Mostrar mensagens com a etiqueta antónio barbedo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta antónio barbedo. Mostrar todas as mensagens

20 junho 2023

antónio barbedo / as vozes dentro da cabeça

 
 
 
…all the fury, the anguish, the remors,
the voices, voices, voices, voices…
                   
                                                MALCOLM LOWRY, Lunar Caustic


 
1. LUNA PARK
 
Quando subiu a escada de corda sabia que. Do outro lado pode haver uma barra, ou não. Do outro lado pode haver a mão à espera. Lançou-se no trapézio, entre aplausos e música.
Quando caiu na pista ainda respirava. Nas espáduas despontava uma ligeira plumagem. Como se fossem asas.
 
2. E UMA MOEDA NO BOLSO
 
Da arte de cultivar a rosa ele sabia.
Quando fechou as persianas, a porta, eram as primeiras horas da manhã. Não deixou bilhetes, número de telefone, fotografias. Um casal encontrou-o uns dias depois nas dunas. Morto, com um tiro na cabeça.
Na autópsia descobriram, incrustada no cérebro, em lugar da bala, uma viçosa flor vermelha.
 
3. MÃE
 
Tinha deixado escrito, a letra miúda, o aparo de ouro, a tinta violeta, no caderno de viagem – depois do deserto é o mar. quando o rasto na areia húmida se dividiu, espantando as gaivotas. E caminhou para a água, onda após onda, na memória do exílio, até à voragem.
 
4. VIAJANTE DE MUITOS ROSTOS
 
Quando encontrou o caçador de instantes a luz reflectiu-se na lenta da câmara fotográfica. Apontada com cuidado, disparando guardava imagens, não pensamentos nem afectos, instantâneos. Como um tiro numa emboscada em áfrica.
A luz queimava o olhar. O duplo estava próximo, focava a máquina. Devagar, sem ruído, arrastou-se para a sombra. Apertou a navalha no bolso. Alguém murmurava: - morre-se quando a imagem da retina encontra a imagem da película.
 
5. SALMO
 
Ela apagou a luz e queimou o incenso. Disse: - Para onde ir longe do teu espírito, como ocultar-me da tua face?
Quando ele chegou descobriu as sete lâminas dispostas sobre a mesa. Uma vela na penumbra alumiava-lhe o corpo coberto de fios. Da vulva aos mamilos armadilhado, o cronómetro ao ritmo do pulso, a granada sobre o peito. Escutou no clamor da música a voz indistinta – alma, arma, ama.
 
6. O CADERNO QUEIMADO
 
Tinha comido as fezes, bebido mijo: fodera uma cabra. Quando atravessou o rio, rasgou os pulsos, cobriu-se de terra. Leu: – se tudo está escrito desaprender a falar é o que resta.
Acordou. Fez a barba, deu lustro aos dentes. Lá fora as primeiras vozes, sirenes. E o coração apodrecendo contra as grades, contra.
 
 
 
antónio barbedo  
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991



28 julho 2015

antónio barbedo / praia do cais

  

Depois do asfalto é areia. A seguir
o cais. Encontras o trilho, carris velhos.
Um comboio ao entardecer, Senhora da
Hora, Trindade. Foi outro verão, não sei porque
te lembro agora. O vento solta os toldos
desertos. A pequena  luz do navio esmorece. Um cão
corre na praia  com o livro nos dentes.


antónio barbedo  
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003



24 novembro 2012

antónio barbedo / alexitimia




A dor cessa pelas quatro da manhã.
Acorda mais tarde com
vómitos, borras de café. Em maca,
num quarto diferente. O sangue AB negativo.
Agulha descartável, máscara
de oxigénio. A luz de presença

torna legível – uma existência sem
afectos, a poesia sem  metáforas



antónio barbedo  
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003