29 outubro 2014

jean genet / caíndo



     Caindo,
     mereces a mais convencional das orações fúnebres:
     charco de ouro e sangue, mangal onde o sol poente...
     Mais do que isto não esperes.
     O Circo é todas as convenções

     Quanto à chegada,
     teme na pista o andar pretensioso. Entras:
     é logo uma série de pulos, saltos mortais, piruetas,
     rodas que vão levar-te ao pé da máquina
     para onde sobes a dançar.

     Que o frémito dos teus saltos — preparado já nos bastidores — nos revele
     que havemos de ir de maravilha em maravilha.

     E dança!

     Mas teso.
     O teu corpo terá um vigor arrogante de sexo congestionado,
     de sexo irritado.
     Por isso te aconselhava há pouco
     a dançares perante a tua imagem e te apaixonares por ela.
     Não te reprimas: quem dança é Narciso.
     Dança que é só tentativa do corpo em se identificar
     com a tua imagem, como o espectador o sente.
     Não és apenas perfeição mecânica e harmoniosa:
     evola-se de ti um calor que nos aquece.
     O teu ventre queima. Ainda assim
     não deves dançar para nós: dança para ti.

     Não viemos ao Circo ver uma puta,
     mas um amante solitário em busca da sua própria imagem
     que foge e desmaia num arame.
     Sempre num país de inferno. Uma solidão assim
     é que vai fascinar-nos.



          (...)



jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984




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