11 setembro 2016

vitorino nemésio / o bicho harmonioso



Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os lêem quando eles já são tão leves
Que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstractos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!
Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido,
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz, e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural:
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno ,
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,

Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No  meu buraco vil de bicho harmonioso.

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra,
Estranho fóssil!


vitorino nemésio
o bicho harmonioso
antologia poética
asa
2002




10 setembro 2016

carlos de oliveira / desenho infantil


III

É fácil ver ainda nos cadernos escolares, no espólio que as razões de família acautelaram em arcas protectoras, a cólera das cores, a impaciência dos traços que rasgam o papel: imaginava dunas ocres, chuva a desabar num ímpeto castanho, animais de chifres encarnados resistindo à matança, lobisomens com a violência azul dos cavadores a levantar a enxada, sóis estilhaçados, como se a luz batesse nas janelas e a criança as partisse.


carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




09 setembro 2016

armando silva carvalho / poema dos motoristas oficiais



Encontram-se um pouco por todos os lugares.
Ora fumando,
orando pelos filhos junto a um deus
secretariado por magníficos
patrões.
De fato azul e gravata preta,
de anel  cachucho e jornal da bola,
o rabo habituado aos bons cabedais
pousado no capot ultra-reluzente.
Trazem a província em cada bolso do corpo
e estendem olhos julgadores às mulheres solitárias
de cigarro na boca em plena rua.
Às vezes são quatro ou cinco à espera do final
um conselho em pleno parto,
de uma portaria inacabada
ou de uma reunião e economia mística.
Derramam o passeio
o ócio inexplicável  rústicos fiéis
e contam anedotas num bocejo amarelo de melancolia.
Quem lhes dera a reforma, a courela da mãe
ou num sonho longínquo
essa noite sem lua em que engravidaram
a prima por descuido.
Sinto por todos eles um sentimento soturno
e muito gostaria
que Cesário os conhecesse
ao passear sozinho
pelas novas avenidas ao anoitecer.


armando silva carvalho
lisboas roteiro sentimental 2000
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



08 setembro 2016

antónio gancho / de há vinte anos para cá



De há vinte anos para cá
já eu estou transformado noutra coisa.
A loisa de preta para branca
quando o visitante lá descansa a anca
sobre ela
parece que de repente se há uma janela
em frente
tudo se some à janela.
Assim como ela a loisa
nunca poisa
numa mesma posição
assim como já dissemos
ou é preta ou branca não
assim também eu poeta
de há vinte anos para cá a esta parte
não está na mesma arte.
Que há muita coisa a prever
além da loisa
a arte de escrever.



antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995



07 setembro 2016

yvette centeno / morangos silvestres



Cóleos begónias avencas
aprendo o nome das plantas
e de manhã como fruta
(não era o que tu dizias?)
antes de tomar café.

Mas a seguir ao café
sobra-me um dia comprido.
Não sei que fazer sem ti
(não há morangos silvestres)

não sei que fazer comigo.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998



06 setembro 2016

miguel-manso / que dia é hoje



que dia é hoje em redor do tempo

a erva cresce acende o fogo a cada flor
é uma maneira distinta de praticar o inteiro:
antever o desfecho da cordilheira solar

