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13 janeiro 2024

alex susanna / minotauro

 



 

 

Sobre nós cai a noite
e nada podemos fazer para nos determos
um ao outro:
tudo desliza suavemente, em silêncio
– mãos, vestidos, palavras –
e abraçamo-nos profusamente
nunca sabendo, no entanto,
quem é a praia e quem a onda,
quem é o vento e quem a casa,
quem é o ramos e quem a neve,
quando precisamente é o momento
em que tudo somos ao mesmo tempo.
 
 
àlex susanna
les anelles dels anys
tradução egito gonçalves
hífen 9 stembro 1995
cadernos semestrais de poesia
poesia hispânica
1995
 




11 maio 2014

àlex susanna / amis



Depois de alguns anos de pastagem             
sabes finalmente quais são
os teus companheiros de encerro,
quero dizer, de geração:
são poucos, cada vez menos
mas são mais próximos
aqueles que restam.
 
Tranquilizem-se, no entanto,                                    
não vos citarei, meus amigos:
receio que nomeados se volatilizem
- como acontece com certas bruxarias -
e tal coisa far-me-ia muita pena.
Sei quem vocês são, vocês também
- isso me basta.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




06 abril 2014

àlex susanna / visões




Da janela oval do avião
levas os olhos à estranha paisagem
onde bem poderias passear,
tens dificuldade em reconhecer
o mais breve caminho que se ofereça,
tornado ruga milenária
ou vazio antediluviano.                             
Tudo parece tão longínquo e disforme
que decides ignorá-lo.
 
Acontece tanto na vida como na poesia:
quando estas se elevam ou afastam demais
daquilo que te é familiar
fazem com que percas o interesse
porque preferes vivê-las de baixo,
do nível zero, esse
onde as coisas são como são:
caminhar exige sempre um mínimo de esforço.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




03 dezembro 2013

àlex susanna / programa dos festejos



Fechemo-nos em casa
desliguemos o telefone,
destruamos o império
da televisão
jantemos perto da lareira,
ouvindo, calando;
olhamos os quadros
que souberam acompanhar-nos,
ouvimos também alguma
música esquecida,
e então, lentamente,
podemos adormecer
nos braços um do outro
que um mesmo sonho
nos leve para longe:
que nunca nada nem ninguém
ouse interferir                           
nesta nossa frágil
mas plena felicidade:
construamos com ela                                                           
um bastião inexpugnável.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




19 março 2013

àlex susanna / recordação de lisboa




Como me agradam estas vozes cansadas,
escuras, pesadas, calmas como bois,
grávidas de luto e de saudade
e ao mesmo tempo de uma fúria contida,
centrada na aspereza da glote,
vozes que parecem vir de muito fundo,
de se terem arrastado por muitas ruas
repartidas entre o desejo e o esquecimento,
vozes que vão aquecendo pouco a pouco,
engrossando, empastando e cozendo
até coalhar de todo consigo mesmas:              
são como um grande poço quase seco
de onde é difícil tirar água no início,
mas quando nos chega a sua fragância,
que jorro de vida não supura
e como ficámos impregnados e húmidos!
 
Isso podem ser canções de taverna
ou os versos de algum velho queixoso
que ainda tem vontade de escrever.




àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves



17 maio 2012

àlex susanna / esgotos





Este rio poluído
onde se despejam tantos resíduos
bem se parece com a nossa alma,
com a ligeira cambiante
de que cada um é o único a saber
a massa enorme de dejectos
que tal corrente em nós transporta.




àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




01 novembro 2009

àlex susanna / natureza morta








Livros repousam sobre a mesa,
óculos, um caderno, um lápis:
os instrumentos do escritor que consumiu
o seu tempo a ler, a pensar, a escrever
tentando estruturar algum breve poema
onde entrar, repousar, retirar-se talvez
na ponta final de um dia atribulado...


Muito antes, erigiam-se templos
e até mesmo grandes catedrais:
hoje, quando a noite chega, contentamo-nos
com um abrigo, uma qualquer arcada
onde evitar esse excesso de intempérie
e enganar o frio que nos corrói os ossos.







àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves





12 março 2007

malas sem atenção





Malas sem atenção: assim parecem
ser a maioria dos poemas.
Malas abandonadas num aeroporto
que ninguém busca ou reclama.
Malas que não se podiam deixar
e por isso mesmo se deixam,
quando nos avisam pelo altifalante:
"... por motivos de segurança
não deixem abandonada qualquer mala
nem se aproximem se virem uma".


Isto é, por sua vez, a leitura de um poema:
o encontro inesperado de um mundo
metido e comprimido num pequeno
concentrado de tempo - coisas de vestir,
vários objectos de companhia,
outros de primeira necessidade,
roupa interior muita, até demais,
e tudo, em geral desordenado, revolvido
contra não sabemos quê ou quem,
mas formando uma estranha unidade -,
o envolvimento e as entranhas de um corpo
desconhecido, uma segunda pele
que gostamos de usar de vez em quando,
- mudados, revestidos com outros olhos -,
ou então nós mesmos mais que nunca
- finalmente despidos do que sobra
e na nossa nudez reencontrados.








àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves