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14 fevereiro 2024

fátima maldonado / signo dos peixes

 
 
5

A tua ausência é na minha vida
o buraco na ponte onde pensava
apenas oscilando
transitar a velhice.
Posso, por ele debruçando-me, sentir o precipício
o rochoso recorte das grutas esverdeadas
o contacto da pedra na aresta do crânio
poroso no engaste que liga as duas têmporas,
aberta melancia partida na talhada
renda velha que esgarça na toalha de altar.
A luz que banha a rocha espraia
reflexo rápido que nos cruza a pupila,
o mesmo projector que varre uma prisão,
a espada que se enterra no cachaço do touro
deixando um pré-aviso
que cintila no ar como um cristal de neve
destruindo a sóbria anatomia de nervos e sistemas,
a estrutura da folha que existe sepultada
por baixo de uma pele, seja de boi ou lama,
a concha que repete os dois ou três modelos
que existem renovando-se.
E mesmo assim prossigo
rasando a perspectiva,
gangrenam-se-me os pés,
partindo-se aos bocados
ouço bater os ossos
na crista dos rochedos.
O cérebro envolvido por folha rendilhada,
guardado no abrigo sangrento do herbário,
rolando por montes e por fragas
deixa-me pensamentos espalhados como amoras.
Suspensos nos espinhos das sebes poeirentas
ficam os raciocínios à espera que os pardais
caindo de repente em bandos destemidos
lhes venham debicar ideias comatosas
secando já nas bagas da sua exactidão.
Nos bicos acerados resta o mercúrio das gotas
da lógica que escorre em fios de ovos metálicos
sobrando dos conventos que abrigam destroços
dos módulos lunares.
Sentada na areia
coalhada de limalha
como os restos caídos da bigorna
que o ferreiro afasta para o lado
sinto o desejo amargo de te contar o sonho
em que a comida gelando no meu prato
me afasta da ideia que possa saciar-me.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021




 

25 outubro 2023

fátima maldonado / crepúsculo

 



 

1
 
Quando às vezes te deixo
desamparado e nu
como se magoado depusesses
teu verdento contorno
na paz de um mausoléu
e me fitas ao longe
tocando-me ao de leve
na anca recolhida,
o algodão da saia a subjuga,
com a ponta dos olhos
a baça íris uiva
da cor do figo murcho
de quem só pensa em seus próprios retábulos
ansiosas epígrafes
de infância acometida por vária derisão.
Velado de negrura
zelas por teu recato,
no deserto lampejam as pistolas
e mais não te derimo
não forço a tua mão
não ouso recusar a sede que me ofereces
e se te fosse escrava
oferta, aberta, rouca
não duvido que fosse
tua mão amputar
a língua que navega à deriva
por entre o silabar coralíneo da troça
e revulsa e agita amotinando a boca.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os alicerces
editorial presença
1983



08 julho 2023

fátima maldonado / tríptico viril

  
1
 
Imigrantes partíamos
Em busca da fortuna
Num barco chamado «Boa Nova».
Suportavas-me em cheio
no peito aberto
um vento em risco
naufragava
onde Tiepolo propusera
outras nuvens.
A quilha abria o mar
que se dobrava.
Era preciso alimentar
um filho
os olhos forçavam
o vestido
e na fímbria da saia
a denúncia das folhas.
Ao entregar-te a sopa
abriu-se-te a camisa
e um rastilho de pele
sitiou-me a cabeça.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
três poemas sacros e um tríptico viril
averno
2021




11 novembro 2022

fátima maldonado / cinco poemas do quotidiano

 
 
1
 
A casa recusa adormecer
lá fora um pássaro simulando extravio
pede socorro.
Um pensamento a néon cintila
azul prateado,
ressoando bate nos móveis, não se despedaça
e mergulha na chávena onde enfim descansa.
O que fazer neste tempo que vai arrefecendo
e mesmo arrefecendo não se multiplica,
não se transforma em matéria nova, decomposta
permanece assim abandonado a cada síntese julgada pertinente.
Nenhum de nós se gaba de ter transformado seja o que for,
é exacto, ninguém abalou o alicerce.
As colunas mantêm-se de pé, abanaram apenas e persistem.
O olhar descansa numa concha, detém-se num rochedo
e retorna à pupila.
O que sentimos bate nas coisas e regressa a penates.
Olhando a pedra, a estria, a recortada pena, a pele da maçã,
Apenas se detecta um crispado arrepio, leve memória.
O arranhão não fere, a linfa prosseguindo circula mais depressa.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
cinco poemas do quotidiano
averno
2021






21 abril 2022

fátima maldonado / os presságios

 
 
Aquela tarde no jardim da Graça
ao desviarmos os olhos da cidade
uma lava já morta apodrece no monte
e o vento magoa a nave da igreja.
Os presságios me seguem
como o guarda descansa
na sombra de uma porta
e espera ordem de partir
sentindo estremecer no envelope
recado impaciente.
 
Os presságios me surgem
o mensageiro na cal se recorta
e vem de encontro à pedra
depositar a carta
sabendo de antemão
que tudo lhe negaram
e só lhe facilitam
este mediano conhecer.
É feroz a recusa
do oculto bilhete.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
os encontros
averno
2021




 

13 novembro 2021

fátima maldonado / signo dos peixes

 
 
4
Ontem junto do mar
o fumo devolveu-me a tua sensação.
Caída ali ao pé a gaivota esperava
que uma vaga a levasse
se quiseres.
De qual das mortes teria sucumbido?
Um tiro atravessando o luminoso céu
tê-la-ia prostrado
ou da traição teria reavido
o justo pagamento?
No marfim do bico o sangue destoava
como um dente arrancado nos fica no dentista.
As pedras que apanhara enquanto caminhava
formando à minha volta um túmulo sumário
lembravam-me que a morte
já quase não se afasta.
Acenando aos navios vislumbram-se as sereias
sustendo os maçaricos com que abrem sem gazuas
os cofres submersos,
entesourando assim moedas gangrenadas
de perfis corroídos como talheres inúteis
de prata causticada por noiva que morreu
sem perpassar na loiça a mão suja de Vim.
Antes tínhamos dito
Vendo os pequenos negros de seca carapinha
(maciços de coral espinhando na cabeça):
«Parecem violentos.»
Andando às voltas de bicicleta
nos rápidos passeios que pedem por empréstimo
trazem dependurados no ferro dos pedais
gritos de hienas velhas.
E rindo-se na virilha
assoma a palmatória que misturou as linhas
na palma de seus pais
encostados que foram à parede do posto.
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021

 




27 agosto 2021

fátima maldonado / o verão

 
 
Na luz amarela
que Raul Brandão
ousou contemplar
a máquina debulha trigo
na usura do grão, no ruído do pó,
ouvem-se queixas na ordália de espigas.
O gilvaz na cara por pragana
a pele morena cava trincheiras
no coração fugaz das raparigas,
safões sublinham elegância
na bainha dos ossos,
voraz beleza contamina ar
adensa a corrente da voz
tresmalha a fénix no rebanho do sangue.
Máscaras velam olhos,
protecção brutal dos que mergulham
perante tanto sol.
O suor imuniza a combustão,
salitre rasga, conserva, cauteriza,
jovens defuntos
no vinho da mastaba.
O Alentejo invade os enxames de cisco
de luz maligna,
a tarde vai-se desagregando
como um vitral perfeito,
o pólen fertiliza,
mirtilos do desejo
irrompem na lapela dos rapazes cansados
que extenuam os pés e acutilam na fronte
o tímpano da dor.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
os frescos
averno
2021





 

30 julho 2021

fátima maldonado / signo dos peixes

 



7

Um prédio em construção,
quantas vezes nos fizemos amor
sentindo misturar a cal no cimento.
O baque da massa granulosa
tinia-me por dentro como polegar em sino,
coice da mão contra jarro de vidro.
Tu continuavas vaivindo sobre mim
lembrando-me o engenho
de açúcar no repouso
a nora em alcatruzes
o moído do grão.
Ouvia o tossir de um pedreiro mais idoso
quando enfim descansavas.
O teu peito deitado
atrás das minhas costas
soava na lata do prato
ou no metal do copo
os arranjos tardios da lancheira manchada
por pingos que a unha
já não pode arrancar.
Rápidos subíamos até à varanda,
juntos nos sentávamos,
colunas partidas juncavam o chão.
Vendo à frente o mar de repente baço,
povoado e lento
esvaindo-se em barcos, sereias, guindastes,
chaminés listradas, gaivotas à volta,
o olhar cansado, sentindo-me húmida,
ouvia nos dentes pulsar o teu sangue.
O cheiro que ressumas fazia por cima
de nós um dossel,
a tarde azulada caía de manso.
Ao fundo a igreja e seus minaretes,
a lua espreitava por trás do zimbório,
caía a poalha de um império desfeito
sobre Lisboa enfim pacificada.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021

 





21 agosto 2016

fátima maldonado / cenas de perigo na mansarda



I
Na primeira versão
o desenho exprimia
tersa arremetida
do homem contra o tronco
no sofá onde o couro
mutava sua escama.
Imprevista
metamorfose
a lepra eclodia
no espaldar,
o encosto dos braços
esculpia sulcos
por entre linfa ocre.
A segunda versão
erigia a figura
num dólmen de xisto.
Um véu
lacrava-a em torno
do casulo,
a larva oculta
por biombos de cuspo.
Potente acumular
de vestes
calafetava fugas
vazando as alforrias
num molde
onde petrificavam.
Gravuras semelhantes,
enigmas de Elêusis
celebravam em Pompeia
o solstício de Verão.



fátima maldonado
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



21 março 2015

fátima maldonado / fundo de desemprego


Uma borboleta, um colar de coral
o rapaz não quer saber de competência.
Está por agora aqui
amanhã pode sentar-se noutro lado
não tem opinião sobre coisa nenhuma
e nada nem ninguém o desconvocam
do seu concílio com a indiferença.
Veio de Colónia e na volta é semelhante
suprimiu hamburguers
 com pescadores ao lado.
O resvale da tarde sobre rochas
não lhe prega na alma
precipícios.
Um ocaso onde há melancolia
desperta-lhe a contra-gosto
recessões
e perde tempo a descobrir ao sol
a loura rapariga inanimada
enquanto apalpa
na bolsinha a erva.
No outro dia é com resignação
que se saúdam
e a tarde nos contunde
mineral.


fátima maldonado
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987