23 setembro 2016

julio cortázar / plano para poema



Seja em Roma a de Faustina, que o vento aguce as penas de chumbo do escriba sentado, ou em trepadeiras centenárias um dia apareça escrita esta frase convincente: Não há trepadeiras centenárias, a botânica é uma ciência, bolas para os inventores de imagens pedantes. E Marat na banheira.

Também vejo numa bandeja de prata uma perseguição a um grilo, a senhora Délia que suavemente aproxima a mão semelhante a um substantivo (o Faraó que os amaldiçoava da margem enquanto passavam a vau) quando vai apanhá-lo o grilo já se pirou para o sol ou salta para o delicado mecanismo que da flor do trigo extrai a mão seca da torrada. Senhora Délia, deixe esse grilo andar por pratos rasos. Um dia cantará com tal terrível vingança que os relógios de pêndulo se enforcarão nos seus ataúdes parados, ou a criada de quarto dará à luz um monograma vivo que correrá pela casa toda repetindo as suas iniciais como um tocador de tambor. Senhora Délia, as visitas impacientam-se porque está frio. E Marat na banheira.

Que seja por fim Buenos Aires num dia liberto e tremente, com roupas ao sol e todas as telefonias do bairro vomitando ao mesmo tempo a cotização do mercado livre de girassóis. Por um girassol sobrenatural alguém em Liniers pagou oitenta e oito pesos e o girassol teve um comportamento muito mau para o repórter Esso, um bocado por cansaço aquando da contagem das suas sementes, e também porque o seu destino ulterior não figurava no boletim de venda. Ao entardecer haverá uma concentração das forças vivas na Plaza de Mayo. As forças irão por distintas ruas até equilibrar-se na pirâmide, e então ver-se-á que vivem graças a um sistema de reflexos instalado pela municipalidade. Ninguém tem dúvidas de que o acto se cumpriu com o máximo brilhantismo, o que provocou como era de esperar extraordinária expectativa. Venderam-se os camarotes, irá o senhor cardeal, os carneiros, os presos políticos, os ferroviários, os relojoeiros, os donativos, as senhoras anafadas. E Marat na banheira.


júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
ocupações raras
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973



Sem comentários: