Baudelaire tivesse sido estimulado pelos seus companheiros e muito em particular por uma surpreendente jovem conhecida como Pomaré (de seu verdadeiro nome Elise Sergent) que praticava o travestismo. «La Pomaré», como lhe chamava Baudelaire, vestia-se como um «gentleman» (o poeta usava a palavra inglesa), com gravata branca, fraque preto, calças pretas e sobretudo branco. As mãos enluvadas de branco costumavam empunhar uma bengala. A Pomaré era, segundo o poeta, um bom camarada e óptima companhia — excepto quando dava com uma bourgeoise num restaurante. Se, por exemplo, visse a mulher de um notário sentada a uma mesa com o marido, tinha um acesso de fúria e rompia a cantar a sua canção favorita — que falava de um general do exército italiano que estava de cócoras a coçar os tomates, o que levava uma elegante virgem a dizer-lhe que ele não passava de um cara de cu... A Pornaré era alta e esbelta, com um peito raso, um dito espirituoso sempre na ponta da língua e, quando lhe dava para isso, era tão frontal, tão terra-a-terra, que Baudelaire lhe chamava «o meu camarada das ancas largas». A Pomaré vivia no Hôtel de Lauzun e Baudelaire desejava-a (ou, pelo menos, excitava-o a ideia de uma mulher tão sem pruridos nem inibições) tanto quanto a estimava.

(…)









edmund white
paris, os passeios de um flâneur
tradução josé vieira de lima
asa editores
2004