07 maio 2010

andre breton e paul éluard / o sentimento da natureza







O processo do espelho em esfera serviu mais uma vez para o estudo das origens do orvalho; logo que está completo pelo fogo da chaminé, é possível submetê-lo sem dificuldade a medições precisas, e estudar o fenómeno em todos os seus pormenores; assim se reconhece que as sardas nascem bruscamente, permanecem brilhantes por um curto instante, extinguem-se depois gradualmente. A sua duração total varia com a formação dos anéis de verdura nas clareiras favoráveis à neve. Mas nenhuma dura mais que uma vida média, calculada tendo em conta os seus eclipses e os seus nós.
A grande questão seria conseguir que quando um ser enganou um outro ser, se tornasse incapaz de segurar na mão um copo que não se partisse imediatamente. Muitos inventores dedicaram o seu sono e as suas vigílias à solução deste problema, mas sem que até este momento nenhum dos vidros imaginados tivesse apresentado as qualidades requeridas. O facto está em que se é apenas a elegância do copo que permite beber e se é apenas o tremor do bebedor ou da bebedora quem comunica as suas vibrações à tempestade sempre imaginada no interior do copo vazio, a emoção de um ou da outra não pode bastar na maior parte dos casos para provocar o estilhaçamento de uma parcela de matéria transparente que faz bomba na extremidade dos dedos. Estas saraivadas que amadureceram na inconstância e no olvido não permitem àqueles que bebem tomar a atitude desligada dos amadores do ciúme.
Sob as árvores, às mãos-cheias, o cheiro de roupa queimada de velhas roseiras enche as caves do Outono. O coração da dama do lago foi perfurado por um lagarto. Está na aurora até ao coração. Existe escondido um tal movimento de estrelas que a sombra cai em flocos, um tal movimento de estrelas grandes e terríveis que a vida está em farrapos. E o eco responde: Aqui, há um cadáver.
Pouco a pouco, o cadáver pinta-se. O pó de arroz dá lugar à alvaiade, o sublimado aparece à varanda, é o rei dos cosméticos. O sulfureto de zinco comunica ao corpo bem--amado na noite aquela bela luminosidade verde--esbranquiçada, aquele clarão inteiramente enigmático na meia luz. A neve do pensamento continua a cair contendo sempre no interior dos seus cristais o pó fino do colo da janela, nascido no sangue.
Quando observamos atentamente a própria vida temos muitas vezes a impressão de que as alegrias e as dores se mantêm durante um tempo apreciável. Fomos surpreendidos, da Rua Louis-Blanc à Rua Louis-Noir, com a duração do período do fenómeno oscilatório: segundo a nossa opinião os pontos brilhantes são aqueles onde a vida é vista em ponto pequeno.
O inimigo da sua natureza assombra as fiorestas perigosas cujas grades se fecham todas as manhãs sobre a árvore dos vícios. Finda a saúde as suas geadas de malvas e as suas canículas de tigre. O inimigo da sua natureza está perdido no meio das flores salgadas e leques de gesso. Será necessário indicar-lhe a direcção do deserto? Irei voltá-lo para a estrela polar? Deseja ele que este empedrado que aí está se torne e fique constantemente paralelo ao equador infernal? Agrada-lhe que esta boca que cobiça permaneça indefinidamente à porta do primeiro palácio dos fenómenos? Que escolha! Ou prefere então ter tudo isso na abertura da sua mansarda que dá para o céu aturdido?
- Tudo, responde ele. Com isso e um sorriso do Sol, sem pôr o nariz fora da minha janela, saberei ao certo com que me contentar acerca da força incompreensível das aptérix e dos grampos de ferro dos seus hábitos crepusculares.
Saberei ao certo com que me contentar quanto ao processo empregado para guarnecer o artigo desértico preexistente no velho mundo de personagens, de aves ou de diferentes cenários em relevo, relativamente bastante bem feitos. Em presença do preço módico do conjunto — a vida — e da execução sofrível do cenário pensava que fora sem dúvida empregado um processo mecânico simples, tal como urna moldagem, mas, após exame, pareceu-me que estas ornamentações, sobretudo os pássaros, não eram de despojo e, não podendo sair de um molde vulgar, teriam exigido uma moldagem dispendiosa. Não sei se me será permitido visitar um dia as oficinas do fabricante. É provável que o artista tenha como único material e como ferramentas folhas de macieira e a matéria plástica; que seja com estas folhas de macieira que ele dá forma a esta matéria formada de céu encarneirado (muito produtivo) e de esperma ligado com gulosos de morangueiros. Teve de tirar o almíscar nas cabeças de trutas, misturá-lo com o ácido oxalo-sacárico e encerrá-lo numa primeira hóstia de cor carne. Numa segunda de cor espírito teve de guardar bicarbonato de sódio seco. Na época das chuvas, as duas hóstias misturadas deram ácido carbónoco expirável na forma de hálito.
