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03 julho 2014

ângela marques / circulares


II

havia um combóio de ti que me levava
de veneza a paris
partia todas as noites de um cais azul
quando me reencontrava com fotografias velhas
e pedaços de jornal esquecidos no banco de jardim
reconheci o teu nome mesmo que a música
não trouxesse rastos de perfume da beira
onde os rostos te ficaram tão na memória
debruço-me sobre os teus olhos até
o vento me devolver às águas
e ao fundo há uma catedral de velas
que se confundem no horizonte
assim te leio postais molhados
enquanto procuras o cheiro de roupa lavada
e um pedaço de sol em cima da cómoda
descubro que são nossas as gotas de mar
penduradas naquela janela verde quando
o riso nos vem aos lábios
o rio atravessa infinitamente este barco
podemos abrir as mãos de ternura
afastar as cortinas da solidão
e acenarmos à i1ha do sul

amanhã chegaremos aí

Porto, 8-11-81



ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985






08 julho 2013

ângela marques / circulares


I

Vem, que os sinos não tocaram
e ainda fez pouco tempo desde que me vesti de orquídeas,
sinto a folha nítida à flor da pele
e tenho o corpo entorpecido da chuva.
Isto não é medo dos barcos, mas antes um olhar arrefecido
por um momento de silêncio são horas de voltarmos ao cais azulado
e fazermos as despedidas de verdade.
Vem, que te encontrarei em qualquer pedaço de rua,
ou nos poços que povoam a cidade: é de ti que falarei
a vida inteira até quando abrir o jornal e encontrar um velho a sorrir,
hão-de subir-me as lágrimas ao pescoço e correrei à aldeia de terra batida,
no caminho levo águas e umbrais para que as gaivotas se não sintam sós:
então será um desfiar de rosários eternos,
como o choro de minha mãe. Quando chegar
todos estarão em fila com os olhos pregados no horizonte
(será inútil lembrar-lhes os heróis antigos)
à espera dos meus sonhos que ouviram contar.
É por isso que as casas são de granito
e a lenha não chega para tantas ilusões.
Terei que ir devagar e pensar na janela que ficou do lado das sombras,
terei que resolver as entranhas dos mortos para descobrir uma rosa
terei que fechar a porta com cabelos loiros
e então dizer-lhes
que não tenho mãos.
É quando os homens vão gritar pelos espelhos
e as mulheres ajoelhar frente ao sol,
mesmo assim conseguirei rodear-me de tojo,
fingir que tenho o mar ali ao virar das cruzes,
que os amigos não me abandonaram.
Será supremo o trigo quente e o sabor dos frutos
como se tivesse comigo um homem para afagar os olhos, ou então chorar.
Viverei das cores que me arrepiam os sentidos
porque isso bastará para curar cicatrizes, a face esfregá-la-ei com urtigas
para que os lábios não tenham tempo de secar.
Com a maior das solenidades cairei por terra:
— que me atirem ao vento para poder finalmente voar
e amar sem grilhetas nos gestos
Mas a primavera ainda não voltou,
Vem, que tenho muitas viagens por fazer.

Porto, 1980



ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985



09 agosto 2010

ângela marques / circulares





VIII

a casa que sonhei era branca, muito rente ao chão,
e as janelas de madeira amparavam-me os sonhos,
traziam histórias estranhas e levavam-me pelo mundo:
corria de lyon a paris, passava por veneza
para lembrar aquele degrau onde me sentei feliz
e voltava à mesa com a toalha posta de linho
uma malga de leite
um naco de pão
o teu sorriso quente
a festa começava quando as mãos se encontravam
e partiam a descobrir os recantos de nós
a viagem era louca até ao chão
os corpos rolavam envolvidos em água
até que o teu cheiro se vertia pelo soalho

era tudo tão simples na casa que sonhei!



Porto, 5-4-85





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