30 outubro 2016

bernardo soares / diário lúcido



A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e de que só o primeiro acto se representou.

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.

O prémio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.

Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como o não teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que, aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a respeito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre sofrer desilusões com eles — tão complexo e subtil é o meu destino de sofrer.

Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim.

Como nunca descobri em mim qualidades que atraíssem alguém, nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído por mim. A opinião seria de uma modéstia estulta, se factos sobre factos — aqueles inesperados factos que eu esperava — a não viessem confirmar sempre.

Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável, não tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela simpatia que a atrai quando ela não seja patentemente merecida; e para o que em mim merece piedade, não a pode haver, porque nunca há piedade para os aleijados do espírito. De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém.

Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto sem lhe sentir demasiadamente a crueza e a abjecção.

É preciso certa coragem intelectual para um indivíduo reconhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano, abono sobre-vivente, louco ainda fora das fronteiras da internabilidade; mas é preciso ainda mais coragem de espírito para, reconhecido isso, criar uma adaptação perfeita ao seu destino, aceitar sem revolta, sem resignação, sem gesto algum, ou esboço de gesto, a maldição orgânica que a Natureza lhe impôs. Querer que não sofra com isso, é querer de mais, porque não cabe no humano o aceitar o mal, vendo-o bem, e chamar-lhe bem; e, aceitando-o como mal, não é possível não sofrer com ele.

Conceber-me de fora foi a minha desgraça — a desgraça para a minha felicidade. Vi-me como os outros me vêem, e passei a desprezar-me não tanto porque reconhecesse em mim uma tal ordem de qualidades que eu por elas merecesse desprezo, mas porque passei a ver-me como os outros me vêem e a sentir um desprezo qualquer que eles por mim sentem. Sofri a humilhação de me conhecer. Como este calvário não tem nobreza, nem ressurreição dias depois, eu não pude senão sofrer com o ignóbil disto.

Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético — e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigo não podia passar de um capricho da indiferença alheia.

Ver claro em nós e em como os outros nos vêem! Ver esta verdade frente a frente! E no fim o grito de Cristo no calvário, quando viu, frente a frente, a sua verdade: Senhor, senhor, porque me abandonaste?

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982



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