montado ainda na bicicleta da manhã



miguel-manso
persianas
tinta da china
2015



05 setembro 2016

rui diniz / invocação de quem se amava



Bebi a desolação em Baltimore num
café. Sentia-me só. Escrevia cartas aos
exilados e tinha uma terrível dor de cabeça.
Por momentos vira os lugares alagarem-se
nas maldições dos mosteiros. Alguém me
lembrava Mr. Kite pagando as bebidas aos
poetas saídos da prisão, e, depois, a própria
prisão de Mr. Kite e a sua morte dias depois.
Chovia, Kite, nos teus cabelos sem cor. Tinhas
as mãos enfiadas nos bolsos, cheias flores
de obstinação. Eu lia os livros da hora
revoltada, os escuros atentados desses
dias,  inútil harmonia dos poemas. Para
mim, eram essas horas de um intenso
esquecimento e os poemas lidos desapareciam,
desapareciam os escritores da
infelicidade. Eu  procurei os lugares sombrios
e vi que tinham sido extintos, abandonados
na maior precipitação. Aí estive alguns
anos e aí vivi o obscurecido ópio da
minha vida, a decisão brusca dos teus
lábios de morta. Morta – eis como te avizinhavas.
Rindo, rias da minha vida áspera, de
revolucionário, aparecias frequentemente
nos cafés clandestinos da margem sul
e acusavas o que eu escrevia, as cartas
aos exilados.
Até que uma manhã eu próprio me ri
e vi lágrimas de medo transformarem-me
o rosto – era chegada a época da
nossa condenação. Era chegado o outono
com o seu cortejo de corpos amnésicos,
sua orgia desprovida de repouso.

  
rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977




04 setembro 2016

herberto helder / tríptico



     II

     Não sei como dizer-te que minha voz te procura
     e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
     esplêndida e vasta.
     Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
     se enchem de um brilho precioso
     e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
     iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
     pelo pressentir de um tempo distante,
     e na terra crescida os homens entoam a vindima
     — eu não sei como dizer-te que cem ideias,
     dentro de mim, te procuram.


     Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
     ao lado do espaço
     e o coração é uma semente inventada
     em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
     tu arrebatas os caminhos da minha solidão
     como se toda a casa ardesse pousada na noite.
     — E então não sei o que dizer
     junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
     Quando as crianças acordam nas luas espantadas
     que às vezes se despenham no meio do tempo
     — não sei como dizer-te que a pureza,
     dentro de mim, te procura.


     Durante a primavera inteira aprendo
     os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
     correr do espaço —
     e penso que vou dizer algo cheio de razão,
     mas quando a sombra cai da curva sôfrega
     dos meus lábios, sinto que me faltam
     um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
     coisa extraordinária.
     Porque não sei como dizer-te sem milagres
     que dentro de mim é o sol, o fruto,
     a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
     o amor,


     que te procuram.


herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



03 setembro 2016

jorge luís borges / o apaixonado



Luas, marfins, instrumentos e rosas,
Traços de Dürer, lampiões austeros,
Nove algarismos e o cambiante zero,
Devo fingir que existem essas coisas.
Fingir que no passado aconteceram
Persépolis e Roma e que uma areia
Subtil mediu a sorte dessa ameia
Que os séculos de ferro desfizeram.
Devo fingir as armas e a pira
Da epopeia e os pesados mares
Que corroem da terra os vãos pilares.
Devo fingir que há outros. É mentira.
Só tu existes. Minha desventura,
Minha ventura, inesgotável, pura.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





02 setembro 2016

ángel crespo / amanhecer em lisboa



1
Ditosos os países que se debatem com suas sombras
e cujos habitantes olham, movem-se, pronunciam-se dignamente
e te recordam a outros e a eles mesmos
quando andavas a perguntar por teu próprio país
e não tinhas pátria.

O ar enche-se de olhares e do voo dos pássaros
quando amanhece pelas esquinas
de Lisboa, e as torres espreguiçam-se
enquanto seus ninhos se libertam de plumas
e os sinos e os ruídos dos motores
fazem mover braços, rodas, êmbolos
e corações iludidos pelo sonho.

Uma janela abre-se em Alfama. E depois outra e outra,
e a respiração dos edifícios
fede e ao mesmo tempo perfume os lençóis enormes do ar
que um milhão de mãos sacode
sobre as ruas pombalinas, visitadas pelos pardais
 – e pelas pombas, por que não: que culpa têm dos nomes
e da vida traçada a compasso? –,
 e na Praça da Tal brilha o rocio a baptizá-la novamente,
e a Avenida da Liberdade não enrubesce, quando com os olhos
de suas árvores e seus cafés vazios lê outra vez seu nome,
entre voos alegres e assustados das aves madrugadoras.