A maldade que lança o espírito sobre a carne e a carne sobre as imagens do espírito habita as miragens da cabeça e a água gelada das cozinhas surdas. É preciso respirar este ar selvagem que estende os punhos através do apetite voraz das ruínas com cintura de vespa e cabeça de víbora. Elas sobrepõem-se gradualmente e cada um dos seus degraus está coberto de coágulos de musgo vivo que a névoa torna a cobrir de musgo morto. A atmosfera ganha então um tom amarelo mais intenso que o da crosta da aurora. A vista espraia-se sem limites e escava nas profundidades do coração humano, que sempre produziram naquele que as contemplou urna extraordinária impressão.
Gostaríamos de ilustrar este texto com urna curiosa figura representando um animal de tronco excepcionalmente bifurcado a partir do meio do seu comprimento. É assinalada a existência de seres análogos um tanto por toda a parte. Este género de divisão anormal de eixos ou de órgãos habitualmente simples conhecido das árvores com o nome de partimento, ainda não foi estudado senão pelos sexualistas. Foi em Paris, onde íamos herborizando ao longo das fortificações, que pela primeira vez fomos surpreendidos ao avistar uma, depois duas, depois mil destas excrescências lembrando, num grau muito mais avançado de deformação, esta variedade móvel da mandrágora em busca do vento na erva rasa e lamentavelmente observada pelos carrosséis de cavalinhos. A sua excitabilidade representava-nos bastante bem um quadro assaz análogo ao de um leito tal como seria se a velocidade dos movimentos executados pelos vários membros que nele se agruparam estivesse multiplicada por mil. Tudo ali está em movimento, os braços sobem, baixam, torcem as mãos, os troncos contornam em hélice a sua culminância delicada, as bocas rebentam, projectam os seus beijos ao longe, os beijos caídos sobre os olhos não ficam ali, logo partem numa outra direcção, as pernas mergulham nos lençóis transparentes, enfim tudo está cm acção, desde o grito que se abandona até aos dentes de veludo.
Os caminhos que sulcam o arrabalde, nos últimos raios da preguiça, repousam nas redes das grelhas. É difícil dispor os lugares da aldeia para não se deixar morrer de fome, à noitinha. Toda a sua puerilidade não lhe serve senão para confundir os despojos do turismo com o porte estúpido das grandes glicínias da Beauce.
O Verão, como tinta simpática, reaparece a favor de dois negativos quando não está calor não está frio, sobre o palimpsesto coberto de geada da palavra inverno.
O fogo é um amigo que nos presta serviço, é a razão por que a aliança estabelecida com ele lisonjeia tão vivamente a população terrestre. Todo o aparelho preventivo do fogo está colocado num ramo de cerejeira. O ramo de cerejeira alto, sem o botão a dominá-lo, de 0,35 .m, está fixado por quatro parafusos, também em madeira, do modelo conhecido, ao tronco da árvore. Eis-nos no meio da Primavera. Quantas transformações já se cumpriram! O preventivo é visitado por uma borboleta branca que se detém a meio da fotografia. O Outono: a maior parte das folhas caíram; o capitel de um estilo coríntio híbrido faz o regalo de uma libélula.
Um mar imenso de penca vermelha protege os instrumentos de trabalho da centelha. Em breve se dará um eclipse de coragem. As vagas de lava que se rasgam na planície e as incursões do machado inútil, o machado paternal, o machado com dentes de serra já não terão história. A centelha, sempre resplandecente, será glacial. Elevar-se-á teatral e vã, sobre um mundo demasiado afagado pelos simuladores. O monumento do dia fará os sonhos de fuligem.
Preparar-se-ão para o demolirem nos alicerces, logo que estiver saturado de sonho. Cairá enfiando-se umas partes nas outras, à maneira dos telescópios, como dizem os Ingleses, sem destroços ao longe. Então o telégrafo só aparecerá como o chapéu adornado de andorinhas de uma dama parisiense em 1889.
Entretanto, o céu e os seus derivados não fazem efeito no maciço. O sangue é mais procurado devido à sua cor complementar do verde da pele (1914-1918).
Após o sangue vem o negro da glória: peguem num livro branco, limpem-no, mergulhem-no folha a folha durante alguns minutos numa mistura pastosa formada por: 500 gramas de estrume de carneiro, uma pitada de sal, um copo de vinagre a que juntam 200 gramas de pó de bagas de sabugueiro e assinem.
As representações convencionais das origens geométricas da natureza só são sedutoras em função do seu poder de obscurecimento. O cristal é um dédalo seguido pelas toupeiras, as uvas queimam as últimas borboletas. Vista através da substância afrouxada, a paisagem seduz-nos com todas as suas masmorras. Peixes feitos de redes, pássaros de grades, mamíferos de gotas. A flecha odorífera do ar tendo-a atravessado de lado a lado faz que a nossa barca meta água num mar que se esvazia.
Que dizíamos nós? Ah! pois as ruínas empenachadas de avestruz, as ruínas continuam assaz
solidamente belas. Não existe senão um grau de calor entre a foliação do lilás e o último canto do cuco mas pode ter-se a certeza que este grau é bem empregado entre o trigésimo sétimo — daqui — e o quadragésimo segundo — ali.











andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972






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