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15 dezembro 2020

adolfo casais monteiro / claro e simples

 
 
Tudo é claro para quem
olha sempre no sentido
oposto àquele onde está
aquilo que não é claro.
 
Tudo é simples para quem
adia sempre o momento
de olhar de frente a ameaça
de quanto não tem resposta.
 
Tudo é nada para quem
descreu de si e do mundo
e de olhos cegos vai dizendo:
Não há o que não entendo.
 
 
adolfo casais monteiro
voo sem pássaro dentro
1954




 

13 junho 2017

adolfo casais monteiro / a vida inteira



Entrega o teu coração ao dia de hoje
como se ele fosse em si a vida inteira.
Entrega o teu destino de olhos cegos:
amanhã é água profunda a cuja espelho
risos e lágrimas de hoje não toldaram.

O coração verdadeiro não tem guia.


adolfo casais monteiro
simples canções da terra
1949



29 abril 2017

adolfo casais monteiro / o paraíso perdido



Meus paraísos perdidos!

Este entreter a olhar-me
Em espelhos que enganam
que feitiço mo impõe?

Devolvei-me os meus brinquedos…
  

adolfo casais monteiro
confusão
1929




07 fevereiro 2016

adolfo casais monteiro / vem vento, varre!



Vem vento varre
Sonhos e mortos.
Vem vento, varre
Medos e culpas.
Quer seja dia
Quer faça treva,
Varre sem pena,
Leva adiante
Paz e sossego,
Leva contigo
Nocturnas preces,
Presságios fúnebres,
Pávidos rostos
Só cobardia.



Que fique apenas
Erecto e duro
O tronco estreme
Da raiz funda.
Leva a doçura,
Se for preciso:
Ao canto fundo
Basta o que basta.


Vem vento, varre!


adolfo casais monteiro
noite aberta aos quatro ventos
inquérito
1959




10 setembro 2015

adolfo casais monteiro / profecia



Ai de quem sonha o futuro
de olhos fitos no passado!
Ai de quem vive abraçado
à sua estátua de bronze!
Ai daquele que já sabe
por onde abrir o caminho!

O seu destino tem certo:
que tudo lhe há-de saber
a comida já comida
que nada pode viver
sem lhe parecer já vivido


adolfo casais monteiro
sempre e sem fim
1937



23 junho 2014

adolfo casais monteiro / poeta



Poeta: uma criança em face do papel.
Poema: os jogos inocentes,
invenções de menino aborrecido e só.
A pena joga com palavras ocas,
atira-as ao ar a ver se ganha o jogo;
os dados caem: são o poema. Ganhou.

  

adolfo casais monteiro



28 julho 2013

adolfo casais monteiro / ode ao tejo


Ode ao Tejo
e à memória de Álvaro de Campos
  

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa-
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça.
"Olá Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei.

Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa
    em que Fernando Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.

Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens, imagem muito minha do terno,
porque és real e tens forma, vida ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!

O meu mal é não ser dos que trazem a beleza metida na algibeira
e não precisam de olhar as coisas para as terem.
Quando não estás diante dos meus olhos, estás sempre longe.
Não te reduzi a uma ideia para trazer dentro da cabeça,
e quando estás ausente, estás mesmo ausente dentro de mim.
Não tenho nada, porque só amo o que é vivo,
mas a minha pobreza é um grande abraço em que tudo é sempre virgem,
porque quando o tenho, é concreto nos braços fechados sobre a posse.
Não tenho lugar para nenhum cemitério dentro de mim...
E por isso é que fiquei a pensar como era grave ter passado sem te olhar, ó Tejo.

Mau sinal, mau sinal, Tejo.
Má hora, Tejo, aquela em que passei sem olhar para onde estavas.
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
levado nos teus braços,
debruçado sobre a cor profunda das tuas águas,
embriagado do teu vento que varre como um hino de vitória
as doenças da cidade triste e dos homens acabrunhados...
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
para me lavar do que deve andar de impuro dentro de mim,
para os meus olhos beberem a tua força de luxo indomável,
para me lavar do contágio que deve andar a envenenar-me
dos homens que não sabem olhar para ti e sorrir à vida,
para que nunca mais, Tejo, os meus olhos possam voltar-se para outro lado
quando tiverem diante de si a tua grandeza, Tejo,
mais bela que qualquer sonho,
porque é real, concreta, e única!

  

adolfo casais monteiro



19 maio 2013

adolfo casais monteiro / castelos tombados


  
Altos castelos tombados
De sonhos desiludidos
Arquitecturas tamanhas
Tecidas por mãos estranhas
Juncam o chão.

Nasce outro dia
Sobre as ruínas de há pouco.
E no tempo
Essas ruínas tão grandes
De sonhos tão desmedidos
Fazem apenas figura
Dum grão de areia sem peso
Leve ao acaso do vento...



adolfo casais monteiro
confusão
1929


06 janeiro 2012

adolfo casais monteiro / a palavra impossível





Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere.





adolfo casais monteiro
noite aberta aos quatro ventos
inquérito
1959.