28 fevereiro 2015

herberto helder / ciclo



III
Todas as coisas são mesa para os pensamentos
onde faço minha vida de paz,
num peso íntimo de alegria como um existir de mão
fechada puramente sobre o ombro.
- Junto a coisas magnânimas de água
e espíritos,
a casas e achas de manso consumindo-se,
ervas e barcos mortos - meus pensamentos se criam
com um outrora casto, um sabor
de terra velha e pão diurno.

E em cada minuto a criatura
feliz do amor, a nua criatura
da minha história de desejo,
inteiramente se abre em mim como um tempo,
uma pedra simples,
ou um nascer de bichos num lugar de maio.

Ela explica tudo, e o vir para mim -
como se levantam paredes brancas
ou se dão festas nos dedos espantados das crianças
- é a vida ser redonda
com seus ritmos futuros e mortos.

Tudo é trigo que se coma e ela
é o trigo das coisas,
o último sentido do que acontece hesitante
pelos dias dentro.
Espero cada momento seu
como se espera o rebentar das amoras
e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
- E o resto é uma altura oculta,
um leite e uma vontade de cantar.



herberto helder
ciclo, poema III
poesia toda
assírio & alvim
1996





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