20 maio 2006

um poema de: mário cesariny



do capítulo da devolução



Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito, um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do
outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo, até
a tinta e as flores e o prazer de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos, olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece, apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras,
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto

mas tu sabes, tu vistes, e mais do que eu; a mão do homem é doce e
iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre
os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e
gratas, a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra,
outros olhos semelhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a
minha miséria, os teus braços e os meus, altos como
cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as
escadas, fechar ainda a porta do teu quarto, atravessar de
um pulo a minha própria vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas




mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982




2 comentários:

Claudia disse...

obrigada pelo bonito poema...

Anónimo disse...

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