14 janeiro 2016

leopoldo maría panero / mutação de bataille


VIII
PALIMPSESTOS
MUTAÇÃO DE BATAILLE

(De L’Archangélique)


Eu sonhei em tocar a tristeza viscosa do mundo
na desencantada orla de um lamaçal absurdo
eu sonhei uma água turva onde reencontraria
o caminho perdido do teu ânus profundo;
eu senti nas minhas mãos um animal imundo
que na noite fugira de uma espantosa selva
selvagem como o vento, como o negro buraco
do teu corpo que me faz sonhar
eu sonhei nas minhas mãos um animal imundo
e soube que era o mal de que tu morrerás
e invoco-o rindo-me da dor do mundo.
Uma luz demente, uma luz que magoa
só em mim encontra o cadáver do teu riso
do teu riso que preserva a tua longa nudez
e o vento descobre a nossa morte, semelhante
a esse buraco imundo que eu quero beijar: um imenso
resplendor
me iluminará então
e eu vi a tua dor como uma caridade
irradiando na noite a tua forma ampla e imensa
o grito do túmulo que é a tua infinitude
e eu vi a tua dor
como uma caridade, como se alguém deixasse suavemente
um olho na mão branca que um mendigo lhe estende.



      Narciso no Último Acorde das Flautas, 1979



leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014




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