Um amigo está à tua espera
para levar-te ao Castelo de São Jorge
e falar-te de poetas espanhóis e rimas portuguesas,
e tu fechas os olhos – já no alto do castelo –
para lembrar o cair de tantas tardes
que sabiam ao café amargo do Chiado e ao azeite rançoso de um nome
e aos versos impublicáveis que te liam às escondidas.


2
A liberdade não é um cordeiro, mas um leão que pode matar-te,
se é que deveras amas a liberdade.
Estou a vê-lo desde as nobres ruínas
a cujos pés crescem as favas e árvores que me irritam porque não sei o seu nome
mas me perfumam com recordações que já esqueci;
estou a vê-lo, nem desmelenado, meter as garras no mar
 – pois aqui chamam assim ao rio –,  onde os vapores vão buscar o vapor
e, é inútil negá-lo, a liberdade tem um alto preço
porque é traidora, cruel e extraordinariamente preguiçosa
e o seu verdadeiro sonho é converter-se em ovelha
mesmo com o risco de ser devorada.

Meteu uma pata no mar e retira-a entre arrepios,
vai rugir e sai a cantar uma canção que não entendo
porque me fazem chorar os pássaros cujos nomes conheço.
O meu amigo está a falar-me de Madrid e da poesia
e da lembrança de outro amigo
que me estende a mão sobre o mar – com que delicada frequência! –  
e me leva onde a recebo
enquanto oiço o mar das Antilhas rugir por seus leões.

Mas agora estou aqui estando num estava triste
e estou a esquecer tudo
porque me Lisboa, leonada, começou a chover
uma luz que me surpreende sempre nu,
e o meu amigo arremessou a capa que não trazia
sobre as balaustradas,
e vai planando, assustando
o leão, que oxalá nos devore.


ángel crespo
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



01 setembro 2016

sharon olds / de volta a casa depois das férias



O carro rodou para a entrada ao ocaso e parou.
A mulher saiu sob as enormes árvores pretas
e desceu ao jardim e sentiu que havia lá alguém,
alguém com raiva. As árvores estavam encorpadas de negrume
e os botões desembainhavam as facas.

Deixou-se ficar de fora do seu jardim
e viu como os caules retorciam os músculos
e todo aquele terreno parecia uma campa
de onde alguém lutava por sair.

                                                        De repente
pressentiu uma grande sombra erguendo-se,
lançando-se a correr – ela levou a mão ao pescoço
branca como uma raiz.

                                        Estava, portanto, em casa.
Aquele era o seu lugar, o único de entre todos
onde tinha medo de andar, onde alguém chegara
sempre primeiro, e, contra ela, manteria o posto
a todo o custo.


sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




31 agosto 2016

sebastião da gama / nos teus olhos



Nos teus olhos, aos poucos, vou achando
(de adivinhá-lo há rosas que sorriem)
quanto no mundo, aos poucos, fui perdendo…



sebastião da gama
cabo da boa esperança
ed. ática
1959




30 agosto 2016

sabine scholl / a beleza




Ora à luz do escurecer ora ao alvor da manhã,
ora ao roçar e ao arredar de tudo o costumeiro.

Uma vez cresceu a sombra a um canto, uma vez passou um raio
pela sala, uma respirei sal e sussurrei murmúrios.

Assim o entrelaçar-se é como o amor a cada coisa, assim são
azuis as visões dos pássaros, cujas imagens alternam.

Aquilo que se aproxima, vira, se perde, lugar de repouso
na tarefa do perceber, do agir, aquilo que espanta.

O vazio e pressentimento,  o campo, o teu andar, o arbítrio
e expressão visível  de um sonho, o engano.

Às vezes ele está nos olhos, às vezes no suavizar dos traços,
às vezes no repetir uma palavra, às vezes pelos caminhos fora.

Então uma cavidade, um voo, uma extensão sem fim, breve,
um relâmpago, então com o entendimento do fogo, TU, o Universo.


sabine scholl
tradução de antónio de sousa ribeiro
poesia do mundo
afrontamento
1995