15 outubro 2016

herberto helder / tríptico



     III

     Todas as coisas são mesa para os pensamentos
     onde faço minha vida de paz
     num peso íntimo de alegria como um existir de mão
     fechada puramente sobre o ombro.
     — Junto a coisas magnânimas de água
     e espíritos,
     a casas e achas de manso consumindo-se,
     ervas e barcos altos — meus pensamentos criam-se
     com um outrora lento, um sabor
     de terra velha e pão diurno.


     E em cada minuto a criatura
     feliz do amor, a nua criatura
     da minha história de desejo,
     inteiramente se abre em mim como um tempo,
     uma pedra simples,
     ou um nascer de bichos num lugar de maio.


     Ela explica tudo, e o vir para mim —
     como se levantam paredes brancas
     ou se dão testas nos dedos espantados das crianças
     — é a vida ser redonda
     com seus ritmos sobressaltados e antigos.


     Tudo é trigo que se coma e ela
     é o trigo das coisas,
     o último sentido do que acontece pelos dias dentro.
     Espero cada momento seu
     como se espera o rebentar das amoras
     e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
     — E o resto é uma altura oculta,
     um leite e uma vontade de cantar.




herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996





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