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09 agosto 2023

charles bukowski / advertência

 
 
os cisnes afogam-se em água de esgoto,
retirem os avisos,
testem os venenos,
arredem a vaca do touro,
a peónia do sol,
arranquem da minha noite os beijos de alfazema,
mandem as sinfonias para o meio da rua
como pedintes,
afiem as unhas,
flagelem as costas dos santos,
atordoem sapos e ratos para o gato,
queimem quadros deslumbrantes,
mijem na madrugada,
o meu amor
está morto.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



24 março 2023

charles bukowski / lifedance

 



 

a linha que divide o cérebro e a alma
é afectada de diversas formas através da
experiência –
alguns perdem completamente a mente e tornam-se
                                                        apenas alma:
lunáticos.
alguns perdem toda a alma e tornam-se apenas mente:
intelectuais.
alguns perdem ambas e tornam-se:
aceites.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 
 


22 setembro 2021

charles bukowski / amor

 
 
já vi velhos casais
sentados em cadeiras de baloiço
um diante do outro
sendo congratulados e celebrados
por estarem juntos há cinquenta ou sessenta
anos
que teriam
tanto tempo atrás
aceitado qualquer outra
coisa
mas o destino
o medo e
as circunstâncias
uniram-nos,
e enquanto lhes dizemos o
quão fantásticos são
nesse amor gigante e duradouro
somente eles
sabem na verdade
mas não nos podem dizer
que desde o seu primeiro
encontro
em diante
nada teve tanto
significado assim
como
esperar agora pela
morte.
é mais ou menos a mesma
coisa.
 
 
 
 
 
charles bukowsky
sobre o amor
trad. de valério romão
alfaguara
2021

 





03 agosto 2021

charles bukowski / está qualquer coisa a bater à porta

 
 
uma grande luz branca amanhece sobre o
continente
enquanto adulamos as nossas tradições falhadas,
muitas vezes matamos para as preservar
ou às vezes matamos só por matar.
parece não ter importância: as respostas balouçam
fora do alcance,
fora de mão, fora da mente.
 
os líderes do passado eram insuficientes,
os líderes do presente não estão preparados.
enroscamo-nos nas nossas camas à noite e esperamos.
é uma espera sem esperança, uma
oração pedindo graças imerecidas.
 
tudo se parece cada vez mais com o mesmo velho
filme.
os actores são diferentes mas o enredo é o mesmo:
absurdo.
 
devíamos ter aprendido ao observar os nossos pais.
devíamos ter aprendido ao observar as nossas mães.
eles não sabiam, eles próprios não estavam
                                               preparados
para ensinar.
éramos demasiado ingénuos para ignorar os seus
conselhos
e agora adoptámos a sua
ignorância como
nossa.
somos eles, multiplicados.
somos as suas vidas não saldadas.
estamos falidos
de dinheiro e
de espírito.
 
há algumas excepções, claro,
mas estas oscilam
sobre o precipício
e a qualquer momento
cairão para se juntar
a nós,
os delirantes, os derrotados, os cegos e os tristemente
corruptos.
 
uma grande luz branca amanhece sobre o
continente.
as flores abrem-se cegamente no vento fétido,
enquanto o nosso século XXI,
grotesco e em última instância
inabitável,
se esforça por
nascer.
 
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





 

16 novembro 2020

charles bukowski / é engraçado, não é?

 
 
mudando de canal na tv
infinitamente
passas
por todas as caras
mas nunca encontras
a cara certa
 
só caras
 
é um desdobramento de
terror
flick
flick
flick
 
mais
de
menos
 
caras
que dizem
aquilo
com que
foram
preenchidas
 
como
é que entraram
naquele
vidro?
 
quem
as pôs
ali?
 
não há
nada
mais?
 
um
mundo a ter?
um
mundo a salvar?
 
essas não são
as minhas pessoas
 
para onde foram
as minhas
pessoas?
 
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





 

09 julho 2020

charles bukowski / aviso



sobre a tua boca vermelha e escurecida gritam pássaros
                                                                      selvagens
e aquários de peixes nadam nas suas selvas,
uma manhã de China, um meio-dia ressequido
                                               de machados e
bruxas;
anseias por um sol infecto de homens e madeixas de
fibra a chamar o meu nome;
atenção, não sou o tontinho do teu marido,
sou o teu amante tonto,
e de todos os teus amantes tontos
o último aqui.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







13 dezembro 2019

charles bukowski / o milagre



Trabalhar com uma forma de arte
não significa
mandriar como uma ténia
de barriga cheia,
nem justifica grandeza
ou ganância, nem seriedade
a toda a hora, creio antes
que é um apelo aos melhores homens
nos seus melhores momentos,
e quando eles morrem
e outra coisa não morre,
assistimos ao milagre da imortalidade:
homens que chegaram como homens
partiram como deuses –
deuses que sabemos que aqui estiveram,
deuses que agora nos permitem continuar
quando tudo o mais nos diz para parar.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





29 agosto 2019

charles bukowski / facto




poesia cautelosa
e pessoas
cautelosas
duram
apenas o suficiente
para
morrer
em segurança.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







26 março 2019

charles bukowski / vitória




as promessas que fizemos
honramo-las
e
quando formos cercados
pelos cães das horas
nada
nos poderá ser confiscado
a não ser
as nossas vidas.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







01 janeiro 2019

charles bukowski / que podes fazer?




há sempre alguém que nos corte
a madeira,
que fale de
Deus,
há sempre alguém
que nos mate a carne,
que desentupa a sanita,
há sempre alguém para te
enterrar,
há sempre animais com
olhos lindos,
e há sempre homens
como o Stanley,
inclinados sobre mim
e dizendo numa voz doce:
«sabias que o Saroyan
no fim de carreira
tinha pessoas
a escrever por ele e que ele
lhes dava vinte e cinco
por cento?»
isto era para me fazer sentir
original,
para me fazer sentir bem por ser um escritor
faminto quando as rejeições
chegavam em números recorde.
 não me fez sentir
melhor.

há sempre alguém ou algo
que faz
com que te sintas pior.

há sempre o cão morto
na auto-estrada.
há sempre um nevoeiro cheio
de lâminas
afiadas.

há sempre Cristo bêbado
na taberna com unhas
sujas.




charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018








28 novembro 2018

charles bukowski / uma definição




o amor é uma luz
a correr de noite pelo nevoeiro

o amor é uma carica de cerveja
pisada a caminho
da casa de banho

o amor é a chave de casa perdida
quando estás bêbado

o amor é o que acontece
uma vez a cada dez anos

o amor é um gato esmagado

o amor é o velho ardina
na esquina
que já desistiu

o amor é o que tu pensas que a outra
pessoa destruiu

o amor é o que desapareceu
na época dos vasos de guerra

o amor é o telefone a tocar
a mesma voz ou outra voz
mas nunca a voz
certa

o amor é traição
o amor é a incineração
de vagabundos num beco

o amor é ferro
o amor é a barata
o amor é a caixa de correio

o amor é a chuva no telhado
de um velho hotel
em Los Angeles

o amor é o meu pai num caixão
(o teu pai que te odiava)

o amor é um cavalo com uma pata
partida
a tentar levantar-se
perante uma assistência
de 45 000 pessoas

o amor é o modo como fervemos
como a lagosta

o amor é tudo aquilo que dissemos
que não era

o amor é a pulga que não consegues
encontrar

e o amor é uma melga
o amor são 50 granadeiros

o amor é uma arrastadeira
vazia

o amor é um banco de bar vazio

o amor é um filme do desastre de Hindenburg
a encarquilhar aos pedaços
um momento que ainda grita

o amor é Dostoiévski diante
da roleta

o amor é o que rasteja
pelo chão

o amor é a tua mulher a dançar
nos braços de um estranho

o amor é uma velha
a roubar um pedaço de
pão

e o amor é uma palavra
usada demasiadas vezes e
demasiado
cedo.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018








02 maio 2016

charles bukowski / rapariga nas escadas rolantes



quando vou a entrar nas escadas rolantes
um jovem rapaz e uma adorável rapariga
posicionam-se à minha frente.
o vestido dela é bem justo ao corpo e
ao colocar um pé à frente e outro atrás, sobre as escadas
o traseiro dela assume os seus contornos
o rapaz olha para todo o lado, claramente inquieto.

ele olha para mim.
eu olho para outro lado qualquer.

não, rapaz, eu não estou a olhar
não estou a olhar para o traseiro da tua miúda.
não te preocupes, eu respeito-a a ela e respeito-te a ti.
na verdade, eu respeito tudo; as flores que crescem,
as jovens mulheres, as crianças, todos os animais,
o nosso precioso e complicado universo, tudo e todos.

o jovem sossega e eu fico contente por ele.
sei o seu problema: a miúda tem uma mãe e um pai e talvez um irmão
e sem dúvida uns quantos familiares e ela gosta de
dançar e flirtar e de ir ao cinema e por vezes ela mastiga
pastilha elástica e fala ao mesmo tempo e ela diverte-se com
programas de televisão completamente parvos e ela pensa
que é uma actriz e ela nem sempre está nos seus melhores dias
e ela tem um temperamento terrível e às vezes ela quase
fica doida e ela fala horas e horas ao telefone e ela quer ir
para a europa no verão e ela quer ter um mercedes
e ela está apaixonada pelo Mel Gibson.
e a mãe dela é uma cabra de uma bêbada e o pai
secretamente odeia pretos vermelhos e amarelos
e ela ressona e ela é muitas vezes fria na cama e ela
tem um guru, um tipo que conheceu cristo no deserto em 1998
e ela quer fazer skydive e ela está desempregada e ela
fica com dores de cabeça sempre que ingere açúcar ou queijo.

no cimo das escadas rolantes, vejo o rapaz a pôr
a sua protectora mão na anca dela
pensando que é um felizardo
pensando que é um "macho"
pensando que mais ninguém no mundo tem aquilo que ele tem.
e ele está certo, terrivelmente terrivelmente certo,
com o braço em volta daquele emplastro morno
de intestinos
bexiga,
rins,
pulmões,
sal,
enxofre,
dióxido de carbono
e
catarro.

lotsa
luck



charles bukowski
tradução de júlio mota



27 janeiro 2014

charles bukowski / uma nova guerra




e pensar que, depois de desaparecer,
haverá mais dias para os outros, outros dias,
outras noites.
cães a passear, árvores oscilando
ao vento.

não deixarei muita coisa.
algo que ler, talvez.

um rebelde na estrada
devastada.

Paris às escuras.


charles bukowski 
a new war
trad. rui manuel amaral 
black sparrow press
1997